Opinião

Perse pela Lei 14.148/21: ilegalidades da IN nº 2.114/2022

Autor

  • Gabriel Magalhães Borges Prata

    é advogado tributarista sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia LLM em Direito Tributário pela Queen Mary Universidade de Londres mestre pela PUC-SP e professor conferencista do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

13 de novembro de 2022, 9h12

Como já era esperado — e temido — pelas empresas dos setores beneficiados pelo Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), no último dia 1º de novembro foi publicada a Instrução Normativa nº 2.114/2022, que elencou uma série de restrições à sua fruição.

Vale lembrar que o programa foi implementado pela Lei 14.148, de 3 de maio de 2021, e visou, dentre outros objetivos, ao estabelecimento de "ações emergenciais e temporárias destinadas ao setor de eventos para compensar os efeitos decorrentes das medidas de isolamento ou de quarentena realizadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19" (artigo 1º); bem como a instituição do "o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse)" (artigo 2º).

Além da previsão de modalidade específica de transação tributária para contribuintes do setor de eventos, a Lei do Perse previu, ainda, em seu artigo 4º, a redução de alíquotas de alguns tributos a 0%, pelo prazo de 60 meses, nomeadamente: (1) Contribuição ao PIS/Pasep; (2) Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); (3) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); (4) Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ).

Referido dispositivo havia sido inicialmente vetado pelo presidente da República; tal veto, no entanto, foi derrubado pelo Congresso Nacional, de modo que a norma em questão foi promulgada em 18 de março do presente ano, quando se tornou válida e vigente.

Passados quase nove meses desde o seu advento, a instrução normativa em questão, a pretexto de regulamentar o benefício, acabou por acarretar indevidamente algumas restrições. E a primeira delas diz respeito à exigência de que, para fins de fruição das alíquotas reduzidas, as receitas e resultados decorrentes dos códigos do CNAE beneficiados (Portaria ME 7163/03) estejam relacionadas às atividades elencadas no artigo 2º da IN:

"Art. 2º O benefício fiscal a que se refere o art. 1º consiste na aplicação da alíquota de 0% (zero por cento) sobre as receitas e os resultados das atividades econômicas de que tratam os Anexos I e II da Portaria ME nº 7.163, de 21 de junho de 2021, desde que eles estejam relacionados à:
I – realização ou comercialização de congressos, feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de negócios, shows, festas, festivais, simpósios ou espetáculos em geral, casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas e casas de espetáculos;
II – hotelaria em geral;
III – administração de salas de exibição cinematográfica; e
IV – prestação de serviços turísticos, conforme disciplinado pelo art. 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008."

Com efeito, a Lei 13.418/21 elencou, em seu artigo 2º, § 1º, as atividades relacionadas direta ou indiretamente ao setor de eventos [1]. Dada a abrangência e generalidade dos conceitos utilizados em sua redação, o §2º do referido dispositivo [2] delegou ao Ministério da Economia a competência para especificar os Códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae) que se enquadrariam na definição do setor de eventos.

Tal delegação demonstra que o próprio legislador reconhece a insuficiência dos conceitos abertos por ele empregados para a definição do setor de eventos; não por outro motivo foram nele incluídas as pessoas jurídicas que exercem apenas indiretamente as atividades relacionadas pela lei. Consequentemente, a definição denotativa e taxativia das atividades vinculadas ao setor, mediante ato infralegal, está em consonância com a almejada segurança jurídica.

Nessa esteira, foi publicada a Portaria ME 7.163/03, a qual elencou os códigos de atividades em dois anexos. De sua leitura, é possível notar que nem sempre é fácil vislumbrar vínculo ou relação direta ou indireta dos Cnaes com as atividades descritas no artigo 2º da lei. Tal verificação, contudo, não nos parecer ser papel do intérprete, eis que a norma estabelece presunção absoluta, no sentido de se admitirem pertencentes ao setor de eventos as atividades por ela relacionadas. É dizer, o juízo de conveniência e oportunidade acerca pertencimento dos Cnaes listados ao setor de eventos coube ao legislador infralegal [3].

De tal modo, não seria dado à Receita Federal exigir a comprovação, para fins de fruição do benefício em questão, de relação direta ou indireta entre as atividades listadas na Portaria e aquelas descritas no artigo 2º da Lei do Perse.

Ademais, tal prova seria por demais tormentosa e sujeita a incontáveis subjetividades, exatamente em razão da vagueza e generalidade dos conceitos empreendidos no artigo 2º da lei do Perse. Exemplificativamente, empresas que exercem atividades de vigilância e segurança teriam de demonstrar, para fins de fruição do benefício, que os tomadores de seus serviços são hotéis, empresas de turismo ou outras descritas no referido diploma. Não nos parece, a partir da leitura do texto legal, que tal exigência seria razoável.

Ainda nessa linha, o parágrafo único do artigo 2º da instrução normativa determinou que o benefício fiscal não seria aplicado "às receitas e aos resultados oriundos de atividades econômicas não relacionadas no caput ou que sejam classificadas como receitas financeiras ou receitas e resultados não operacionais".

Mais uma vez, entendemos que não há previsão legal a embasar o entendimento da Receita. Muito pelo contrário, a literalidade do caput do artigo 4º da Lei 14148/03 permite concluir que o benefício [4] tem caráter subjetivo [5], ou seja, é voltado às pessoas jurídicas que exercem as atividades beneficiadas pela lei, as quais poderão ser valer das alíquotas reduzidas a zero sobre o resultado auferido, independentemente da atividade da qual decorra.

Confirma esse raciocínio o artigo 4º da Lei, ao determinar que as alíquotas reduzidas serão aplicadas sobre "resultado auferido pelas pessoas jurídicas" que exerçam as atividades relacionada ao setor de eventos. Tal dispositivo, ao contrário do que entende a instrução normativa, não limita o benefício às receitas decorrentes das atividades teoricamente beneficiadas, ao contrário de outras legislações que tratam de regimes e benefícios fiscais. A título de exemplo, cite-se a Lei Complementar 123/06 (Simples Nacional), que determina a segregação de receitas para fins de tributação por alíquotas específicas conforme o seu enquadramento em dois ou mais anexos do diploma.

O segundo aspecto controvertido diz respeito à obrigatoriedade de que as empresas a serem beneficiadas, em 18 de março de 2022, estivessem exercendo as atividades previstas no Anexo I da Portaria 7163/21, e ainda detivessem inscrição regular no Cadastur, para fins de aplicação do benefício às atividades previstas no Anexo II da mesma portaria.

A imposição de tal condição afronta o Princípio da Legalidade, já que, se a Lei 14.148/21 nada previu nesse sentido, não é dado à legislação infralegal fazê-lo. Há, inclusive, notícias de decisões do Poder Judiciário que tem afastado tal exigência para fins de fruição da transação veiculada pelo Perse, o que reafirma o nosso entendimento [6].

A terceira e não menos relevante restrição é a expressa vedação do benefício às empresas enquadradas no Simples Nacional, contida no parágrafo único do artigo 4º da lei.

Também nesse ponto a Instrução Normativa andou mal. É certo que o artigo 24 e respectivo parágrafo único da Lei Complementar 123/06 determina que os optantes do regime não poderão utilizar ou destinar qualquer valor a título de incentivo fiscal, ou se valer de alteração em base de cálculo, alíquotas, percentuais ou outros fatores que alterem o valor dos tributos apurados na forma da referida lei.

Tal dispositivo, no entanto, há de ser interpretado (aplicado) com o devido grão de sal. A lei do Perse instituiu benefícios com o claro intuito de auxiliar a recuperação do setor mais atingido pela pandemia ocasionada pela Covid-19. A excepcionalidade da situação há de ser levada em consideração, pois, do contrário, corre-se o risco de se conferir claro tratamento anti-isonômico às empresas do Simples, igualmente (ou talvez mais gravemente) atingidas pelas consequências econômicas da pandemia.

Não faria sentido impor-se tributação mais gravosa justamente aos contribuintes para as quais o legislador constituinte previu tratamento mais favorável. Além de impedir a completa recuperação do setor, já que boa parte das empresas — quiçá a maioria! — não estaria alcançada pela redução de alíquotas, tal tratamento desigual implicaria clara vantagem concorrencial aos contribuintes beneficiados, em violação aos Princípios da Livre Concorrência e do tratamento favorecido às empresas de pequeno porte (artigo 170, IV e IX da CF). E nem se alegue a necessidade de lei complementar para tanto, já que a Constituição Federal previu a competência concorrente da União para estabelecer critérios especiais de tributação em ordem a prevenir o desequilíbrio concorrencial (artigo 146-A).

Infelizmente, a Instrução Normativa 2.114/2002 confirmou o receio dos contribuintes do setor de eventos, e ainda o fez com demasiado e injustificado atraso. Esse atrasou acarretou imensa insegurança jurídica e expôs a eventuais atuações aqueles que, por direito e necessidade, passaram a fruir das alíquotas reduzidas imediatamente após a promulgação do benefício, sem observar as restrições impostas pela Receita.

Como de praxe, tais controvérsias terão de ser resolvidas pelo Poder Judiciário. E o setor de eventos, já tão combalido pela pandemia, terá de conviver com idiossincrasias administrativas e judiciais até o advento de uma solução definitiva pelos tribunais superiores.


[1] Art. 2º Fica instituído o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), com o objetivo de criar condições para que o setor de eventos possa mitigar as perdas oriundas do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

§ 1º. Para os efeitos desta Lei, consideram-se pertencentes ao setor de eventos as pessoas jurídicas, inclusive entidades sem fins lucrativos, que exercem as seguintes atividades econômicas, direta ou indiretamente:

I – realização ou comercialização de congressos, feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de negócios, shows, festas, festivais, simpósios ou espetáculos em geral, casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas e casas de espetáculos;

II – hotelaria em geral;

III – administração de salas de exibição cinematográfica; e

IV – prestação de serviços turísticos, conforme o art. 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008.

[2] § 2º. Ato do Ministério da Economia publicará os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) que se enquadram na definição de setor de eventos referida no § 1º deste artigo.

[3] Esse raciocínio se confirma a partir de leitura de algumas das atividades eleitas, as quais poderiam em princípio despertar questionamentos quanto à sua relação com o setor de eventos. É o caso do CNAE 5211-7-99 – DEPÓSITOS DE MERCADORIAS PARA TERCEIROS, EXCETO ARMAZÉNS GERAIS E GUARDA-MÓVEIS, ou mesmo do CNAE 9311-5/00 – GESTÃO DE INSTALAÇÕES DE ESPORTES. Tais códigos não denotam, por si, qualquer vínculo direto ou indireto com o setor de eventos. Trata-se, no entanto, com dito acima, de discricionariedade legislativa exercida, por delegação, pelo Poder Executivo.

[4] Entendemos, na esteira das lições de Paulo de Barros Carvalho, que a lei do Perse veicula norma isentiva, na medida em que se trata de norma de estrutura que mutila o aspecto quantitativo da regra-matriz de incidência do IRPJ, CSLL, do PIS e da Cofins, notadamente as alíquotas, que foram reduzidas ao percentual zero. (Direito Tributário, Linguagem e Método,. 8ª ed. São Paulo: Noeses, p. 607)

[5] Embora a técnica utilizada pelo legislador para veicular o benefício tenha sido a redução de alíquotas, que atinge o critério quantitativo, a subtração parcial da eficácia técnico sintático da regra matriz de incidência depende de outra condicionantes: pessoas que exerçam as atividades veiculadas na Portaria. Trata-se, pois, de isenção subjetiva, ou seja, voltada a determinada classe de contribuintes. Nas palavras de Luís Eduardo Schoueiri, "a utilidade dessa classificação estará em determinar qual o aspecto relevante apara a descisão quanto à aplicação de uma ou outra norma; se as incidências variam conforme o aspecto subjetivo, importa identificar essa características, definidno-se, então, os regimes tributários aplicáveis conforme o aspecto subjetivo, não obstante a situação pareça equivalente do ponto de vista objetivo" (Direito Tributário, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 711.)

[6] Nesse sentido decisões proferidas nos Processos 0807178-48.2022.4.05.8300 e 5016432-22.2022.4.04.7200.

Autores

  • é LLM em Direito Tributário pela Queen Mary, Universidade de Londres, mestre pela PUC/SP, professor conferencista do IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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