Opinião

Do garimpo ao mercado financeiro: comentários sobre o "caminho do ouro"

Autores

  • Thuan Gritz

    é sócio do Sade & Gritz Advogados especialista em Direito Criminal pela Associação Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST) pós-graduado em Direito Tributário pela ABDCONST) e pós-graduando em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

    View all posts
  • Pedro Gurek

    é sócio do Sade & Gritz Advogados ex-assessor do MPPR especialista em Direito Penal Econômico e pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC).

    View all posts

8 de novembro de 2022, 18h38

Longe das picaretas e bateias — ferramentas utilizadas em mineração de pequena escala —, os empreendimentos auríferos modernos contam com maquinários pesados avaliados em milhões de reais, afastando-se, na prática, da ideia de garimpo artesanal e rudimentar em detrimento da atividade com característica eminentemente empresarial.

Divulgação
Assim, embora não se desconheça que o garimpo é atividade secular e relevante no panorama histórico do Brasil, a evolução dos métodos de extração reflete maior preocupação, dentre outros pontos, também com o passivo ambiental.

Basta dizer que atualmente a atividade aurífera não mais se confunde com a simples lavra de aluvião de outrora, ou seja, mediante aquele humilde formato de garimpo manual. Isso porque os métodos rudimentares foram substituídos pela exploração mecânica.

Em resumo, as lavras de céu aberto se tornaram complexas e recorrem a métodos de desmonte hidráulico ou dragagem com o auxílio de enormes dragas e escavadeiras, deixando evidente que a garimpagem, faiscação e a cata foram superadas pela prospecção aluvionar dita mecanizada.

Há também uma preocupação com o uso de mercúrio durante o processo de extração do ouro, com profundo impacto ao meio ambiente e à saúde humana, bem como a extração do minério em Terras Indígenas (TI) e Unidades de Conservação (UC), deslocando, na sequência, as preocupações de natureza ambiental para o mercado financeiro.

Neste viés, o ouro tem importante participação no PIB nacional, ocupando posição de destaque no setor de mineração ficando atrás apenas do minério de ferro em números totais de exportação. Esta premissa é importante para compreender o caminho do ouro entre a extração até que se destaque na economia do país.

Por isso mesmo, sem a pretensão de exaurir o tema, o objetivo deste texto é apresentar o setor e, em outras oportunidades, aprofundar tópicos ligados à produção do ouro, inclusive na lavagem de ativos no país, sem prejuízo de outras repercussões.

Breve compreensão sobre a Cadeia de Produção do Ouro
Basicamente, a cadeia de produção regular começa na: 1) extração, passando, na sequência; 2) pelo transporte; 3) e pelo refinamento até chegar na 4) primeira aquisição (quando o metal é chamado de ‘ouro primário’).

A primeira aquisição é realizada obrigatoriamente num Posto de Compra de Ouro (PCO) vinculado a uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs), que são empresas autorizadas pelo Banco Central (Bacen) a vender o metal físico, já em barra ou lâmina (ouro secundário) no dito mercado de balcão.

Há, portanto, uma espécie de monopólio das DTVMs na aquisição do ouro primário, que nada mais é do que a compra do metal precioso diretamente dos garimpos, garimpeiros e junto aos demais membros da cadeia produtiva, razão pela qual o transporte e a primeira aquisição do metal seguem as regras estabelecidas nos artigos 38 a 41, da Lei 12.844/2013.

A partir de então, o mineral pode ser categorizado como: 1) ouro-ativo financeiro ou instrumento cambial, ou 2) ouro mercadoria, havendo tal distinção somente para fins tributários. No primeiro, há o recolhimento de Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) e do IOF, enquanto para o segundo incide apenas o ICMS.

Na condição de ativo financeiro (AF), é possível comprar o metal físico ou investir em contratos de ouro, fundos de investimento ou ações de mineradoras. Já o ouro enquanto mercadoria é aquele que pode ser comercializado, destinando-se à fabricação de joias ou componentes eletrônicos de celulares, computadores e servidores.

Portanto, se a atividade de extração deste mineral apresenta grande impacto ambiental é inegável a sua importância para a economia. O difícil estudo da problemática legislação permite compreender as lacunas legislativas e os riscos criminais atrelados ao setor, em especial pelo crescimento da tecnologia e investimentos que não foram acompanhados pela legislação.

O conceito de garimpo e os critérios de rudimetariedade
No estudo Raio X do ouro, elaborado pelo Instituto Escolhas, consta que nos últimos seis anos cerca de 229 toneladas de ouro com indícios de ilegalidade foram comercializados no Brasil [1]. Segundo a pesquisa, elaborada entre 2015 e 2020, quase metade do ouro produzido e exportado tem origem duvidosa.

A tendência é que o manejo supostamente ilegal seja resultado, em grande parte, de uma legislação incompatível com o porte e a complexidade da atividade desenvolvida atualmente e da claríssima dificuldade em identificar a origem do minério.

Os empreendimentos auríferos, por explorarem recursos minerais de propriedade da União (artigo 20, inciso IX, da CF), dependem de ato administrativo, subdividindo-se os títulos minerários em duas tipologias: a) concessão de lavra (CL) ou; b) permissão de lavra garimpeira (PLG).

No primeiro caso, a CL exige uma série de estudos prévios, como, por exemplo: Estudo de Impacto Ambiental (EIA), Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (Rima) e relatório de pesquisa mineral (cf. disposições do Código de Minas), destinando-se, maiormente, às mineradoras; enquanto a PLG, concedida aos "garimpeiros", exige apenas licenciamento ambiental, sem nenhuma restrição às técnicas de extração.

É possível dizer que a Permissão de Lavra Garimpeira, criada pela Lei n° 7805/89, é o resultado de uma evolução legislativa que definia a atividade garimpeira a partir de critérios de rudimentariedade, tradicionalidade e historicidade — do Código de Minas de 1934 [2], passando pelo Código de Minas de 1940 [3] e o Código de Mineração de 1967 [4], a definição de garimpagem sempre esteve atrelada à ideia de lavra individual, com o auxílio de ferramentas e máquinas portáteis. Algo eminentemente simples.

Todavia, tal regime de permissão se afastou da figura idílica do garimpeiro (munido de picareta e bateia), redefinindo o conceito de garimpagem a partir da (i) tipologia do mineral lavrado, (ii) o local de execução da lavra e (iii) a modalidade de título minerário aplicável:

"Art. 10. Considera-se garimpagem a atividade de aproveitamento de substâncias minerais garimpáveis, executadas no interior de áreas estabelecidas para este fim, exercida por brasileiro, cooperativa de garimpeiros, autorizada a funcionar como empresa de mineração, sob o regime de permissão de lavra garimpeira.
§ 1º. São considerados minerais garimpáveis o ouro, o diamante, a cassiterita, a columbita, a tantalita e wolframita, nas formas aluvionar, eluvionar e coluvial; a sheelita, as demais gemas, o rutilo, o quartzo, o berilo, a muscovita, o espodumênio, a lepidolita, o feldspato, a mica e outros, em tipos de ocorrência que vierem a ser indicados, a critério do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
§ 2º. O local em que ocorre a extração de minerais garimpáveis, na forma deste artigo, será genericamente denominado garimpo."

Outrossim, o Estatuto do Garimpeiro (Lei n° 11.685/08) ignorou a concepção imagética de garimpo, limitando-se à mera descrição do local da atividade e o rol de substâncias minerais garimpáveis:

"Art. 2º Para os fins previstos nesta Lei entende-se por:
I – garimpeiro: toda pessoa física de nacionalidade brasileira que, individualmente ou em forma associativa, atue diretamente no processo da extração de substâncias minerais garimpáveis;
II – garimpo: a localidade onde é desenvolvida a atividade de extração de substâncias minerais garimpáveis, com aproveitamento imediato do jazimento mineral, que, por sua natureza, dimensão, localização e utilização econômica, possam ser lavradas, independentemente de prévios trabalhos de pesquisa, segundo critérios técnicos do Departamento Nacional de Produção Mineral — DNPM; e
III – minerais garimpáveis: ouro, diamante, cassiterita, columbita, tantalita, wolframita, nas formas aluvionar, eluvional e coluvial, scheelita, demais gemas, rutilo, quartzo, berilo, muscovita, espodumênio, lepidolita, feldspato, mica e outros, em tipos de ocorrência que vierem a ser indicados, a critério do DNPM."

Daí decorre a crítica de que a atual conceituação de garimpagem, desapegada de elementos de uma atividade econômica artesanal, viabiliza a emissão de PLGs para empreendimentos de médio e grande porte, que contam com alto investimento em maquinário (v.g. balsas, dragas, tratores e escavadeiras) e se aproximam da mineração em escala industrial.

Logo, empreendimentos de maior porte acabam gozando de benefícios idealizados ao garimpeiro tradicional, hipossuficiente e vulnerável, ao qual a Constituição Federal reservou tratamento favorecido e promoção econômico-social (ex vi do artigo 174, §3°), como, por exemplo, a simplificação de obrigações ambientais.

  • O transporte e a lavagem.

A inadequação do conceito de garimpagem e o título minerário adequado revelam apenas o início dos problemas legislativos ligados à temática, os quais se mostram mais graves entre a extração do metal precioso e o caminho até a primeira aquisição pelas DTVMs, sobretudo porque não há nenhum mecanismo de controle e garantia da origem do mineral.

Em resumo, a Agência Nacional de Mineração (ANM), que é quem detém competência para gerir, regular e fiscalizar a atividade (artigo 2°, da Lei 13.575/17), não possui nenhum sistema de controle do setor, pois permanece pendente a implementação do Sistema Brasileiro de Certificação de Reservas e Recursos Minerais.

O próprio MPF critica [5] os atuais instrumentos de controle das operações com ouro, limitados aos documentos fiscais preenchidos à máquina ou manuscritos a tinta ou lápis, conforme artigo 5°, da IN/SRF n° 49, de 2010. Neste ponto, aquiescemos com a irresignação ministerial acerca da necessidade de um sistema de garantia de origem do ouro cuja conferência não dependa de cópias extraídas de papel-carbono.

Isso porque, é esse tipo de controle "arcaico" que torna inviável a certeza quanto à origem do minério áureo e favorece o processo de esquentamento do ouro, pois institui um sistema de presunção de boa-fé do vendedor (artigo 39, §3°, da Lei 12.844/13).

Basicamente, o garimpeiro, parceiros e qualquer um dos membros da cadeia produtiva podem realizar o transporte do ouro dentro da circunscrição aurífera produtora até um PCO ou uma DTVM, portando apenas uma cópia do título autorizativo de lavra.

Contudo, a prova da regularidade da primeira aquisição será realizada com nota fiscal da cooperativa ou da instituição autorizada pelo Bacen, razão pela qual a interpretação da própria lei permite a conclusão de que apenas as cooperativas ou associações de garimpeiros podem atuar como intermediadoras entre garimpos e DTVMs (Artigo 2°, p.ú., da Lei 7.766/89).

Esta, porém, não é a realidade do Brasil! Diversos atravessadores formam um comércio ilegal, como, por exemplo, ocorre na Rua do Ouro, em Roraima, onde o minério extraído de garimpos ilegais é amplamente negociado antes de ser inserido na economia formal.

Independente disso, qualquer um destes atravessadores (ou intermediários lavando dinheiro) pode realizar a venda do ouro ilegal para uma DTVM, apresentando informação falsa sobre o local de extração na declaração de origem.

Isso ocorre, pois a legislação atribui ao vendedor a responsabilidade pela veracidade das informações que presta no ato da compra e venda do minério, ou seja, é aqui que o ouro proveniente de TI, UC ou fora dos limites da permissão de lavra pode ser "esquentado" com uma simples autodeclaração de origem.

Daí, então, observa-se que os crimes comumente relacionados à atividade acompanham a cadeia de produção do ouro, da extração irregular (Artigo 2° da Lei n° 8.176/91 e artigo 55, da Lei 9.605/98), passando pelo transporte sem a devida documentação (artigo 180, do CP) e até a venda do minério extraído ilegalmente (artigo 299, do CP) e sua colocação no mercado financeiro (artigo 1°, §1°, inciso I, da Lei 9.613/98).

Não por acaso, diversas operações desembocam na apreensão de ouro ou interceptação do minério durante o transporte irregular (v.g. Operação Aerogold, Gold Green, Comando, Lavagem de Ouro, Terra Desolata).

Em todo caso, é certo que a ausência de qualquer fiscalização e um sistema de cruzamento de dados inviabiliza até mesmo o cumprimento de obrigações de compliance pelas DTVMs, as quais, diante da inércia estatal, não podem absorver uma obrigação de fiscalização que parece ser inexequível.

Logo, os problemas relacionados à produção do ouro são, a priori, resultado da abstenção do Estado na regulamentação e fiscalização do setor, o que, na prática, revela o pior dos cenários: abandono do meio ambiente e incompreensão do potencial e riqueza mineral do solo brasileiro; fatos que não podem ser delegados ao ente privado.

 


MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Mineração ilegal de ouro na Amazônia: marcos jurídicos e questões controversas (MPF, Brasília, 2020, Disponível em: https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr4/dados-da-atuacao/publicacoes/roteiros-da-4a-ccr ManualMineraoIlegaldoOuronaAmazniaVF.pdf). Acesso em 29/10/2022.

MANZOLLI, Bruno Antônio et al. Legalidade da produção de ouro no Brasil.
IGC/UFMG: Belo Horizonte, 2021. Disponível em: 
https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2021/Legalidade_da_produção_de_ouro_no_Brasil.pdf. Acesso em 29/10/2022

Instituto Escolhas. "Raio X do Ouro: mais de 200 toneladas podem ser ilegais". São Paulo, 2022.

 


[1] Instituto Escolhas. "Raio X do Ouro: mais de 200 toneladas podem ser ilegais". São Paulo, 2022, p. 2.

[2] Art. 1º — Todas as atividades relativas à faiscação do ouro e à garimpagem de pedras preciosas exercidas em qualquer parte do território nacional serão reguladas pelas disposições dêste decreto. (…)

§ 2º. Considera-se garimpagem o trabalho de extração de pedras preciosas dos rios ou córregos e chapadas, com instalações passageiras e aparelhos simples.

[3] Art. 63. Caracterizam-se a faiscação e a garimpagem:

a) pela forma de lavra rudimentar; (…)

§ 1º. Considera-se trabalho de faiscação a extração de metais nobres nativos, em depósitos de eluvião ou aluvião, fluviais ou marinhos, com aparelhos ou máquinas simples e portáteis.

§ 2º. Considera-se trabalho de garimpagem a extração de pedras preciosas e de minérios metálicos e não metálicos de alto valor, em depósitos de eluvião ou aluvião, com aparelhos ou máquinas simples e portáteis.

§ 3º. Equiparam-se aos trabalhos de faiscação e garimpagem as catas exploráveis sem emprego de explosivos, na parte decomposta dos filões, para extração das substâncias cujo tratamento se efetue por processos rudimentares.

[4] Art. 71. Ao trabalhador que extrai substâncias minerais úteis, por processo rudimentar e individual de mineração, garimpagem, faiscação ou cata, denomina-se genericamente, garimpeiro.

[5] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Mineração ilegal de ouro na Amazônia: marcos jurídicos e questões controversas. MPF: Brasília, 2020, p. 125.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!