Opinião

Desafios envolvendo capacidade civil e tratamento de dados

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14 de novembro de 2022, 13h15

Com o constante avanço da tecnologia e da internet, a oferta de produtos e serviços tem se tornado cada vez mais acessível e dinâmica. A forma de contrair obrigações mudou tanto, que atualmente é possível praticar inúmeros tipos de negócio jurídico por meio de poucos toques no celular.

Como não podia deixar de ser, as crianças e adolescentes também passaram a ter contato com essa nova realidade do mercado, celebrando pequenos negócios jurídicos por meio da internet, como a aquisição de jogos e aplicativos, compra de alimentos por aplicativos de entrega, compra de filmes sob demanda, dentre outros.

Essa realidade do comportamento dos menores traz importantes reflexões.

Desde sempre as crianças e adolescentes participam dos atos civis mundanos, contraindo direitos e obrigações e firmando negócios jurídicos de diferentes naturezas, como pagando pelo uso do transporte público, comprando revistas e materiais escolares e praticando tantas outras condutas sociais.

Nesse contexto, de acordo com parte da doutrina, o dinamismo das relações sociais no mundo atual faz com que seja necessária uma compreensão dos contratos pautada mais na atividade efetivamente exercida, do que propriamente na vontade manifestada pelos então contratantes. É a concepção do contrato sob um viés objetivo que baliza a análise do que esta parte da doutrina chama de relação contratual de fato. É o entendimento de condutas sociais típicas e mundanas como fontes de relações contratuais.

Segundo o estudo de Enzo Roppo, o fato constitutivo das relações contratuais objetivas "não é propriamente o contrato, mas sim o contato social estabelecido entre as partes, ao qual a lei atribui valor de fonte de relação e das respectivas obrigações e responsabilidade" [1]. Isto significa dizer que as relações contratuais de fato não derivam de um contrato entendido à luz do que dispõe a letra fria da lei, da análise dos requisitos legais que fundamentam a constituição de um vínculo contratual de forma desprendida da realidade fática, "mas de um complexo de circunstâncias e comportamentos o contato social que tomam o lugar do contrato" [2].

Sob tal perspectiva fica a seguinte questão: seria correto afirmar que a aceitação de termos de uso de aplicações de internet, a aquisição de bens dentro destas aplicações, a autorização para tratamento de seus dados e outras condutas atualmente praticadas por menores de idade no ambiente da internet, muitas vezes com muito mais familiaridade e conhecimento do que teriam seus próprios representantes, seria inválido por não observar os pressupostos legais que o constituem, em particular no que diz respeito à capacidade atribuída ao agente?

Quando analisamos as definições trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente ("ECA"), verificamos o seguinte conceito: "considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade" [3].

O Código Civil, por sua vez, estabelece que o menor de 16 anos deve ser representado por seus pais e/ou tutores na prática dos atos da vida civil, enquanto os maiores de 16 e menores de 18 anos devem estar apenas assistidos por seus pais ou responsáveis. Essa distinção é denominada como incapacidade absoluta e relativa, respectivamente.

Como boa parte dos negócios jurídicos envolvem dados pessoais de seus contratantes, ao tratar o tema a  Lei Geral de Proteção de Dados ("LGPD") também distingue a capacidade dos menores, dedicando uma seção inteira para dispor a respeito do tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes.

De acordo com o artigo 14 da LGPD, "o tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente".

Já o §1º deste mesmo artigo pontua que "o tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal".

Em uma primeira análise, tal dispositivo nos leva a crer que somente é possível utilizar dados pessoais de crianças mediante a autorização de seus responsáveis legais, mesmo nos casos em que, em tese, seria aplicável outra base legal (justificativa que permite uma empresa utilizar dados pessoais) prevista nos artigos 7º e 11 da LGPD.

Porém, a doutrina dominante evoluiu no sentido de que, desde que seja respeitado o princípio do melhor interesse da criança, as outras bases legais previstas na LGPD também seriam aplicáveis, considerando ainda que a utilização apenas do consentimento poderia limitar ou restringir as operações da empresa. Inclusive, tal entendimento foi reforçado recentemente por estudo preliminar apresentado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados [4].

Dessa forma, a utilização dos dados pessoais em um negócio jurídico, ainda que seja por um menor de idade, se justifica pelo próprio cumprimento de tal negócio jurídico, sendo dispensável a obtenção do consentimento dos responsáveis legais para tanto.

Portanto, em síntese, é possível concluir que sob a ótica da LGPD é permitido o tratamento de dados de menores, inclusive sem a autorização prévia por parte dos responsáveis legais, mas desde que seja respeitado o melhor interesse da criança.

Nesse contexto, considerando o real comportamento da sociedade, o tal dos usos e costumes, não nos parece razoável interpretar como nulo todos os atos civis praticados por menores seja na vida mundana, seja na internet. Apesar de as discussões jurisprudenciais sobre o tema ainda não serem vastas, em nosso ponto de vista é prudente realizar uma análise casuística antes de declarar como nulo o negócio jurídico apenas em razão da capacidade atribuída ao agente.

Quando analisamos a capacidade civil das crianças e adolescentes para celebração de negócios jurídicos pela internet, levando-se em consideração os costumes dos consumidores brasileiros, sendo o produto destinado a menores e as atividades ofertadas lícitas, ao nosso ver, os adolescentes podem sim contrair direitos e obrigações na internet, fornecendo seus dados de identificação para cadastro em plataformas, aderindo a termos de usos, adquirido produtos e serviços, tudo mediante a assistência dos seus representantes legais.

O mundo atual é digital. Nessa nova realidade as crianças e adolescentes dependem da conexão com a internet inclusive para suas atividades triviais, como acompanhar seus estudos e se relacionar com amigos e familiares.

Nesse contexto, diferentemente de crianças, que requerem uma supervisão da sua interação com aplicativos e conteúdo da internet, para o adolescente a "assistência" dos responsáveis no dia a dia é materializada por alguns comportamentos padrão, como pela concessão de acesso à internet, fornecem meios de pagamentos para compra de produtos e serviços, gestão de pagamento dos produtos e serviços consumidos pelo adolescentes na internet, uso das travas e controles disponibilizados pelas ferramentas de gestão de internet, entre outros.

Portanto, seja nos atos do mundo analógico, seja nos atos do mundo digital, para desqualificar o negócio jurídico contraído pelo adolescente é preciso considerar se houve de fato prejuízo em decorrência da celebração do negócio, se não houve culpa exclusiva ou concorrente dos pais pela inobservância do dever de vigilância e educação, se houve abuso do vendedor ou do prestador de serviço, enfim, em que circunstâncias se deu o contato social que originou o negócio.

A ausência de uma análise crítica não apenas pode tornar demasiadamente complexa, se não impraticável, a realização de muitas atividades empresariais, como também pode prejudicar o desenvolvimento dos menores, vetando a eles a oportunidade de se prepararem desde cedo para as relações de consumo e de praticar atos da vida civil.

Em nosso ponto de vista, em uma sociedade preponderantemente de consumo e competitiva, esta experimentação do menor da prática de determinados atos da vida civil, seja na internet, seja na cantina da escola, é um importante elemento para o seu crescimento e aprendizado.

Essa experimentação permite ao menor ter contato com o consumo e com a oferta e publicidade de produtos, possibilitando-lhe criar um sentimento crítico quanto ao que lhe interessa e o que não lhe interessa; passa a comparar produtos, de forma a lhe permitir diferenciar o que é bom do que é ruim; passa a ter noção de dinheiro e de economia; o menor aprende que há limitações acerca daquilo que se pode ter; enfim, a prática dos atos da vida civil, ainda que em menor medida e com menores impactos e riscos, invariavelmente contribui com a preparação dos menores para a vida adulta e para as dificuldades e desafios que lhes serão impostos.

Portanto, tanto do ponto de vista da prática de atos da vida civil, quanto do ponto de vista de proteção de dados, não nos parece ponderado perceber as lacunas da legislação aplicável como barreiras intransponíveis para exclusão dos menores de idade da prática de condutas socialmente típicas e corriqueiras, ainda mais em um mundo preponderantemente virtual.

O menor não deve ser desconsiderado ou excluído das atividades da vida civil. A legislação vigente é suficiente à defesa dos mais vulneráveis, cabendo apenas às plataformas da internet e, até mesmo aos pequenos comerciantes, tratar os menores com as cautelas e cuidados que a lei requer.

 


[1] ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009.

[2] ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009.

[3] Lei 8069/90, art 2.

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