Opinião

Direito das distribuidoras de energia elétrica ao crédito de PIS/Cofins

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4 de novembro de 2022, 19h21

O Supremo Tribunal Federal julgou, em 15 de março de 2017, inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, decidindo definitivamente uma das maiores disputas tributárias dos últimos tempos. Com a conclusão do Tema 69 da Repercussão Geral, diversas demandas foram encerradas em favor dos contribuintes que diligentemente ajuizaram suas ações antes do julgamento do RE 574.706 [1].

Dentre tais contribuintes encontram-se distribuidoras de energia elétrica que assumiram o risco e elevados custos de litigar contra a União ao longo de vários anos com a finalidade de obter provimento jurisdicional de cunho declaratório, que garantisse a redução futura do montante recolhido a título de PIS e Cofins, e condenatório, com vistas à compensação ou repetição de indébito dos valores indevidamente recolhidos a maior.

A situação era de evidente win-win para as distribuidoras e para os usuários de energia elétrica. Se a empreitada judicial fosse vitoriosa, como de fato foi, os usuários teriam uma diminuição tarifária, dali para frente, como reflexo direto da redução da base de cálculo do PIS/Cofins, sem a necessidade de assumir qualquer risco em litigar contra a União, ao passo que a distribuidora, na condição de contribuinte, se beneficiaria de eventual compensação ou repetição de indébito tributário. Na hipótese de perda judicial, a situação dos usuários não se alteraria e caberia apenas à distribuidora arcar com os ônus da sucumbência.

Após o trânsito em julgado de diversas ações favoráveis às distribuidoras, fundamentadas no que foi decidido no âmbito do Tema 69 da Repercussão Geral, a Aneel manifestou entendimento de que os valores a serem restituídos às distribuidoras teriam que ser repassados aos usuários de energia elétrica. Assim, promoveu a abertura da Tomada de Subsídios 05/2020, com o objetivo de colher informações relevantes dos agentes de distribuição, de representantes de consumidores e interessados, do setor de energia elétrica.

A TS 05/2020 resultou 1) na abertura da Consulta Pública 05/2021, que tem por objeto a obtenção de subsídios para o aprimoramento da proposta de devolução dos créditos tributários decorrentes de processos judiciais que versam sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/PASEP e da COFINS; e 2) no Despacho 361/2021, que autorizou, antes da conclusão da CP 05/2021, a utilização de parte dos créditos, limitada a 20% do total envolvido na ação judicial, diante de situações excepcionais, nas quais haja possibilidade de aumento tarifário expressivo.

Em 22 de abril de 2021, na 4ª Reunião Pública Extraordinária [2], a Aneel anunciou um conjunto de medidas para redução dos efeitos imediatos do aumento de custos previsto, com a finalidade de manter os reajustes na tarifa de energia elétrica inferiores a dois dígitos. Dentre as medidas, incluiu-se a devolução de recursos de PIS/Cofins, no valor previsto de R$ 5,58 bi em 2021, antes mesmo da conclusão da CP 5/2021, com fundamento no Despacho 361/2021 [3].

A pressa na captura dos valores obtidos pelas distribuidoras com as ações de exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins também refletiu no Poder Legislativo, como se vê da apresentação, em 17 de maio de 2022, do Projeto de Lei 1.280/2022 de autoria dos senadores Fabio Garcia e Wellington Fagundes.

O PL foi aprovado em menos de um mês nas duas casas legislativas e serviu de fundamento para a revisão tarifária anual de 2022 de cinco distribuidoras [4], antes mesmo de sua sanção e publicação, ocorridas respectivamente em 27 e 28 de junho de 2022, dando origem à Lei 14.385/22.

Com base na nova lei, as revisões tarifárias anuais ocorridas a partir de 28 de junho de 2022 passaram a incluir como componente financeiro o valor total do crédito utilizado até a data-base do processo tarifário, além dos valores dos créditos a serem compensados até o processo tarifário subsequente, com desconto apenas dos tributos incidentes e dos valores eventualmente repassados diretamente aos consumidores em virtude de decisões administrativas ou judiciais.

Em 12 de julho de 2022, na 25ª Reunião Pública Ordinária, a Aneel aprovou as revisões tarifárias extraordinárias de dez distribuidoras que já passaram pelas revisões tarifárias em 2022. Foram adiadas apenas as revisões tarifárias extraordinárias das distribuidoras que ainda não habilitaram créditos perante a Receita Federal e das que obtiveram decisões judiciais para suspender tal procedimento [5].

Ocorre que um olhar atento à Lei 14.385/2022 revela graves vícios materiais e formais de inconstitucionalidade, aptos a apontarem para sua nulidade e, por consequência, de todos os atos nela baseados, notadamente as revisões tarifárias, anuais ou extraordinárias, promovidas pela Aneel em 2022.

Em primeiro lugar, vislumbra-se violação ao artigo 5º, XXXVI, da CF/88, e aos princípios constitucionais da irretroatividade, da segurança jurídica, da boa-fé e da confiança do administrado, na medida em que a nova lei tem o claro propósito de regular situação pretérita, em detrimento da coisa julgada formada em benefício das concessionárias que exerceram seu direito de ação muito antes de o STF julgar o Tema 69 da Repercussão Geral, conforme acima mencionado.

Nesse sentido, nota-se que, já na justificativa do PL 1.280/22, que resultou na Lei 14.385/22, fez-se menção ao julgamento do RE 574.706/PR pelo STF, que teria gerado "um volume bilionário de recursos a ser recebido pelas distribuidoras de energia elétrica junto à União" e se esclareceu que a norma legal que veio a ser criada "estabelece uma disciplina para a destinação integral dos créditos de PIS/Cofins já mencionados aos consumidores de energia elétrica".

Na justificativa do PL também se reconheceu que não havia lei a regulamentar a matéria, ao consignar que "a fim de evitar lacuna legal para disciplinar eventual devolução de outros créditos tributários, também explicitamos as diretrizes a serem observadas pela Aneel em tais situações".

O artigo 3º-B da Lei 9.427/96 [6], incluído pela Lei 14.385/22, não deixa dúvidas acerca da pretensão de aplicação retroativa ao dispor especificamente que a Aneel deverá promover a destinação integral, em proveito dos usuários, dos valores objeto de repetição de indébito relacionados às ações judiciais transitadas em julgado que versam sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições PIS/Pasep e Cofins.

Do mesmo modo, evidencia-se ainda mais a violação ao princípio da irretroatividade,  a inclusão, pela nova lei, do inciso XXII ao artigo 3º da Lei 9.427/1996, atribuindo à Aneel a competência de "promover, de ofício, a destinação integral, em proveito dos usuários de serviços públicos afetados na respectiva área de concessão ou permissão, dos valores objeto de repetição de indébito pelas distribuidoras de energia elétrica em razão de recolhimento a maior, por ocasião de alterações normativas ou de decisões administrativas ou judiciais que impliquem redução de quaisquer tributos, ressalvados os incidentes sobre a renda e o lucro". Revela-se, por consequência, que, antes da inclusão legal, a agência não detinha tal competência [7].

Em segundo lugar, sob o ponto de vista tributário, não há dúvidas que as contribuições PIS/Pasep e Cofins são tributos diretos que têm as distribuidoras, e não os usuários, como contribuintes. Diferentemente do ICMS e IPI, tributos indiretos que alcançam fatos econômicos dos consumidores, pois incidentes sobre o valor da operação e/ou serviço, o PIS/Cofins incide sobre o faturamento ou a receita bruta das empresas contribuintes, conforme previsto no artigo 195, I, da Constituição Federal e Leis 9.718/98, 10.637/02 e 10.833/03.

A simples repercussão econômica do PIS/Cofins para o usuário [8]"propriedade comum, senão a todos, a quase todos os impostos […] inclusive nos impostos sobre o patrimônio e a renda, universalmente arrolados entre os diretos, é fruto de uma atitude natural do contribuinte, colocado num sistema de economia liberal, ao promover o que se poderia denominar de autodefesa: qualquer aumento de imposto traz, como consequência, uma correspondente acomodação da atividade econômica do contribuinte, dispondo-a de forma a propiciar, na medida em que a lei da oferta e da procura o permite, a repercussão desse custo adicional" [9] — não tem o condão de alterar o sujeito passivo tributário. Aliás, qualquer alteração dessa natureza dependeria de edição de lei complementar, consoante artigo 146, III, a, da Constituição, com efeitos futuros.

Assim, a Lei 14.385/22, de natureza ordinária, ao atribuir o direito de restituição a pessoa distinta do sujeito passivo tributário, em relação a tributos que, por sua natureza, não comportem a transferência do encargo financeiro — tributos diretos —, conforme previsto nos artigo 165 e 166 do Código Tributário Nacional, acaba por alterar norma geral em matéria de direito tributário sem observar a necessidade do quórum especial de lei complementar, a configurar vício de inconstitucionalidade formal, à luz do citado artigo 146, III, a, da Constituição Federal.

Em terceiro lugar, ao prever a destinação integral dos valores em proveito dos usuários, sem a ressalva quanto à prescrição da pretensão de cobrança contra as distribuidoras, que já tenham inclusive contabilizado os valores devolvidos pelo erário, a Lei 14.385/22 acaba por vulnerar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que resguarda o direito de defesa das concessionárias perante os usuários (artigo 5º, XXXV e LV, da CF), por meio do exercício da referida exceção substancial na ação judicial que, do contrário, seria necessária para exercer pretensão contra a concessionária.

Lembre-se que o prazo prescricional para os usuários exercerem eventual pretensão contra as distribuidoras é decenal, ao passo que várias concessionárias ajuizaram suas ações antes de 2010, tendo, portanto, direito ao indébito dos valores recolhidos a maior durante o trâmite processual e nos cinco anos que antecederam o ajuizamento, por conta do prazo prescricional quinquenal. Assim, os valores que poderiam ser objeto de litígio entre as distribuidoras e os usuários são consideravelmente menores que a integralidade dos valores a que as distribuidoras fazem jus.

Em quarto lugar, a captura integral de um direito de crédito reconhecido judicialmente à sociedade empresária concessionária de serviço público também vai de encontro à livre iniciativa (artigos 1º, IV, e 170, da CF/88), considerando que não observa a continuidade dos negócios da sociedade empresária, que, com fundamento em decisão transitada em julgado, conduziu sua operação, criando obrigações perante seus credores. Tem-se, dessa maneira, violação à ordem econômica, haja vista a necessidade de manutenção das relações comerciais firmadas com esteio na Constituição Federal.

Ainda quanto à inconstitucionalidade material da lei, especificamente no que toca ao princípio da legalidade (artigo 5º, II, da CF/88), o novo diploma não poderia produzir efeitos imediatos, sem prévia regulamentação por parte da Aneel que aborde questões fundamentais, tais como os riscos tributários, em caso de glosa da receita, natureza e abrangência dos créditos, excluindo-se aqueles prescritos, benefícios da distribuidora e dos consumidores em eventual sistema de repartição, compensação de custos e apropriação da receita acessória.

Sem pretender esgotar ou simplificar a densa discussão, dado o quadro de inconstitucionalidades materiais, é de se esperar que o artigo 3º-B incluído na Lei 9.427/96 pela nova legislação seja declarado inconstitucional e que o inciso XXII e o parágrafo 8º acrescidos à Lei 9.427/96 sejam interpretados conforme a Constituição para regular situações posteriores à vigência da Lei 14.385/22. Não cabe, sob o esteio de norma flagrantemente inconstitucional, destinar a terceiros a integralidade dos valores recebidos a título de compensação ou repetição de indébito tributário, por exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, em função de ações transitadas em julgado antes de 28 de junho de 2022, que pertencem integralmente às distribuidoras.

 


[1] Em 13.05.2021, a maioria do plenário do STF acolheu, em parte, os embargos de declaração opostos no RE 574706 para modular os efeitos do julgado para que estes se produzam só após 15.3.2017  data em que foi julgado o RE 574.706 e fixada a tese com repercussão geral "O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins" , ressalvadas as ações judiciais e administrativas protocoladas até a data da sessão em que foi proferido o julgamento.

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bcjs2jR84cU Acesso em 07 set. 2022.

[3] Entre 22 de abril e 04 de julho de 2021 as medidas de contenção foram aplicadas nos processos tarifários de 18 distribuidoras, tendo a devolução de PIS/COFINS sido o principal fator de mitigação para 7 delas, quais sejam Coelba, Cemig-D, ENEL CE, Cosern, RGE SUL, Enel SP, Copel-DIS. Cf. DANNA, Daniel Cardoso. Pressão tarifária no setor de energia elétrica e ações de governança regulatória para sua mitigação. Revista da CGU. V. 13, n. 24, Jul-Dez 2021, Brasília, p. 228. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/article/view/455/279 Acesso em 07 set. 2022.

[4] Cemig, RGE, Copel, EMG e ENF, na 22ª Reunião Pública Ordinária Aneel de 21 jun. 2022.

[6] Lei 9427/1996, artigo 3º-B "A Aneel deverá promover, nos processos tarifários, a destinação integral, em proveito dos usuários de serviços públicos afetados na respectiva área de concessão ou permissão, dos valores objeto de repetição de indébito pelas distribuidoras de energia elétrica relacionados às ações judiciais transitadas em julgado que versam sobre a exclusão do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) da base de cálculo da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins)". (Incluído pela Lei nº 14.385, de 2022).

[7] É razoável concluir que a necessidade de inclusão dessa competência específica à agência reguladora denuncia que "a destinação integral, em proveito dos usuários de serviços públicos afetados na respectiva área de concessão ou permissão, dos valores objeto de repetição de indébito pelas distribuidoras de energia elétrica em razão de recolhimento a maior, por ocasião de alterações normativas ou de decisões administrativas ou judiciais que impliquem redução de quaisquer tributos, ressalvados os incidentes sobre a renda e o lucro". (Artigo 3º, XXII, da Lei 9.427/1996) não se amolda à apropriação de ganhos de eficiência pela distribuidora, uma vez que esta já tinha previsão legal no artigo 14, IV, da Lei 9.427/1996.

[8] Antes do advento das Leis nºs 10.637/02 e 10.833/03, o custo do PIS e Cofins era repassado ao usuário dentro da tarifa de energia elétrica. Com a mudança legislativa, esses tributos, que eram cumulativos, tornaram-se não-cumulativos e a Aneel, após promoção de audiência pública (nº 45/2004), aprovou proposta de modelo aditivo aos contratos de distribuição de energia elétrica, em que se retirou do preço da tarifa o PIS e a Cofins, que passaram a ser cobrado separadamente, em destaque na conta de consumo.

[9] JOSE MORKSCHSBACKER, A Restituição dos Impostos Indiretos, Porto Alegre, Síntese, 1976, pp. 32/35.

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