Opinião

Caso do coach e viabilidade jurídica da capitulação de homicídio tentado

Autores

  • Matheus Borges Kauss Vellasco

    é advogado sócio do escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados especialista em Direito Penal Econômico e Teoria do Delito pela Universidade Castilla-La Mancha na Espanha e mestrando em Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

  • Laura Becker de Atayde

    é acadêmica de Direito estagiária do escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados graduanda pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

30 de março de 2022, 18h13

Dentre os tantos desdobramentos oriundos da influência das redes sociais na sociedade atual, o fenômeno dos coaches [1] talvez seja um dos mais notórios. Em janeiro deste ano, um coach de São Paulo protagonizou um episódio que gerou grande repercussão nos noticiários [2]. 

Trata-se do caso em que dezenas de pessoas foram convidadas a realizar uma expedição no pico dos Marins, em Piquete, liderada por um coach que, segundo noticiado, não detinha expertise técnica como guia de trilhas.  

A teor das informações veiculadas nos canais de imprensa [3], o coach teria pessoalmente liderado a escalada prometendo aos seus seguidores "códigos que destravassem a mente" ao final da aventura. Contudo, diante da dificuldade da trilha e das condições climáticas adversas, o Corpo de Bombeiros teve de ser acionado para resgatar os participantes da expedição [4] 

Os fatos deram ensejo à instauração do inquérito policial nº 1500007-60.2022.8.26.0449, em trâmite junto à Delegacia de Polícia Civil do Município de Piquete e à Vara Única da Comarca de Piquete do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para apuração do delito de homicídio, na modalidade tentada, considerando-se a possibilidade de incidência do artigo13, §2º, alíneas "b" e "c", do Código Penal, que disciplina as hipóteses de relevância penal da omissão.  

O Ministério Público igualmente considerou esta possibilidade [5]. Assim, ao menos em tese, aventou-se uma capitulação dos fatos como crimes omissivos impróprios, considerando-se, para tanto, a existência de uma posição de garantidor assumida pelo coach ao liderar a escalada. 

Em breves linhas, a omissão imprópria é um instituto cujo objetivo político-criminal consiste em justificar a equiparação típica entre um comportamento omissivo e um comissivo quando houver, entre ambos, uma identidade de desvalor comportamental [6]Nos crimes omissivos impróprios, busca-se punir uma conduta omissiva com o mesmo marco penal que se confere a uma conduta comissiva, o que, em resumo, é fundamentado a partir da ideia de que o agente detinha um especial dever de ação, concernente à vigilância ou proteção em relação a determinados bens jurídicos [7]

Dentre os pressupostos de tipicidade objetiva [8] do delito omissivo impróprio, está a posição de garantidor, que, na legislação brasileira  artigo 13, §2º, do Código Penal , é atribuível ao agente que detiver um dever de agir 1) que lhe imponha obrigação de cuidado, proteção ou vigilância em decorrência de lei; 2) oriundo da assunção de responsabilidade no impedimento de um resultado; ou 3) em virtude da prática de uma ação antecedente que criou o risco da ocorrência de um resultado típico. 

Destas possibilidades, interessa ao presente estudo a modalidade de garantia por assunção (artigo 13, §2º, "b", CP). Nos casos de assunção do dever de proteção, é necessário que o garantidor tenha manifestado sua vontade no sentido de resguardar determinado bem jurídico, além de ter efetivamente iniciado o exercício dessa função. A assunção, outrossim, prescinde de um contrato formal para estar caracterizada, mas depende necessariamente de um aspecto material, verificado quando o garantidor assume faticamente uma função protetiva [9]. É essencial, ainda, que a assunção reverbere em um vínculo de confiança e/ou dependência entre o garantidor e a vítima [10].  

Nesse passo, entende-se que o dever de garantidor por assunção se estende às hipóteses em que, havendo uma relação de confiança entre o garantidor e a vítima  relação essa que possua repercussões materiais no caso concreto , esta vítima se coloque em uma situação de risco confiando no garantidor, situação essa à qual não se submeteria caso não houvesse a referida relação de dependência e segurança estabelecida pelo garante [11]

No caso em análise, pelos fatos que se tomou conhecimento até agora [12], o coach  que, segundo a imprensa, não detinha certificado ou formação técnica para guiar trilhas em trajetos de risco  capitaneou a expedição ao Pico dos Marins, colocando-se expressamente como organizador e líder da atividade e recrutando dezenas de pessoas para segui-lo.  

Sendo assim — e este é um elemento que deverá ser apurado ao longo da investigação — parece-nos que se criou, por parte dos participantes da atividade, uma relação de confiança com o coach [13]

As circunstâncias, portanto, sugerem que o coach atraiu para si, expressamente, a posição de líder e organizador desta excursão, bem como que foi em virtude desta assunção que se criou uma relação de confiança com os participantes.  

Tal assunção (artigo 13, §2º, alínea "b"), em tese, o tornaria responsável por impedir eventuais lesões à integridade física dos participantes da excursão que lidera, ou seja, o tornaria garantidor em relação a determinados bens jurídicos daquelas pessoas. Inclusive há, na doutrina penal [14] especializada no assunto, exemplos que se amoldam como uma luva ao presente caso.  

Sendo assim, em tese estaria verificado o primeiro pressuposto de tipicidade objetiva (posição de garantidor) para que se procedesse à eventual responsabilização penal por omissão imprópria, o que, em última análise, poderia viabilizar uma imputação do delito de lesão corporal  caso comprove-se que um ou mais participantes sofreu lesões decorrentes da atividade  ou até mesmo a capitulação de homicídio tentado inicialmente aventada pelo Ministério Público.  

Todavia, para que se possa proceder a uma futura responsabilização penal nesses termos, seria necessária, ainda, a comprovação de todos os pressupostos de tipicidade objetiva (a situação típica; a omissão de uma conduta determinada e exigida de evitação do resultado; a causalidade; a imputação objetiva), bem como de um elemento subjetivo — culpa ou dolo. 

BIBLIOGRAFIA
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudos sobre a responsabilidade omissiva imprópria dos dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017. 
KAUFMANN, Armin. Dogmática De Los Delitos De Omisión. Marcial Pons, 2006. 
TAVARES, Juarez. Alguns aspectos da estrutura dos crimes omissivos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 15, p. 125-157, jul./set. 1996. 
_________. Teoria dos crimes omissivos. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. 


[1] Segundo o Instituto Brasileiro de Coaching, “coach é o profissional responsável por aplicar a metodologia do Coaching. Ainda, por conta disso, fica responsável por estimular o coachee a enxergar e demonstrar seus valores e seus princípios. Com isso, o coach é capaz de trabalhar com o coachee para que ele passe a adotar atitudes e crenças mais benéficas a ele e aqueles que estão ao seu redor. Essa mudança de paradigma da pessoa tem impactos inimagináveis, tanto na vida pessoal como profissional do coachee.” https://www.ibccoaching.com.br/portal/coaching/coaching-conceito-significado/ Acesso em 16/03/2022. 

[4] Dado obtido através da lista com a relação dos nomes dos turistas regatados pelo Corpo de Bombeiros no dia 25 de janeiro de 2022 no Pico dos Marins em Piquete/SP, anexada às fls. 23 do Inquérito Policial.  

[5] Destaca-se, por oportuno, que a referida manifestação ministerial foi acolhida pelo Douto Juízo da Comarca de Piquete/TJSP no dia 14 de janeiro de 2022, conforme fl. 159 do referido inquérito policial.  

[6] KAUFMANN, Dogmática De Los Delitos De Omisión, pp. 251/252. 

[7] ESTELLITA, Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudos sobre a responsabilidade omissiva imprópria dos dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa, p. 94. 

[8] É evidente que, além dos pressupostos de tipicidade objetiva, o tipo omissivo impróprio não prescinde de um elemento subjetivo. Muito embora este caso possibilite uma discussão interessante sobre o dolo eventual, que poderia nos levar até mesmo ao estudo das teorias do "dolo sem vontade" ou "dolo normativo", nos limitaremos aqui à análise da possibilidade, ou não, de verificação da posição de garantidor no caso concreto. Ou seja, não será feito qualquer juízo acerca de elementos subjetivos. 

[9] TAVARES, Teoria dos crimes omissivos, p. 327. 

[10] ESTELLITA, Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudos sobre a responsabilidade omissiva imprópria dos dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa, p. 98. 

[11] A jurisprudência brasileira reconhece casos de garantidores por assunção. A título de exemplo: STJ. HC 603.195/PR, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 06/10/2020, DJe 16/10/2020.   

[12] Vide depoimento acostado à fl. 05 do Inquérito Policial acima referenciado, no qual o Bombeiro responsável pelo resgate das vítimas informa que: "O depoente depois ficou sabendo que o número total de integrantes da expedição liderada por Pablo Marçal era de mais de 60 pessoas e que um grupo de aproximadamente 30 pessoas já havia desistido da escalada devido á orientação do guia que a equipe de Pablo Marçal havia contratado que, inclusive, tal guia não subiu e desaconselhou a subida de todos os integrantes, devido ao mau tempo".

[13] A título de exemplo desta posição, em vídeo veiculado na rede social Instagram, gravado durante uma tempestade ocorrida no momento da expedição, uma das participantes cogita desistir da trilha, questionando o coach da seguinte forma: "Eu penso, e se acontecer alguma coisa comigo, como ficam os meus meninos?". Em resposta, o coach afirma que "Você tem que entender uma coisa, é mais fácil voltar, mas é isso que você quer? Eu tô disposto a, se não abrir a visibilidade, continuar andando assim ó, só no palmo até achar. Nós trouxemos corda para amarrar um no outro. Você confia em Deus?". 

https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2022/01/07/colocou-pessoas-sob-risco-de-morte-diz-bombeiro-sobre-coach-que-organizou-trilha-no-pico-dos-marins.ghtml 

Acesso em 01/03/2022.  

[14] "Na hipótese do alpinista, embora inexista um acordo formal, capaz de caracterizar um contrato profissional, o fato de o alpinista haver convidado pessoas inexperientes para realizar uma tarefa para a qual era o único treinando, configura a assunção fática de responsabilidade de proteção a seus convidados. Tem, portanto, o dever de impedir que resultados lesivos provenham do seu empreendimento, visto estar em posição de garantidor da integridade do bem jurídico alheio". (TAVARES, 1996, p. 1) No mesmo sentido, Heloísa Estellita entende que "A relação de dependência entre garantidor e desamparado existe quando este se coloca em uma situação de perigo confiando no garantidor, algo que não faria não fosse essa relação, ou quando, em virtude de sua vulnerabilidade ou desamparo, encarrega o garantidor de tomar as medidas de proteção necessárias e, por isso, confiando nele, deixa de adotar ulteriores medidas de proteção. Exemplo do primeiro caso seria o da pessoa que decide fazer expedição a montanha sob cuidados de guia profissional, expedição esta que não faria sozinha; exemplos do segundo, tanto a relação entre paciente e médico, como da criança com relação à babá que assumiu a função de garantidor por força de ato dos pais da criança. Em sentido oposto, falta a relação de dependência e, portanto, a posição de garantidor entre pessoas autorresponsáveis que trabalham juntas, ou que utilizem entorpecentes juntas, por exemplo" (ESTELITTA, 2017, p. 98).

Autores

  • é advogado, especializado em Direito Penal Econômico e Teoria do Delito pela Universidade Castilla-La Mancha, Espanha, 2019, mestrando em Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e sócio do escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados.

  • é acadêmica de Direito, estagiária do escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados, graduanda pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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