Opinião

Reconhecimento do Eciab pelo STF como mecanismo de contenção da insensatez

Autor

  • Laone Lago

    é pós-doutorando doutor mestre e especialista em Ciências Jurídicas e Sociais; prêmios Rui Barbosa Unesco Francisco Rezek Conpedi e de pós-graduação stricto sensu; professor advogado e consultor jurídico no âmbito do Direito Público.

29 de março de 2022, 10h16

O Supremo Tribunal Federal agendou o que está sendo chamado de "pauta verde", oportunidade em que julgará ações de temática ambiental envolvendo a proteção da Amazônia e o enfrentamento das mudanças climáticas. Desde o momento em que divulgou lista contendo as sete ações[1], muitos são os debates, diversas as expectativas e infindáveis as implicações. As demandas pautadas são naturalmente complexas, percorrendo desde o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia – PPCDAm (ADPF nº 760), até a Operação Verde Brasil 2 (ADPF nº 735), passando pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente – FNMA (ADPF nº 651), alcançando a omissão do foverno federal no combate ao desmatamento (ADO nº 54), assim como o Fundo Amazônia (ADO nº 59), a Resolução Conama nº 491/2018, que trata dos padrões de qualidade do ar (ADI nº 6.148) e a Medida Provisória nº 1.040/2021, convertida na Lei nº 14.195/2021, que envolve a concessão automática de licença ambiental (ADI nº 6.808).

Referida pauta é histórica, no entanto, está muito distante de ser completa. Inúmeras sãos as outras demandas envolvendo violação massiva, generalizada e sistêmica do meio ambiente no Brasil, revelando a existência de um Estado de coisas inconstitucional ambiental brasileiro (Eciab), segundo pressupostos originalmente delimitados pela Corte Constitucional colombiana (Sentença n. T-025/04)[2]. Para ficar apenas em alguns exemplos, essas ações visam desobstruir o Fundo Clima (ADO nº 60, convertida em ADPF nº 708 — há decisão do ministro relator pela existência de indícios de Eciab), obstar ações e omissões de afronta reiterada aos Biomas Amazônia e Pantanal (ADPF nº 743 — há pedido expresso na inicial pelo Ecia), reconhecer que há um estado de anomia e descontrole regulatório (ADPF n. 747, 748 e 749 – consta pedido de reconhecimento do Ecia) e forçar o Poder Público a apresentar plano de vacinação (ADPF nº 756 — requereu-se o reconhecimento do Ecia).

A lista não é pequena, muito menos exaustiva, porém, é suficiente para revelar que em matéria ambiental existe uma marcha da insensatez curso. Um ano antes da Conferência de Estocolmo, de 1972, o Brasil formou comissão para elaboração do relatório que apresentaria sua questão ambiental ao mundo. Alceo Magnanini — personagem do ambientalismo brasileiro —, inicialmente designado como representante do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), recorda ter advertido o representante do Ministério da Saúde, após este ter escrito no relatório que o governo brasileiro utilizou cento e cinquenta toneladas de Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT) para erradicar a malária nos igarapés da Amazônia: "Nós vamos a uma conferência sobre o meio ambiente, sobre a ação humana na biosfera e vamos dizer que despejamos cento e cinquenta toneladas de DDT na Amazônia?"[3]. Em outras palavras — prossegue o ambientalista —, essa postura "é a mesma coisa que o Brasil ir a um congresso de odontologia e se vangloriar que extraiu quarenta e cinco dentes, usando um porrete como anestesia"[4].

A insensatez sob a temática ambiental não é só persistente, ela é insistente. Os desafios são históricos, alcançando a própria estrutura da Administração Pública brasileira, especificamente os seus escalões superiores. Em um cenário mais atual, tomemos como exemplo cerimônia de formatura de novos diplomatas do Instituto Rio Branco (IRB), oportunidade em que o presidente da República foi taxativo ao afirmar que nada está queimando na Amazônia, assim como sequer há um hectare de selva devastada[5]. Manifestação, esta, que aconteceu às vésperas de viagem em que o vice-Presidente pretendia levar embaixadores de dez países à Amazônia[6], tendo em vista contundente carta aberta enviada pelos países que integram a Parceria das Declarações de Amsterdã ao Brasil, nela constando de forma expressa as diversas preocupações com a Amazônia e com o próprio futuro das relações bilaterais ou mesmo multilaterais[7].

O quadro ambiental brasileiro é periclitante. Segundo a historiadora Barbara Wertheim Tuchman, autora de A marcha da insensatez: de Troia ao Vietnã[8], a caracterização de insensatez, ou loucura política, envolve três critérios, quais sejam, primeiro, ser "percebida em seu próprio tempo e não retrospectivamente", segundo, "um curso viável de ação alternativa deveria ser, então, disponível", e, terceiro, "a política em questão deve ter sido de grupo e não somente de um governante isolado, tendo persistido além do termo temporal de qualquer um dos envolvidos"[9]. Ressalvada a segunda parte do último critério — "persistido além do termo temporal de qualquer um dos envolvidos" —, todos os demais parecem já terem sido plenamente preenchidos no Brasil dos dias atuais, especialmente em se tratando da perspectiva ambiental, a qual se encontra imersa em um quadro dramático, evidenciando a realidade (e a concretude) de um flagrante Estado de coisas inconstitucional ambiental brasileiro (Eciab).

A marcha da insensatez (ao que tudo indica) é uma realidade no Brasil atual. Enquanto os troianos levaram o cavalo de madeira para dentro dos seus muros, os papas da renascença provocaram a cisão protestante, os britânicos perderam a América e, esta, atraiçoou-se no Vietnã[10], no Brasil de hoje, a ocupação irregular de áreas protegidas cresce 56%, percentual que se agrava ainda mais com a possibilidade de aprovação de projetos de lei que irão anistiar grileiros e facilitar invasões[11]. Referido cenário restou exposto em investigação conduzida pela British Broadcasting Corporation (BBC), a qual deu origem ao documentário Amazônia à venda[12], oportunidade em que foram encontrados no Facebook dezenas de anúncios em que vendedores negociam partes da floresta ou mesmo áreas recém-desmatadas, inclusive em unidades de conservação ou mesmo em terras indígenas[13]. A situação é ambientalmente gravíssima.

Portanto, o reconhecimento do fenômeno colombiano das decisões estruturais (ou estruturantes), denominado e delimitado como Estado de coisas inconstitucionais (ECI), alcançou a temática ambiental brasileira (Eciab), conforme quadro dramático de violações massiva, generalizada e sistemática[14], revelando-se como alternativa ao tradicional modelo de freios e contrapesos (checks and balances)[15]. Referido movimento, pioneiramente latino-americano, almeja um Poder Judiciário atento e atuante, não só para proteger os direitos fundamentais, sim — e principalmente — para lhes conferir aplicabilidade e efetividade, sob o ângulo de um constitucionalismo contemporâneo dialógico. Não é por outra razão que o cenário ambiental exposto demanda provimento jurisdicional de índole constitucional, obviamente propositivo, a ser exercido pelo STF, visando a promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Eis uma oportunidade concreta que bate às portas do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, demandando-lhe olhar atento e vigilante para romper com os bloqueios institucionais, desde que o faça — insista-se — visando fortalecer o debate, potencializar o diálogo e para garantir o devido e necessário espaço aos conflitos socioambientais[16].


[1] Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/pauta/pesquisarCalendario.asp?data=30/03/2022>. Acesso em: 25 mar. 2022.

[2] Corte Constitucional da Colômbia. Sentença T-025/04. Magistrado proponente doutor Manuel José Cepeda Espinosa. Disponível em: <https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm>. Acesso em: 4 jul. 2021.

[3] URBAN, Teresa. Saudade do matão: relembrando a história da conservação da natureza no Brasil. Curitiba: UFPR; Fundação O Boticário de Proteção à Natureza; Fundação MacArthur, 1998, p. 263.

[4] URBAN, Teresa. Saudade do matão: relembrando a história da conservação da natureza no Brasil. Curitiba: UFPR; Fundação O Boticário de Proteção à Natureza; Fundação MacArthur, 1998, p. 264.

[5] Nas palavras do Presidente da República, "[e]stamos ultimando uma viagem Manaus-Boa Vista, onde convidaremos diplomatas de outros países para mostrar naquela curta viagem de uma hora e meia, que não verão em nossa floresta amazônica nada queimando ou sequer um hectare de selva devastada". In: MAZUI, Guilherme. Bolsonaro diz que não há ‘sequer um hectare de selva devastada’ na Amazônia. G1, Brasília, 22 out. 2020. Política. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/22/bolsonaro-diz-que-nao-ha-sequer-um-hectare-de-selva-devastada-na-amazonia.ghtml>. Acesso em: 31 out. 2020.

[6] GOMES, Pedro Henrique. Mourão e ministros devem levar embaixadores de 10 países à Amazônia na próxima semana. G1, Brasília, 29 out. 2020. Política. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/29/mourao-e-ministros-devem-levar-embaixadores-de-10-paises-a-amazonia-na-proxima-semana.ghtml>. Acesso em: 31 out. 2020.

[7] KLÖCKNER, Julia; MÜLLER, Gerd. Carta aberta ao vice-Presidente Mourão da Parceria das Declarações de Amsterdã. Representações da República Federal da Alemanha no Brasil. Disponível em: <https://brasil.diplo.de/blob/2385172/60916265ca79223dbcec6d341826b220/carta-aberta—amsterdam-declaration-partnership–adp–data.pdf>. Acesso em: 2 nov. 2020.

[8] TUCHMAN, Barbara Wertheim. A marcha da insensatez: de Tróia ao Vietnã. Tradução Carlos de Oliveira Gomes. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio: Biblioteca do Exército, 1996.

[9] TUCHMAN, Barbara Wertheim. A marcha da insensatez: de Tróia ao Vietnã. Tradução Carlos de Oliveira Gomes. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio: Biblioteca do Exército, 1996, p. 5-6.

[10] TUCHMAN, Barbara Wertheim. A marcha da insensatez: de Tróia ao Vietnã. Tradução Carlos de Oliveira Gomes. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio: Biblioteca do Exército, 1996, p. 34-35.

[11] OVIEDO, Antonio; AUGUSTO, Cicero; LIMA, William Augusto. Conexões entre o CAR, desmatamento e o roubo de terras em áreas protegidas e florestas públicas. Instituto Socioambiental, São Paulo, 12 abr. 2021. Disponível em: <https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/nt_isa_conexoes_car_desmatamento_grilagem.pdf#overlay-context=pt-br/noticias-socioambientais/mesmo-antes-de-aprovado-pl-da-grilagem-esta-destruindo-a-amazonia>. Acesso em: 4 jul. 2021.

[12] BBC revela venda ilegal de terras na Amazônia pelo Facebook. 26 fev. 2021. 1 vídeo (41 minutos 23 segundos). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=QpTMqTo_ycc>. Acesso em: 9 mar. 2021.

[13]Os lotes foram anunciados no Facebook por um corretor de Porto Velho (…). Questionado sobre restrições ambientais que hoje limitam atividades agropecuárias na Amazônia, ele disse acreditar que elas serão suprimidas pelo atual governo. ‘O empecilho do meio ambiente, o negócio dos índios, o Bolsonaro vai passar por cima, e aí a tendência é asfaltar até Manaus’”. FELLET, João. Investigação revela terras protegidas da Amazônia à venda no Facebook. BBC News, Brasília, 26 fev. 2021. Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56211156>. Acesso em: 9 mar. 2021.

[14] LAGO, Laone. Estado de coisas inconstitucional ambiental brasileiro. 2021. 262 p. Tese (Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais). Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito – PPGSD, Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, 2021. Disponível em: <https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=11029071#>. Acesso em: 26 mar. 2022.

[15] “(…) aquelas pessoas interessadas em promover um diálogo democrático entre as distintas esferas do poder, e entre elas a sociedade em seu conjunto, deveriam pensar em reformar os sistemas dos checks and balances, antes de seguir insistindo no referido caminho para consolidar um modelo dialógico constitucional”. GARGARELLA, Roberto. O novo constitucionalismo dialógico, frente ao sistema de freios e contrapesos. In: VIEIRA, José Ribas; LACOMBE, Margarida; LEGALE, Siddharta (org.). Jurisdição constitucional e direito constitucional internacional. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 37-75.

[16] Para Acselrad, os conflitos socioambientais refletem o fenômeno da imposição desproporcional dos riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais. ACSELRAD, Henri. As Práticas Espaciais e o Campo dos Conflitos Ambientais. In. ACSELRAD, Henri (Org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Fundação Heinrich Böll, 2004, p. 13-35.

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  • é pós-doutorando, doutor, mestre e especialista em Ciências Jurídicas e Sociais; prêmios Rui Barbosa, Unesco, Francisco Rezek, Conpedi e de pós-graduação stricto sensu; professor, advogado e consultor jurídico no âmbito do Direito Público.

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