Opinião

O Sistema de Justiça na blockchain

Autor

  • Marcos José Porto Soares

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná coordenador do Grupo de Pesquisas em Inovação Direito e Novas Tecnologias do MP-PR diretor de Inovação e Novas Tecnologias da Associação Paranaense do Ministério Público e mestre em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona-Espanha e Universidade de Gênova-Itália

30 de março de 2022, 6h44

Como o Direito nos últimos séculos foi construído com base nas normas (regras, princípios e precedentes judiciais) formalizadas pelo Estado, pode transparecer equivocadamente que a busca por justiça também estaria limitada à atividade estatal. Isto pois, em que pese o direito ser uma ciência que tem como finalidade a pacificação social e a defesa de valores éticos, não é o Direito, tradicionalmente concebido, o único instrumento para alcançá-los.

O Estado moderno existe há 500 anos. Logo, não se pode inferir que antes dele não havia justiça, pois a justiça é um ideal nato do ser humano. Foi o iluminismo, com avanço da ciência, da política, da racionalidade que moveu a resolução dos conflitos e a busca da pacificação social para o palco público, sob as diretrizes do Estado. No entanto jamais foi eliminada a possibilidade de a justiça ser alcançada na esfera privada, seja através de acordos, mediação, conciliação ou negociação. Pelo contrário, tais medidas foram incentivadas para auxiliar o papel do poder estatal.

Só que o contexto atual vai além da atuação do Estado ou de meios privados de solução de controvérsias. Desponta no horizonte o fenômeno da descentralização da justiça. Neste novo modelo, em decorrência dos avanços tecnológicos e do surgimento das blockchains, não há poder estatal ou mesmo privado (inexiste centro de poder) mas descentralizado. Parte das atividades da justiça já se deslocam para o universo das blockchains, com o uso dos smart contracts (contratos inteligentes).

Confia-se às instituições financeiras os repasses do dinheiro; confia-se ao Uber a chegada de um motorista para te levar ao local desejado; confia-se às plataformas de e-commerce a compra ou venda de um produto; confia-se ao Estado tantas coisas, confia-se ao Poder Judiciário para fazer valer um contrato não cumprido. Confia-se às redes sociais, que são empresas privadas, os seus dados pessoais, a sua rotina, os acontecimentos da sua vida. Confia-se às redes de comunicação ou telefonia ou provedores de serviço de internet as informações que chegam e até as mensagens que desejam ser passadas.

O dilema sobre a necessidade da intervenção de um terceiro para que as relações entre as pessoas sejam estruturadas numa base de confiança, passou nas últimas décadas a ser questionado em três aspectos. Primeiro, pelo custo econômico elevado desta intervenção, retirando o lucro de quem é realmente o criador do valor. Segundo, pela concentração dos dados e, portanto, de poder em que controla os registros e valida essas operações. E o terceiro, a própria crise de confiança nas instituições [1]. Diz Nick Szabo que um terceiro confiável é aquele que não existe [2].

Até o início do século 21, não havia notícias da criação de um sistema que eliminasse estes terceiros, e que reforçasse a confiança entre as pessoas diretamente.

A crise de confiança, acentuada em 2008 com a quebra de confiança nas instituições financeiras, foi um dos fatores explícitos para a criação da primeira blockchain.

Curiosamente no documento em que estabeleceu as diretrizes da primeira blockchain, que foi a do bitcoin, em nenhum momento foi mencionada a palavra blockchain. O que se percebeu é que para a circulação e transferência dessa criptomoeda era necessária uma estrutura de registro de informações em blocos que se encadeavam, confirmadas e validadas por um sistema de consenso descentralizado.

Para ser implementada a primeira blockchain e chegar a esse grau de confiabilidade, foi necessário haver certa condição tecnológica, com a disposição de algumas ferramentas como as redes de internet P2P, a criptografia ( sistemas de chave pública e privada), a assinatura digital e o protocolo de consenso ( no caso o da prova de trabalho — proof of work).

Uma blockchain, como conceitua Primavera de Filipe e Aaron Wright, é uma base de dados descentralizadas mantidos por uma rede distribuída de computadores [3].

Com a blockchain, a confiança deixou de ser depositada numa pessoa ou no Estado para ser garantida por uma engrenagem descentralizada. Passa-se a confiar num mecanismo e na maioria das pessoas que fazem parte dele, e não na palavra ou comportamento de uma pessoa.

Em 2015, a The Economist [4] já noticiava o extraordinário potencial da blockchain como uma grande inovação para superar a diminuta confiança da sociedade às corporações. Lawrence Lessig asseverou que as blockchains são a mais importante inovação desde que os tubos de internet foram inventados. E outros compararam a importância das blockchains ao advento da Magna Carta, diante do seu potencial em reconfigurar toda a atividade humana.[5]

E é no âmbito das blockchains que se vislumbra o que pode se denominar de justiça descentralizada.

O fenômeno da descentralização já ocorre em diversas atividades, como notáveis exemplos as atividades financeiras que já se instalaram em protocolos de blockchain denominados de Defi (finanças descentralizadas ), comercialização de obras artísticas digitais ou de qualquer objeto digital representativo de valor, veiculados em forma de NFTs (tokens não fungíveis), e da criação de Daos (Organizações Autônomas Descentralizadas).

Levar a busca de justiça para a blockchain é algo inovador, significa o encaminhamento para um centro de poder não privado e nem estatal, mas descentralizado, não concentrado em um só grupo ou pessoa, mas disperso em todos aqueles que pretendem colaborar na construção daquele protocolo.

A justiça descentralizada é construída sob a estrutura dos smart contracts, implementada inicialmente com o surgimento da Ethereum, blockchain cujo principal idealizador foi Vitalik Buterin.

Vitalik partiu da ideia de que como era possível numa blockchain ser armazenada, num espaço (criptografado em forma de hash), uma criptomoeda ( como o bitcoin, por exemplo), por que não abrir um outro espaço nesta mesma estrutura para armazenar um código computacional executável, o qual denominou de smart contract [6].

Na Ethereum o código é executado numa plataforma chamada Ethereum Virtual Machine ( EVM). O smart contract fica registrado na blockchain da Ethereum, e quando executado nela são validadas as etapas responsáveis pelo resultado. O código, que denominou de contrato inteligente, vai ser executado como programado, podendo ser nele acordado qualquer combinação. Tanto é que foi denominado por Camila Russo de a "Máquina Infinita" em seu livro lançado em 2020, que narra de forma magnifica a história da Ethereum [7].

Nos smart contracts o conteúdo do acordo é transmutado para a linguagem informática com capacidade de fazer com que a execução (enforcement) dos compromissos assumidos se dê de forma automática. Na operação que enseja a execução do que foi negociado não há intercessão da justiça pública. Uma das maiores virtudes dos contratos inteligentes é automatizar a execução de um acordo sem a intervenção humana. Isso acarreta vantagens, como a redução de custos, aumento de segurança e confiança aos contratantes e ao mercado, e ainda diminui espaço para fraudes, advindas do comportamento humano.

Por isso, o technological enforcement é visto com a grande característica dos smart contracts. A sua automática execução afasta a necessidade de o Poder Judiciário intervir para fazer com o que o contrato seja cumprido.

E é por isso que pesquisadores, como Aaron Wright e Primavera De Filippi [8], trazem a lume o que denominam de Lex Cryptografia, originada da difusão do blockchain somada a implementação de sistemas descentralizados. Para eles haverá a ascensão de regras administradas por contratos inteligentes autoexecutáveis, da mesma forma que o blockchain tornou transações de bitcoins irreversíveis, invioláveis, a partir de uma rede independe e descentralizada. Isto pode ser ampliado, fazendo surgir uma nova ordem "jurídica" fora do Estado.


[1] Cf. TAPSCOTT, Don e TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution. São Paulo: São Paulo: Editora Senai-SP, 2018, p. 4.

[2] Cf. https://nakamotoinstitute.org/trusted-third-parties/ Acesso em 18 de março de 2022.

[3] DE FILLIPI, Primavera, WRIGHT, Aaron. Blockchain and the Law: The Rule of Code. Cambridge, Massachusetts: Harvard University, p. 18.

[5] Apud. CAMPBELL- VERDUYN, Malcolm. Bitcoin and Beyond: Cryptocurrencies, Blockchains, and Global Governance (RIPE Series in Global Political Economy)

[6] "Pode-se conceituar smart contracts como um um código que se executa automaticamente quando um conjunto de regras predefinidas é atendido" (RUSSO, Camila. The Infinite Machine: How na Army of Crypto-Hackers is building the Next Internet with Ethereum. New York: Harper Collins Publishers, 2020, p. 43).

[7] RUSSO, Camila. The Infinite Machine: How na Army of Crypto-Hackers is building the Next Internet with Ethereum. New York: Harper Collins Publishers, 2020.

[8] DE FILLIPI, Primavera, WRIGHT, Aaron. Blockchain and the Law: The Rule of Code. Cambridge, Massachusetts: Harvard University.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná, mestre em Raciocínio Probatório pelas universidades de Girona (Espanha) e Gênova (Itália), especialista em Programação de Contratos Inteligentes em Blockchain para o Direito pela PUC-RJ e coordenador do grupo de pesquisas de Inovação, Direito e Novas Tecnologias do Ministério Público do Paraná.

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