Opinião

Crimes de trânsito, atos ilícitos e ressarcimento ao SUS

Autor

  • Marcelo Kokke

    é pós-doutor em Direito Público-Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) especialista em Processo Constitucional procurador federal da advocacia-geral da União professor da Faculdade Dom Helder Câmara professor de pós-graduação da PUC-Minas e professor do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH).

29 de março de 2022, 17h21

A imagem social em relação ao Sistema Único de Saúde corresponde a uma espécie de buraco negro invertido. Para todos os gastos ou despesas relativas à saúde, haveria custeio do SUS, em uma universalidade de atendimento que escapa ao teor constitucional e assume hipóteses de infinito. Essa imagem é equivocada. Nenhum país do mundo custeia tudo para todos em matéria de saúde. Há crivos de análise. A saúde é respaldada como conjunto de políticas públicas para atendimento universal, no sentido de que deve a todos atender, mas não que deve atender a absolutamente tudo. Nesse sentido, o artigo 197 da Constituição fala em ações e serviços públicos de saúde que constituem o sistema único.

A pergunta que aqui se promove é justamente qual o limite para que o SUS arque com despesas de saúde provocadas por pessoas que pratiquem atos ilícitos. Em que medida o sistema pode demandar o ressarcimento de gastos provocados por atos ilegais? Os custos com o sistema de saúde são distribuídos em toda a sociedade, mas isso não significa que o sistema seja res nullius, coisa de ninguém, pelo inverso, é instituição de toda a sociedade. Assim, o dano ilegítimo que atinja o SUS deve ser objeto de reflexão para responsabilidade civil do infrator.

Em relação à previdência social, a Lei nº 8.213/91, em seu artigo 120, por redação conferida pelas Leis nº 11.340/06 e 13.846/19, determina ressarcimento em ação regressiva para reparar o INSS por custos derivados de benefícios que tenham sido pagos em razão de falha na segurança do trabalho ocasionada por culpa do empregador, assim como por violência doméstica e familiar contra a mulher, por parte do agressor. Em ambas as hipóteses, aquele que deu causa à situação de benefício previdenciário para terceiros deverá ressarcir a Previdência Social.

Portanto, acaso um trabalhador sofra lesão de acidente de trabalho por culpa do empregador, ou mulher fique afastada com benefício previdenciário pela agressão sofrida, empregador ou agressor devem ressarcir os valores ao INSS. A Advocacia-Geral da União promove o ressarcimento ao erário, com atuação já consolidada das teses junto aos Tribunais. A atuação se funda em pilares jurídicos e éticos que visam fortalecer o objetivo de institutos de proteção constitucional. O sistema não pode ser interpretado em favor de quem lesa o patrimônio e as instituições públicas.

Se for adotado idêntico padrão para o SUS, o fato abre espaço para se pensar em outras hipóteses de ressarcimento. Suponha-se que pessoa alcoolizada provoque acidente que demande atendimento do SUS. Ou idêntica situação de agressor que leve mulher a ser atendida pelo SUS. Deve a sociedade toda arcar com custos provocados por um ato ilícito? Evidentemente, a vítima deve ser atendida e resguarda pelo SUS. A questão é demandar que a pessoa que provoque custos ao SUS, por ato ilícito ou criminoso, tenha que ressarcir a coletividade pela despesa ocasionada. Até que ponto deve a sociedade arcar com custos de saúde provocados por infratores legais?

Em um cenário de custos sociais elevados e necessidade de incrementar recursos à saúde, despesas que sejam provocadas por atividades lesivas dolosas não podem ser socializadas, devendo ser atribuídas diretamente aos responsáveis pelos prejuízos sociais. Se, quando há um ato ilícito, deve ser reparado o patrimônio privado, também há que ser reparado o patrimônio público. Está-se diante de uma necessidade de expansão da responsabilidade civil. Reparar o SUS pelos custos ocorridos em virtude de ato ilícito doloso de infratores legais.

Os custos relativos ao atendimento de saúde decorrentes de atos ilegais praticados por condutor alcoolizado ou mesmo por praticantes de outros atos criminosos devem ser arcados pelo próprio causador do dano. Repise-se. O atendimento de saúde deve ser prestado, trata-se direito fundamental. Entretanto, apurada a causalidade dolosa da ocorrência, legitima-se a busca para o ressarcimento do erário, com reparação ao SUS pelas despesas ocorridas.

Em um contexto crise de recursos para a saúde pública, é imprescindível que se promova mudança legislativa instituindo a ação de ressarcimento ao SUS por despesas decorrentes de ato ilícito doloso. A ação de ressarcimento busca a recomposição do erário, efetiva a responsabilidade civil do infrator. A Advocacia-Geral da União já possui estrutura e corpo qualificado de advogados públicos para atuar na matéria. Resta apenas a necessidade de atuação do Poder Legislativo. Não se pode mais socializar custos decorrentes de atos ilegais derivados de atividade individual dolosa.

Autores

  • é pós-doutor em Direito Público-Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), mestre e doutor em Direito pela PUC-Rio, especialista em Processo Constitucional, procurador federal da Advocacia-Geral da União, professor da Faculdade Dom Helder Câmara, professor de Pós-graduação da PUC-MG e professor do Uni-BH.

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