Opinião

Um plano infalível "contla a democlacia": sete medidas antidemocráticas

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15 de novembro de 2022, 11h18

No Estado democrático de Direito, a divulgação e troca de ideias são livres. Há, portanto, liberdade para propostas quanto à organização da sociedade. Nada impede que um grupo político possa governar o país eternamente, desde que o faça de modo legítimo e sem deturpar valores democráticos. Em homenagem ao ilustre Maurício de Souza, proponho um diálogo entre os personagens icônicos "Cebolinha e Cascão[1]", na tentativa de esboçar um caminho antidemocrático para criação de um governo ditatorial. Neste texto, prestigiando a didática, não haverá troca de "r" pelo "l" como no original, Cascão é um líder político e Cebolinha um capitão militar aposentado.

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Cebolinha inicia a conversa e faz o convite:

– Vamos instalar uma ditadura?

Interessado, o jovem líder Cascão indaga:

– Vamos, qual o plano? Será que vai dar certo?

Antes de revelar o projeto, Cebolinha faz uma consideração:

– Uma sociedade para se desenvolver precisa de ordem, somos a maioria, nosso pensamento é dominante e não podemos permitir que os valores de minorias contagiem futuras gerações, sob pena de ofender os bons costumes.

Curioso, Cascão solicita:

– Sim! Continue, por favor.

O capitão Cebolinha passa a expor o projeto de dominação:

– Primeiro, encontraremos um país com indicadores sociais caóticos, políticos desacreditados por envolvimento em corrupção, população em baixo nível de escolaridade, pluralidade religiosa, divisão social, racismo, economia fragilizada, trabalhadores mal remunerados, indivíduos esfomeados, sistemas de saúde e de segurança pública precários. Um cenário perfeito para dominação, percebe?

Lembrando Chaplin, o líder Cascão diz:

– Aham, tipo do caos é que nascem as estrelas!

Verificando a atenção do jovem, o militar aposentado Cebolinha prossegue:

– Isso! Segundo, vamos adotar a bandeira e as cores desse país como sendo os símbolos do nosso grupo. Assim, ninguém terá dúvida que somos patriotas e fica mais fácil conseguir adesão. Além disso, com objetivo de diminuir a violência, vamos facilitar o uso de arma de fogo, já que o cristão tem a possibilidade e o direito de defender a própria vida e patrimônio. Cidadão de bem deve andar armado, a arma não pode ficar só com o bandido.  

Concordando, Cascão elogia:

– Sensacional! Todos que usam as cores da bandeira são nossos aliados e poderão portar armas letais para combater a criminalidade individualmente, protegendo a família e os interesses do nosso país. Um exército de cidadãos. Adorei!

Conduzindo a conversa, Cebolinha continua:

– Terceiro, é indispensável que um indicado do nosso grupo ocupe o posto de chefe maior do Poder Executivo desse país. Para isso vamos fazer uma campanha midiática, pautada em valores morais e religiosos, no combate à corrupção de antigos governantes, na melhoria da economia, com liberdade plena, especialmente, para empreender (informais) e limites de gastos públicos. O chefe executivo será o grande protetor da família tradicional, um verdadeiro "mito". De outro lado, o Estado tem que zelar pelo equilíbrio fiscal e cada particular defende seu interesse livremente, não é mesmo? Divulgaremos a opinião de que o Estado atrapalha o crescimento econômico e que aos miseráveis basta um auxílio financeiro, nada mais. Dinheiro no bolso é mais urgente que formação profissional e a política pública assistencialista sempre contribuiu para edificação de "governos populistas".

O líder Cascão fica entusiasmado e acrescenta:

 – Verdade, não importa o preço de alimentos, o Estado não tem nada a ver com isso. O mercado é livre! E outra, o Estado, através do executivo, estará fazendo sua parte, ajudando aqueles em extrema pobreza, que terão "dindim na conta". Sucesso garantido!

Mais conhecedor, capitão Cebolinha mostra a "porta de entrada" na área dos costumes:

– Quarto, divulgaremos que os valores morais desse país estão corrompidos e que não se pode admitir sequer o debate sobre igualdade de gênero, nem colocar em pauta a defesa do aborto voluntário, da união homoafetiva, dos direitos iguais à comunidade LBGTQIA+, da legalização da maconha e outros temas sociais. Anunciaremos, como se fosse verdade, que o presidente tem competência constitucional para sufocar a pluralidade de ideias e da diversidade de gênero. Iremos, também, exaltar uma religião cristã, glorificaremos que o nosso "Deus está acima de todos", deixando claro que outros indivíduos que não compartilhem dos princípios cristãos e do modelo familiar tradicional, são indignas, imorais. Vamos espalhar discurso de ódio contra essas pessoas. "Cola comigo?"

Percebendo que poderá se "dar bem", Cascão adiciona uma ideia negacionista:

– Estou "fechado" com você, capitão! Podemos, ainda, negar a existência dos conflitos raciais. O racismo não existe, somos todos iguais. Não há diferença entre os indivíduos, não existe escravidão contemporânea, todos são livres para trabalhar.

Astucioso, o experiente Cebolinha arquiteta uma medida ideológica do grupo:

 – É tudo "mimimi" e inverdades divulgadas pela impressa, que serve a interesses escusos e reflete o pensamento de "falsos messias" e ateus. Vamos validar juridicamente a dominação, haverá, assim, juristas alinhados, que interpretarão a lei de acordo com os nossos interesses, e, notadamente, referendar que as forças armadas servem ao nosso presidente. Isso é crucial para instalar o medo nos divergentes e a dúvida quanto à força e legitimidade dos outros poderes. Entende?

Atento, o jovem líder Cascão questiona:

– Sim, entendo! E, aí?

Prosseguindo, o velho Cebolinha revela mais uma medida totalitária:

– Quinto, divulgaremos que os divergentes e a mídia estão contra os interesses da pátria e querem destruir o "presidente herói", porque perderam a "mamata" do dinheiro público. Divergência ideológica deve ser repelida e desabonada, não podemos admitir sequer o debate. Quem não for do nosso lado é radical, extremista e inimigo do país. Quem não levanta nossas bandeiras, não merece respeito. A exceção de nós, ninguém mais poderá palpitar nas políticas do Estado.

Cascão não entende e, mais uma vez, questiona:

– Como assim?

Capitão Cebolinha, baseado em falsas premissas, defende uma atitude ditatorial:

– Por exemplo, na seara ambiental e do agronegócio, avançaremos projetos de empreendimento no campo, "vamos passar a boiada!", sem a participação da sociedade ou de ambientalistas. Defenderemos falsamente que não há desmatamento das florestas, nem perigo ao meio ambiente equilibrado e que o povo originário do território (indígena) já possui "terras" demais, tudo isso para valorizar a iniciativa do livre empreendedor (latifundiário) contra órgãos de preservação ambiental e medidas de desenvolvimento sustentável, além de proteger a propriedade privada contra o "invasor", já que tais fatores embaraçam a promissora produção de alimentos para exportação. Entende?

Gostando do assunto, Cascão concorda:

– Com certeza, o país poderá ser o "celeiro do mundo", fornecendo alimentos ao exterior. Continue, por favor…

Atendendo a solicitação, Cebolinha divulga mais um ato antidemocrático:

– Sexto, o desequilíbrio entre os Poderes é fundamental para o êxito do plano autoritário, com fortalecimento do Executivo em prejuízo de outros, mediante extinção de instituições estatais. Firmaremos alianças espúrias com integrantes do Poder Legislativo, para que a maioria esteja alinhada conosco. Como dizem alguns, o nosso presidente será o "tchutchuca" dos parlamentares.

Reflexivo, Cascão pergunta ao capitão:

– E o que fazer com o Poder Judiciário? 

O velho Cebolinha enaltece o jovem e destaca mais uma atitude antidemocrática:

– Excelente pergunta, muito importante! Colocaremos o "cidadão de bem" contra o Poder Judiciário, especialmente, versus o órgão central da Justiça, de modo que desmoralizaremos os magistrados publicamente, sobretudo, aqueles que estão conduzindo o processo eleitoral. Vamos desafiar seus comandos e descumprir decisões judiciais. A ordem será que toda decisão judicial que for contrária à nossa "pátria e família" deve ser desobedecida, são ilegais, estarão fora "das quatro linhas" das Leis.

Animado e precipitado, Cascão afirma:

– Sensacional! Conseguiremos implantar o regime autoritário e ficar no Poder por gerações! Ótimo plano!

O experimentado Cebolinha contrapõe, expondo mais uma proposta de poder autocrático:

– Calma, jovem! Sétimo, temos que ganhar as eleições para presidente, ao menos duas vezes consecutivas, e conseguir o máximo de aliados no parlamento. Assim, vitoriosos, autorizados pelo Poder Legislativo, aumentaremos o número de membros da Suprema Corte e colocaremos lá os nossos coligados, decidindo, como se juízes legítimos fossem. Desse modo, os mandatos políticos e programas do nosso grupo autoritário serão respaldados pelo Poder Judiciário, ou seja, o regime ditatorial é "legitimo e democrático". "Tudo nosso, nada deles!". "Pegou a visão?"

Apesar de concordar, Cascão fica desconfiado e pergunta:

– Sim, compreendi, mas será que encontraremos resistência?

Avaliando, o Capitão Cebolinha conjetura:

– Tem muito "gado no pasto". Parcela relevante da população pensa que política de Estado se faz pela força da maioria, muitos não admitem conviver com o diferente, abafam minorias e acreditam que o cidadão armado é mais forte que o "letrado".

Empolgado e influenciado, o jovem Cascão lembra:

– Claro! Não se diz, por aí, que um militar armado é suficiente para extinção de uma Corte Constitucional. Vai ser fácil! A divulgação de nossas ideias correntes no "whats", "insta", "face" e twitter vai cumprir efetivamente o papel de catequizador dos habitantes desse país, vamos "dominar geral". O país é nosso! Vamos ficar sempre no Poder. Uhuu!

Em tom malicioso, após um discreto sorriso, o velho Cebolinha articula:

– Isso mesmo, entendeu direitinho! Felizmente, não é todo mundo que se recorda de um povo americano que lutou contra uma ditadura institucionalizada. Na luta histórica, muita gente perdeu a vida, outros foram torturados, criou-se um movimento chamado "Diretas Já", que culminou na derrocada do governo ditatorial e fez surgir uma "Constituição Cidadã", com previsão de voto direto e de garantias ao livre exercício de direitos individuais e sociais.

Com olhar de espanto, o jovem Cascão expõe uma dúvida:

– Ah, então, não é tão fácil assim!? Há pessoas atentas a esse plano? 

O capitão Cebolinha, pensativo, tenta esclarecer:

– Não sei! De fato, não tenho certeza. Há uma divisão social no mundo. Mas, como hoje a maioria só pensa em si e se informa apenas pela rede social, pode dar certo. A classe dominante estará bem financeiramente em eventual regime não democrático. Ninguém vai se importar com autoritarismo na condução do país, com ausência de transparência e de investigações contra a corrupção, muito menos, com o descaso dos governantes para com os mais pobres desse país. Vamos fazer dar certo, teremos a conivência de parte significativa da sociedade. "Bora"?

Intrigado, Cascão questiona o projeto autocrático de poder e pergunta novamente:

– Não estou certo do sucesso desse plano. Sei que é para o nosso bem  e de todos, mas será que vamos conseguir?

Com eloquência, o esperto Cebolinha traz um exemplo de sistema autoritário:

Na Alemanha, o líder da nação conseguiu reunir defensores em torno de um governo pautado em supremacia racial, que desprezava a democracia e o parlamento, incorporou o racismo científico e o antissemitismo. O regime ditatorial nazista durou mais de dez anos e exterminou e torturou milhões de pessoas[1]. Note que aquele "gênio", governante autoritário, não tinha ao seu dispor as formas de comunicação imediata e massiva que temos hoje. Então, penso que pode dar certo, sim!

Animado, aceitando a proposta, o líder Cascão finaliza a prosa:

– Entendo, foi genial mesmo, lembro dessa história. Com certeza, podemos ter êxito. Afinal, nosso objetivo é ter uma pátria forte economicamente e a família tradicional preservada, nada é mais importante que isso. Esse plano é infalível! Tenho que ir agora, se puder me manda detalhes pelo "zap", agradeço.

***

Cruz credo! Essa conversa provoca pânico a qualquer cidadão que preza por sua liberdade. Melhor parar por aqui!

"É preciso estar atento e forte", já pensou se alguns desatinados, guiados por um grupo mal-intencionado, colocam esse projeto de poder em prática? Certamente, se encontrarem uma população carente, desunida e mal informada, podem lograr êxito na instauração da ditadura.

Importante destacar que, segundo estudos[2], facilitar o acesso às armas de fogo não é uma medida eficaz contra a violência, o armamento acessível em vez de diminuir a criminalidade, apenas aumenta o número de mortes, homicídios, suicídios e acidentes domésticos. Outrossim, essa política pode gerar o falso juízo de que o cidadão está autorizado a se defender com as próprias mãos, diminuindo ou excluindo a responsabilidade estatal na área da segurança pública. Esse cenário social armamentista e autoritário reflete a frase atualíssima da filosofa alemã Hannah Arendt : "Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança".

A educação de qualidade e o combate às falsas informações, notadamente em redes sociais, são cruciais para a manutenção de democracia de um país. As publicações enganosas em massa induzem pessoas a apoiarem projetos com objetivo de consolidar governos autoritários. Isso porque a falta de conhecimento sobre direitos e deveres propícia terreno fértil para de difusão de “verdades absolutas” na área dos costumes, religião e família, por exemplo. É essencial que não haja empecilho à liberdade e participação popular nas decisões políticas, sociais e econômicas de uma nação organizada democraticamente, o que pode ser efetivado pela educação. No particular, perfeita a lição de Nelson Mandela: "Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar. A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo."

É urgente que, além da democracia prevista em Lei, sejam implementadas políticas de fortalecimento dos princípios democráticos com qualificação do ensino fundamental público. O livre exercício da cidadania pressupõe ações do Estado para garantia de condições de vida digna aos necessitados e aplicação de medidas antidiscriminatórias[3]. No atual estado civilizatório, não podemos admitir a ruptura de um regime democrático, sob pena de violação de direitos inerentes à pessoa humana, como liberdade de pensamento, igualdade de gênero e racial, direito ao voto secreto e periódico, à saúde coletiva, à educação qualificada, ao trabalho digno, à segurança pública, ao lazer, etc.

No Brasil de outrora, pessoas honradas e sedentas por liberdade foram "mosca na sopa"” do governante autoritário. Nesse contexto, um movimento social surgiu nas ruas e reinstalou a democracia contra os "podres poderes" e o "cálice" que vigiam no país. Admitir o retorno do regime ditatorial revela falta de responsabilidade social e "zero" compromisso cívico. No nosso país, a atitude para conservação da democracia é um dever de todos e deve ser uma luta constante.

Seja democrático! Viva a democracia!

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