Opinião

PL da Lei de Processo Administrativo: inconstitucionalidade por violar pacto

Autor

  • Felipe Klein Gussoli

    é doutorando em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUC-PR e advogado do Bacellar & Andrade Advogados Associados em Curitiba.

9 de novembro de 2022, 13h09

No fim do mês de outubro debateu-se no 36º Congresso Brasileiro de Direito Administrativo o anteprojeto de atualização da Lei Federal de Processo Administrativo (Lei 9.784/1999), desde setembro de 2022 convertido em PLS 2.481/2022 [1]. O projeto de lei em trâmite no Senado contribui com uma série de importantes atualizações no processo administrativo, e é resultado de trabalho realizado por Comissão de Juristas nomeada pelos presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal.

A polêmica do projeto está na alteração que se pretende conferir ao âmbito de aplicação da legislação. O artigo 1º, que limita atualmente a aplicação ao âmbito federal, seria alterado para que a lei se aplicasse nacionalmente "à Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios". Essa proposta viola o pacto federativo?

A interpretação corrente sobre o âmbito de aplicação da Lei 9784/99, admitida expressamente no artigo 1º, é de que a norma só se aplica à Administração Pública Federal. O próprio PL 2.464/1996 que originou a Lei 9.784/99 tratou-a como lei federal apenas.

A exclusão dos outros entes federativos do âmbito de abrangência da Lei nº 9.784/99 se justificou na autonomia dos estados, Distrito Federal e municípios para de auto-organizarem, nos termos do artigo 1º e artigo 18 da CF, de modo que a exteriorização de competências via processos e procedimentos administrativos mereceria regulação própria de cada entidade [2]. Em função da autonomia de que os entes federativas gozam para organização seus bens, estrutura, serviços e pessoal, a maneira como externalizam suas competências por meio de procedimentos administrativos deve ser definida por norma editada pelo próprio ente federativo, salvo apenas naquelas matérias que o Poder Constituinte entendeu necessária uma unificação mínima em sua regulação, a exemplo do artigo 37 da CF [3].

Por isso tradicionalmente se excluiu do conteúdo das normas constitucionais de divisão de competências legislativas o processo e o procedimento administrativo das previsões insertas no artigo 22, I e artigo 24, XI da CF [4]. Esses dispositivos constitucionais cuidariam apenas das competências legislativas privativa e concorrente acerca de processo e procedimentos judiciais [5]. Como não há norma expressa que adjetive o processo ou procedimento como administrativos na Constituição, o privilégio deveria ser concedido ao princípio federativo.

Essa foi a interpretação corrente na história da legislação administrativa brasileira. Apesar de ausente decisão do STF sobre o tema, reiteradamente o STJ foi chamado a decidir sobre a aplicação da Lei 9.784/99 a outros entes federativos. Em inúmeras ocasiões a fundamentação utilizada pela Corte incitava o respeito à autonomia federativa, e se é verdade que permitia a aplicação direta da Lei Federal de Processo Administrativo a estados e municípios, fazia-o invocando uma espécie de "analogia integrativa" (v.g. Recurso Especial 1.251.769-SC).

A própria Súmula 633 do STJ, que pacificou o assunto [6], foi editada a fim de fazer aplicar a o diploma federal apenas subsidiariamente aos entes que não possuem lei própria, dando mostras de que a Corte entende pela autonomia federativa para editar normas processuais e procedimentais de Direito Administrativo processual. Ao editar a Súmula em 2019 foram citados 10 precedentes entre 2011 e 2017, evidenciando a interpretação constitucional do artigo 22, I e artigo 24, XI da CF encampada jurisprudencialmente.

O mais próximo que o STF chegou do tema foi na ADI 6019, que julgou a inconstitucionalidade da regulação do prazo decadencial para anulação de atos administrativos no estado de São Paulo. Lá o STF entendeu lícita a regulamentação da matéria pelo Estado federado, com base na competência legislativa residual do artigo 25: "Trata-se, na verdade, de matéria inserida na competência constitucional dos estados-membros para legislar sobre direito administrativo (artigo 25, §1º, CF/1988)" [7]. Ou seja, a interpretação corrente da Lei 9.784/99 é a de que, por se tratar de norma afeta ao Direito Administrativo, aplica-se exclusivamente à União [8], posta a proibição de regulação nacional no tema. A Lei 9.784/99, declaradamente federal, se aplica aos demais entes subsidiariamente e em temas de processo administrativo tão somente porque reproduz conteúdo da Constituição Federal sobre garantias e direitos fundamentais do acusado ou interessado em alguma relação jurídica processual administrativa [9].

Mas a Comissão de Juristas responsável pela produção de anteprojeto sugeriu a alteração do âmbito de aplicação da lei para âmbito nacional. Na exposição de motivos do anteprojeto a Comissão de Juristas justificou a mudança na premissa de que o artigo 24, XI da CF prevê competência para a União legislar concorrentemente sobre normas gerais de procedimentos em matéria processual. Consta na exposição de motivos que isso seria "fundamental para, no âmbito da nossa federação com mais de cinco mil entes, a uniformização de parâmetros garantidores mínimos de direitos dos administrados nas suas relações processuais com a Administração Pública brasileira e os respectivos órgãos de controle". Isto é, o PLS 2.481/2022 parte da premissa de que a União pode legislar normas gerais sobre procedimento administrativo, cabendo aos estados, Distrito Federal e municípios legislar em complementação às normas gerais, em função do artigo 24, §2º e artigo 30, II da CF.

A orientação interpretativa apresentada pela Comissão de Juristas não é inovadora, e já foi defendida por estudiosos da Lei nº 9.7894/99 em outras ocasiões [10]. Mas não é a interpretação corrente dos artigos 22, I e artigo 24, XI da CF, como visto.

Pode o legislador agora converter a interpretação que se dava à época da edição da Lei 9.784/99 para dizer que procedimento em matéria processual administrativa é a partir de agora competência concorrente legislativa? Sem dúvida, esse espaço é conferido ao legislador, que inclusive por mutação constitucional pode alterar o sentido que se dava ao artigo 24, XI da CF para abarcar também os procedimentos administrativos.

A favor da interpretação renovada do artigo 24, XI da CF tem-se: 1) a aplicação forçada e indistinta da Lei 9.784/99 a todos os entes já há anos, à revelia de um sentido forte de federação, o que possui raízes na histórica do federalismo brasileiro; e 2) o diminuto número de entes federativos que entre 1988 e 2022 editaram leis próprias de processo administrativo [11].

Contra a interpretação renovada está o reforço indireto de um federalismo centralizado, que tolhe as competências e poderes dos demais entes e sua criatividade na regulação de suas realidades particulares.

Assim, a não ser que se justifique a mudança súbita da interpretação constitucional do artigo 24, XI da CF por iniciativa do legislador, ter-se-á inconstitucional a alteração do artigo 1º da Lei 9.784/99 do projeto de lei em tela, por inescusável violação ao princípio federativo.

Renovada a interpretação da norma do artigo 24, XI da CF, bem como definido se também há espaço ali para a competência suplementar dos Municípios, nem assim a questão estará resolvida. Caso se entenda que há mudança legítima de interpretação, deve-se ainda assim respeitar os parágrafos do artigo 24 da CF e o princípio federativo para compreender no âmbito de regulação do legislador federal a possibilidade apenas de emissão de normas gerais sobre procedimento administrativo. Isto é, as "que ficam no estabelecimento de princípios, diretrizes, bases, a serem pormenorizados, detalhados, esmiuçados, pelos titulares da competência legislativa suplementar, nos termos postos na Constituição" [12]. Aos estados e municípios sempre restará a possibilidade de suplementar, complementar, especializar a legislação segundo suas necessidades regionais e locais (artigo 24, §2º e artigo 30, II da CF). Quando o fizerem, excluir-se-á do âmbito de incidência estadual, distrital ou municipal as normas especiais por ventura previstas na norma editada pela União.

A celeuma, nesse ponto, será identificar o que é norma geral e o que é norma específica ou especial. As duas espécies normativas abarcam definições relacionais e dependentes, e só a regulação concreta do procedimento administrativo revelará a natureza de uma norma e, por conseguinte, sua constitucionalidade à luz do artigo 24 e do princípio federativo. Essa não é tarefa fácil, e descuidá-la tende a enfraquecer o modelo federal de Estado e a finalidade de sua constitucionalização. A polêmica só começou, e caberá ao Congresso conscientemente resolvê-la.

 


[1] O evento foi realizado entre 26 e 28 de outubro de 2022 na sede da AASP em São Paulo pelo Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, e contou com a divulgação e apoio da Conjur. O PLS 2.481/2022 foi discutido na mesa "Anteprojeto de atualização da Lei nº 9.784/1999: o que se anuncia?". Participaram como debatedores o signatário conjuntamente com os professores Mauricio Zockun, Paulo Modesto e Vivian Valle.

[2]  ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais do processo administrativo no Direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 34 n. 136, p. 5-28, out./dez. 1997, p. 11.

[3] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 33/86.

[4] Artigo 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; Artigo 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XI – procedimentos em matéria processual.

[5] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 90.

[6] Súmula 633: "A Lei nº 9.784/1999, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria".

[7] ADI 6019, relator p/ Acórdão: ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 12/05/2021, Publicado 06/07/2021.

[8] "A Constituição da República confere ao Congresso a competência legislativa privativa em matéria de 'direito processual' (artigo 22, inciso I). Apesar de referido dispositivo lançar mão de uma expressão ampla, que abarcaria processos estatais com o um todo, dentro e fora do Judiciário, fato é que se consagrou no Brasil a interpretação de que referido mandamento não atribui à União a competência para editar normas nacionais sobre processo administrativo". (MARRARA, Thiago. Princípios do processo administrativo. Revista Digital de Direito Administrativo, Ribeirão Preto, vol. 7, nº 1, p. 85-116, 2020. p. 91-92).

[9] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 116.

[10] GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Âmbito de validade da lei de processo administrativo (Lei nº 9784/99)  para além da Administração Federal: uma proposta de interpretação conforme a Constituição de seu artigo 1º. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, nº 235, p. 233-255, jan./mar. 2004. p.  245-248; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 11. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 345; HARGER, Marcelo. Processo administrativo: aspectos gerais. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (Coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (Coord. de tomo). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

[11] É raro encontrar lei municipal de processo administrativo, sendo o maior exemplo o do Município de São Paulo. Em relação aos Estados, tem lei própria pelo menos 13 Estados: SP, PE, RJ, PA, SE, AM, MG, GO, MT, RS, AL, RO, PR. O DF fez remissão à lei federal.

[12] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Art. 24,  XI. In: CANOTILHO, J.J. Gomes et al (Coords.). Comentário à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 757

Autores

  • é professor da PUC-PR, doutorando em Direito pela UFPR, mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUC-PR e advogado do Bacellar & Andrade Advogados Associados em Curitiba-PR.

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