Opinião

Diálogo e efetividade no controle

Autor

  • Cezar Miola

    é conselheiro-ouvidor do TCE-RS e presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon).

14 de novembro de 2022, 6h35

Eu era um jovem servidor quando vi chegar à pequena prefeitura onde trabalhava uma equipe do Tribunal de Contas. Homens de fisionomia austera e de poucas palavras, cujos procedimentos impactaram, fazendo-me crer que aquele seria um "padrão". Fiscalização séria e eficiente, por certo, mas o fato é que, nos dez anos em que atuei no serviço público municipal (boa parte deles anteriores à Carta de 1988), convivi com um controle externo marcado pela rigidez formal e por uma relação fortemente verticalizada entre a Corte de Contas e os jurisdicionados. Época de poucos recursos tecnológicos e de forte apego à legalidade estrita. De um lado, certa dose de temor; por outro, grande dificuldade de se estabelecer dinâmicas voltadas a uma relação processual pacificadora, pedagógica e verdadeiramente resolutiva ao que se apresentava em cada feito.

Enfim, outros tempos, distintas concepções e um processo que foi se aprimorando, o que posso testemunhar nesses 30 anos atuando na Casa de Contas gaúcha e no Sistema de Controle, iniciando pelo corpo técnico, incluindo uma década no Ministério Público de Contas e, já há um bom tempo, na função julgadora. Aliás, volvendo àqueles dias de auditor de controle externo, lembro de ter encontrado, em mais de uma repartição que visitei, a conhecida frase: "Você, que está chegando agora, criticando o que está feito, deveria estar aqui na hora de fazer".

Mas também é preciso ressaltar (o que digo, em parte, pela própria experiência): havia muitas deficiências (mormente no plano local) nas estruturas administrativas. Assim, verificavam-se problemas como precariedade do controle interno, baixa profissionalização e qualificação dos quadros, planejamento apenas "esporádico" e transparência material quase nenhuma. Não se está situando tudo numa vala comum, e sim, apenas, indicando uma situação vivida em muitas esferas. E, ao mesmo tempo, enaltecendo o conjunto de avanços notáveis, sobretudo a partir da atual Constituição: ampliação do recrutamento por concurso, Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei de Acesso à Informação, investimentos no autocontrole e nas práticas de integridade são alguns exemplos; há muitos outros.

Esses movimentos virtuosos, porém, ainda estão longe do preconizado no regime jurídico-administrativo como práticas disseminadas e internalizadas em todos os Poderes, órgãos e entidades da federação. E, por conta disso, quando o controle externo atua — e o faz no imperioso exercício de um dever/poder — não raro se lhe atribui indevida ingerência. Sem incorrer na mesma injusta generalização, o fato é que, por vezes, os Tribunais de Contas precisam agir em defesa da juridicidade que deixou de ser observada por determinados atores da cadeia de atribuições e responsabilidades, suprindo lacunas pontualmente verificadas, p. ex., em controles internos cuja atuação, em certos casos, ficou aquém da estatura que lhe conferiu a Lei Maior. Não se trata, pois, de interferir nos processos de escolhas e de gestão, sabidamente reservados a quem investido legítima e democraticamente. Cuida-se, na verdade, de zelar para que essas mesmas escolhas se materializem em sintonia com as regras e os princípios constitucionais, o que, induvidosamente, vai ao encontro dos legítimos anseios da população. Aliás, no regime democrático, e à luz do princípio republicano, só se pode esperar que os atores institucionais — e todos aqueles que se relacionam contratualmente com o espectro estatal — sejam convergentes com a necessidade de controles efetivos, protetivos do interesse público e solidários em defesa da probidade, da transparência, da eficiência e da eficácia na gestão. Enfraquecer a fiscalização só contribui para fragilizar a própria democracia.

Porém, isso não significa ignorar os espaços e as oportunidades de melhoria. Assim é que, para ilustrar, com o seguir dos anos, vem sendo possível vislumbrar a adoção de instrumentos de solução de controvérsias baseados na consensualidade, os quais têm crescido no âmbito dos Tribunais de Contas, especialmente dentro da perspectiva dos controles preditivo e preventivo (claro, à luz das respectivas normas de regência e tendo-se presente, em qualquer caso, a indisponibilidade do interesse público). O caminho da autocomposição, diga-se, já é percorrido no âmbito do Poder Judiciário e por entes da administração, sendo também objeto de pesquisas e reflexões em diferentes espaços da academia e de grupos de estudos.

É nesse cenário que a atuação dialógica e consensual, guiada essencialmente por um viés prospectivo, tem ganhado grande relevância, sob diversas nomenclaturas, dentre as quais se destacam os Termos de Ajustamento de Gestão (TAGs) e as Mesas Técnicas.

Dentro do espectro normativo aplicável, destaca-se a Lei Federal nº 13.655/2018, que, alterando a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), acrescentou um permissivo geral para regulamentar a ação consensual das autoridades administrativas (artigo 26).

Relevante notar, ainda, que a alternativa da celebração de acordos em substituição a medidas unilaterais também está diretamente ligada a um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos na Agenda 2030, assinada pelos 193 Estados-membros da Organização das Nações Unidas, bem como se relaciona com a Declaração de Moscou de 2019, no âmbito da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (Intosai).

Ademais, a adoção de métodos consensuais prestigia a segurança jurídica e valoriza o próprio diálogo que deve pautar as relações institucionais e com a sociedade, especialmente em prol do aperfeiçoamento da administração pública e da boa governança, bem assim da adequada destinação de recursos públicos.

Dos 33 Tribunais de Contas brasileiros, pelo menos 25 (75%) já possuem regulamentação relativa a instrumentos para viabilizar esse controle com o viés da consensualidade. E, mesmo dentre aqueles sem previsão normativa, alguns já se utilizaram, exemplificadamente, de TAGs. Como resultado, nos últimos anos, mais de 200 acordos foram firmados pelos tribunais e seus jurisdicionados em diversas áreas, destacando-se temáticas como saúde, educação, despesas de pessoal, administração tributária, equilíbrio atuarial da previdência, obras de engenharia e desestatizações.

Em tal contexto, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) tem estimulado os Tribunais de Contas a, quando possível e juridicamente viável, valorizarem a adoção de acordos nos processos de controle externo. Sempre com o objetivo de se efetivar os princípios da eficácia e da eficiência, nos limites das balizas postas no ordenamento jurídico vigente. Nesse sentido, recentemente, a entidade editou a Nota Recomendatória Atricon nº 02/2022.

Vale ressaltar: não se cogita de qualquer "afastamento" dos encargos constitucionais e legais do controle. Auditar, fiscalizar, julgar e, se necessário, responsabilizar continuarão a ser exercidos na plenitude, porque se trata de uma competência constitucional expressa e indelegável. Mas esse novo olhar busca ampliar a participação dos agentes relacionados à quaestio em foco, conferir mais transparência e economia de tempo na resolução de dissensos e promover maior adequação das decisões às especificidades das situações, viabilizando a célere e efetiva correção de rumos.

É o controle contemporâneo, sancionador quando necessário, mas igualmente dedicado a contribuir na melhoria da gestão e da governança.


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