Opinião

Guerra e pandemia reascendem debates sobre quadro fiscal alemão e europeu

Autor

  • Paula Uematsu Arruda

    é doutoranda em Direito Público na Universidade de Coimbra e assistente de pesquisa no projeto "Orçamento em Números" do Centro de Pesquisa em Direito e Economia da FGV Direito Rio.

31 de março de 2022, 20h06

A pandemia da Covid-19 e a guerra na Ucrânia reascenderam os debates na Alemanha e na União Europeia acerca da manutenção ou da necessidade de flexibilizar ou revogar as normas de controle fiscal, a fim de possibilitar a retomada dos investimentos em áreas estratégicas como infraestrutura, defesa, tecnologia, meio ambiente, assim como em políticas sociais.

Na Alemanha, como consequência da pandemia, a regra do freio da dívida (Schuldenbremse) está suspensa até 2023 [1]. Ainda no antigo governo Merkel, o chefe da Chancelaria Federal, Helge Braun, publicou artigo propondo uma alteração na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (constituição alemã) das normas referentes ao freio da dívida [2].

O processo eleitoral alemão de 2021 intensificou a discussão política e acadêmica sobre o futuro do aperto fiscal e da medida conhecida como Black Zero ou Schwarze Null. Durante as eleições, o Partido Social-Democrata (SPD), o Partido de Esquerda (Die Linke) e os Verdes (Die Grünen) mostraram-se favoráveis à abolição ou abrandamento da regra. Por outro lado, a União Democrata-Cristã e o Partido Democrático Livre (FDP) desejavam a sua manutenção; já o Alternativa para a Alemanha (AfD) não queria apenas manter o freio da dívida, mas também expandi-lo para o sistema de seguridade social alemão [3].

Com a eleição do novo chanceler Olaf Scholz (SPD), no segundo semestre de 2021, a nova coalizão, conhecida como Ampelkoalition (coalizão semáforo) [4], procura formas de garantir a retomada dos investimentos [5], porém, sem violar as regras fiscais constitucionais. Há forte resistência em alterar as regras da Lei Fundamental, o que demandaria a aprovação de 2/3 dos membros das duas casas legislativas alemãs, o Bundestag e o Bundesrat.

A coalizão possui divergências internas. Os verdes são favoráveis à flexibilização do freio da dívida, a fim de obter recursos para investir na modernização ambiental do país; já os liberais (FDP) comunicaram que vão bloquear qualquer tentativa de aumento de tributos ou de furar o teto de gastos.

Como não há acordo, surgiram ideias criativas para contornar as desavenças, como a de utilizar o KfW — banco estatal alemão de investimento e desenvolvimento — como uma agência de inovação e desenvolvimento para alavancar investimentos privados em tecnologia e energia verde, e as empresas públicas como a Deutche Bahn, da área de transportes ferroviários, e a BImA (Bundesanstalt für Immobilienaufgaben), da área de habitação, para contrair empréstimos que serão investidos nas respectivas áreas. Em paralelo, há negociações no sentido de rever subsídios tributários e tributação de produtos à base de canabidiol.

Como consequência da política de austeridade, entre 2009 e 2019, apesar do crescimento do PIB nesse período, a Alemanha experimentou baixos níveis de investimento, afetando diretamente a quantidade e qualidade dos serviços públicos como ferrovias, estradas, conservação de prédios públicos, telecomunicações, pesquisas etc [6].

Tanto na Alemanha quanto na União Europeia o debate acerca da flexibilização das regas fiscais é sustentado pelo argumento de que investimentos são necessários para enfrentar os desafios da próxima década nas áreas ambiental, tecnológica e demográfica (devido ao envelhecimento da população) [7]  e do cumprimento com as metas estabelecidas pela Agenda 2030 das Nações Unidas (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) [8]. A Alemanha, por exemplo, a fim de cumprir com esses objetivos, adotou o Plano de Proteção Climática 2050 (Klimaschutz — plan 2050), em 2016 [9] e a Lei de Aceleração dos Investimentos (Investitionsbeschleunigungsgesetz) [10],  que entrou em vigor em 2020.

Em dezembro de 2021 o novo ministro das Finanças alemão, Christian Lindner (FDP) anunciou um plano de investimentos de 60 bilhões de euros em políticas ambientais [11], demonstrando que retomada dos investimentos já está sendo colocada em prática.

Na Zona Euro, devido às condições excepcionais e o alto nível de incerteza sobre os efeitos econômicos e fiscais da pandemia, a Comissão Europeia absteve-se de dar início ao procedimento dos déficits excessivos contra os Estados-membros em 2020 e em 2021 [12].

Em artigo publicado recentemente na revista Financial Times, o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi e o presidente da França, Emmanuel Macron, defenderam a adoção de uma nova política fiscal para a União Europeia que permitisse um aumento da dívida para investir em pesquisa, defesa, tecnologia e meio ambiente [13].

Outro artigo publicado pelo European Stability Mechanism também endossa a revisão das normas fiscais adotadas pela União Europeia, sustentando que "a mudança do contexto macroeconômico exige uma reconsideração do atual quadro fiscal, com regras realistas e eficazes que possam orientar de forma crível as políticas fiscais nos próximos anos" [14].

O atual cenário bélico conduziu os países europeus a debaterem a necessidade de ampliar os investimentos nas áreas de tecnologia, meio ambiente, pesquisa, energia e defesa.

A União Europeia estuda suspender suas regras fiscais em 2023. Uma decisão definitiva sobre esse assunto será tomada no próximo mês de maio [15]. O bloco também discute alternativas energéticas e investimentos no setor para reduzir a sua dependência do gás russo [16].

Na Alemanha, o chanceler alemão, Olaf Scholz, anunciou o investimento imediato de 100 bilhões de euros na área de defesa. A longo prazo os gastos nessa área, que atualmente são de 1,5% do PIB, devem aumentar, progressivamente, em mais de 2% [17]. A decisão da Alemanha em aumentar seus investimentos na área de defesa e do envio de armamento bélico à Ucrânia é histórica. Desde o final da Segunda Guerra a Alemanha evita a exportação de armas e a ampliação de investimento nas forças amadas.

Origens das regras do teto de gastos
A Alemanha, desde a década de 30 do século 20, adota uma política econômica com base nas teses desenvolvidas pelo ordoliberalismo, escola de pensamento integrada por economistas e juristas da Escola de Freiburg. Para os ordoliberais cabe ao Estado proporcionar uma Ordnungspolitik, uma "política baseada na ordem", através de um conjunto de normas constitucionais (constituição econômica) que regula as ações do Estado e do setor privado [18].

Com a adoção do Euro e o advento da crise de 2008, o modelo ordoliberal alemão foi expandido para todos os países da Zona Euro [19], desde então a Alemanha é alvo de críticas por ter exportado o seu modelo econômico, antikeynesiano e orientado para a renúncia protestante "Erst sparen, dann kaufen!" (poupar para depois gastar), apontado como uma das causas dos problemas econômicos e sociais enfrentados pelos países europeus [20].

Dessa forma, diversas medidas foram adotadas pela União Europeia com o objetivo de garantir a sustentabilidade e o equilíbrio fiscal, econômico e orçamentário de seus países-membros, como, por exemplo o Pacto de Estabilidade e Crescimento, que comporta um conjunto de regras para a coordenação das políticas orçamentais nacionais na EU e o "pacote de seis" (Six Pack) [21], que reforçou as regras adotadas pelo do Pacto e a sua aplicação. Os Estados pertencentes à Zona Euro foram fortemente encorajados a inserir essas normas da União Europeia sobre ajuste fiscal e orçamentário em seus ordenamentos jurídicos internos.

Na Alemanha, a regra do freio da dívida foi inserida na Lei Fundamental em 2009 (artigo 115), com base no princípio da sustentabilidade aplicando-se aos orçamentos federais (Bund) e estaduais (Länder). A regra deve ser observada na elaboração do plano orçamentário federal e das leis orçamentárias, assim como na elaboração dos relatórios sobre projeções fiscais [22].

Em paralelo ao surgimento das ideias ordoliberais, desenvolveu-se o conceito de economia social de mercado (Soziale Marktwirtschaft), que vincularia os cidadãos à constituição econômica. O princípio do Estado Social está fixado no artigo 20, parágrafo 1º, e no artigo 28 da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha [23]. O país conta também com uma sólida lei de direitos sociais, a Sozialgesetzbuch (SGB).

Essa vertente social da economia liberal alemã foi uma conquista, em especial das demandas da União Democrata-Cristã (CDU) nos pós-guerra e colocada em prática pelo antigo chanceler Ludwig Erhard na década de 1960.

Assim, o equilíbrio entre investimento social e equilíbrio fiscal presente no orçamento alemão reflete em seus números: 41,3% do orçamento de 2020 foi direcionado para gastos sociais e trabalho; somente 4,6% foi direcionado para o pagamento da dívida federal [24].

Os modelos econômicos adotados por diversos países e as crises bancária e fiscal das últimas décadas conduziram ao estabelecimento de regras fiscais rígidas, limitadoras dos gastos públicos. Atualmente, esses modelos estão sendo revisados. As sanções impostas à Rússia já estão refletindo na economia de diversos países, demandando investimentos massivos em diversos setores da sociedade, pressionando por alterações nas regras fiscais rígidas em todo o mundo. Na Alemanha e na Europa o debate acerca da flexibilização dessas normas já é uma realidade, resta saber como países como o Brasil conduzirão seus orçamentos nos próximos anos em um cenário no qual a flexibilização formal ou informal dessas regras aparece como ato quase inevitável.

[1] Na Alemanha, a fim de possibilitar despesas adicionais necessárias para o enfrentamento da pandemia, o Bundestag deliberou que a situação pandêmica se enquadrava na exceção de emergência, permitindo que o governo federal excedesse o limite, previsto na Lei Fundamental, de 0,35% do PIB.

[2]Handelsblatt. Das ist der Plan für Deutschland nach Corona. 26.01.2021. Disponível aqui.

[3] The Economist. The end of the German debt brake? 01.03.2021. Disponível em: http://country.eiu.com/article.aspx?articleid=1650762548&Country=Germany&topic=Economy_1 e The Economist. Why German politicians are fighting over the debt brake. 05.06.2021. Disponível em: https://www.economist.com/the-economist-explains/2021/07/05/why-german-politicians-are-fighting-over-the-debt-brake.

[4] Coalizão formada entre o partido do Chanceler, Partido Social-Democrata (SPD), os Verdes (Die Grünen) e o Partido Democrático Livre (FDP).

[5] Truger, Achim. Can german obsession with balanced budgets be overcome. John Hopkins University. American Institute for Contemporary German Studies. 16.01.2020 Disponível em: https://www.aicgs.org/2020/01/can-the-german-obsession-with-balanced-budgets-be-overcome/.

[6] Bundesministerium für Wirtschaft und Energie (BMWi). Öffentliche Infrastruktur in Deutschland: Probleme und Reformbedarf. 06.2020. Disponível em: https://www.bmwi.de/Redaktion/DE/Publikationen/Ministerium/Veroeffentlichung-Wissenschaftlicher-Beirat/gutachten-oeffentliche-infrastruktur-in-deutschland.pdf?__blob=publicationFile&v=12.

[7] Hüther, Michael e Südekum, Jens. How to re-design German fiscal policy rules after the COVID19 pandemic. Forum New Economy Working Papers. nº25. 2020. Disponível em: https://www.econstor.eu/handle/10419/228778.

[8] Bundesregierung. Deutsche Nachhaltigkeitsstrategie 2021. https://www.bundesregierung.de/resource/blob/975292/1875176/7c0614aff0f2c847f51c4d8e9646e610/deutsche-nachhaltigkeitsstrategie-2021-langfassung-download-bpa-data.pdf?download=1.

[9] Bundesministeriums für Umwelt, Naturschutz und nukleare Sicherheit: Klimaschutz- plan 2050. Disponível em: https://www.bmuv.de/fileadmin/Daten_BMU/Download_PDF/Klimaschutz/klimaschutzplan_2050_bf.pdf.

[10] Disponível em: https://www.bmvi.de/SharedDocs/DE/Anlage/Gesetze/Gesetze-19/investitionsbeschleunigungsgesetz.pdf?__blob=publicationFile.

[11] Deutsche Welle. Germany's new finance minister announces billions in climate investments. 10.12.2021. Disponível em: https://www.dw.com/en/germanys-new-finance-minister-announces-billions-in-climate-investments/a-60085847.

[12] Federal Ministry of Finance. German Stability Programme 2021. https://ec.europa.eu/info/sites/default/files/2021-germany-stability-programme_en.pdf

[13] Financial Times. "The EU's Fiscal Rules Must be Reformed". 23.12.2021. Disponível em: https://www.ft.com/content/ecbdd1ad-fcb0-4908-a29a-5a3e14185966.

[14] European Stability Mechanism. EU fiscal rules: Reform Considerations. Discussion Papers Series/17. outubro de 2021. Disponível em: https://www.esm.europa.eu/news/esm-discussion-paper-17-eu-fiscal-rules-reform-considerations.

[15] Bloomberg. War Brings EU Closer to Suspending Fiscal Rule Again for 2023. 02.03.2022. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-03-02/war-brings-eu-closer-to-suspending-fiscal-rule-again-for-2023

[16] Deutsche Welle. EU moves to speed up energy investments amid Ukraine war, rising gas prices. 01.03.2022. Disponível em: https://www.dw.com/en/eu-moves-to-speed-up-energy-investments-amid-ukraine-war-rising-gas-prices/a-60957223.

[17] The Guardian. Germany to set up €100bn fund to boost its military strength. 27.02.2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/feb/27/germany-set-up-fund-boost-military-strength-ukraine-putin

[18] Blyth, Mark. Austeridade: A história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária. 2017, p.171.

[19] Tooze, Adam. German Question(S) (3): Applying the Debt Brake – The Genealogy Of German Austerity Regime. 22.10.2017. Disponível em: https://adamtooze.com/2017/10/22/german-questions-3-applying-debt-brake-genealogy-german-austerity-regime/.

[20] Ver: ARRUDA, P. U. Direitos Econômicos e Sociais vs. Austeridade em Tempos de Crise: a jurisprudência dos tribunais constitucionais da Itália, Espanha e Portugal. Revista Semestral de Direito Econômico, Porto Alegre, v. 1, nº1, p. e0102, 2021. DOI: 10.51696/resede.e0102. Disponível em: http://www.resede.com.br/index.php/revista/article/view/10.

[21] O sixpack consiste em um conjunto de medidas legislativas europeias para reformar o Pacto de Estabilidade e Crescimento ao introduzir maior supervisão macroeconômica como resposta à crise da dívida europeia de 2009. Estas medidas foram agrupadas num "pacote de seis" de regulamentos, introduzidos em setembro de 2010 em duas versões, respectivamente, pela Comissão Europeia e uma força-tarefa do Conselho Europeu.

[22] No processo orçamentário alemão são três os documentos que realizam projeções fiscais: a) o Plano Financeiro (Finanzplan); b) o Programa de Estabilidade da União Europeia e c) o Relatório sobre a Sustentabilidade das Finanças Públicas (Tragfähigkeitsbericht).

[23] Blyth relata que, embora os ordoliberais não quisessem que a constituição econômica estivesse ligada a um Estado de bem-estar social, as circunstâncias e a política determinaram que a economia de mercado tinha de se tornar social. Blyth, Mark. Austeridade: A história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária. 2017. p.172.

[24] Bundesregierung. Disponível em: https://www.bundesregierung.de/breg-en/news/bundeshaushalt-2020-beschlossen-1641384.

Autores

  • é doutoranda em Direito Público na Universidade de Coimbra e assistente de pesquisa no projeto "Orçamento em Números" do Centro de Pesquisa em Direito e Economia da FGV Direito Rio.

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