Opinião

O direito internacional e a guerra na Ucrânia

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28 de março de 2022, 7h06

O bom augúrio da conformação de uma ordem pública europeia, forjada logo após o término da segunda grande guerra, em especial pela fundação e sedimentação do Conselho da Europa (5/5/1949), na esteira da contextura de uma sociedade internacional moldada em Estado de Direito, e o valor correlato dos direitos humanos como arquétipos normativos universalizantes, está em xeque face a recente invasão militar russa no território ucraniano. O Direito Internacional Público, focalizado e ancorado em três pilares insofismáveis, o Jus Cogens, o pacta sunt servanda, e a boa-fé, defronta-se, em território europeu, com os interesses políticos sobrepujantes dos Estados soberanos.

O Conselho da Europa (Conseil de l'Europe), principal e mais antigo órgão jurídico e político europeu, excluiu a Federação Russa de sua agremiação no último dia 16 de março [1]. Isto significou a segregação imediata de 144 milhões de cidadãos russos do acesso à Corte Europeia de Direitos Humanos, instância jurisdicional mais avançada do mundo na tutela dos direitos. Com isso, tornou-se quimérico o projeto de universalismo de direitos humanos mínimos como parâmetros irredutíveis (TEIXEIRA, 2013, p. 31), pelo menos no contexto momentâneo europeu.

Na estrutura constitutiva do Conselho, estão conglobados 46 Estados Nacionais como membros permanentes, bem como 8 Estados na condição de observadores [2]. Apenas a título ilustrativo, compõem o Conselho países como Azerbaijão, Albânia, Moldávia, Mônaco, San Marino, Reino Unido, França e Alemanha. Trata-se, a toda evidência, do projeto mais ousado de internacionalização dos direitos humanos que remonta à data de 04 de novembro de 1950, dia da assinatura da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, em Roma. Exsurgia, desde então, o anelo ambicioso de congregar um número ingente de Estados soberanos europeus e eurasianos, em alguns casos profundamente distintos em termos populacionais e culturais, em torno de valores comuns como democracia, Estado de Direito e direitos humanos, no bojo de um sistema que, em primeira linha, instituiria o status de igualdade jurídica entre seus membros. O postulado jurídico da igualdade soberana entre Estados teria, induvidosamente, o múnus de elidir normativamente a desigualdade de fato verificável in concreto (RESEK, 2022, p. 27).

Remanesce insofismável à saciedade a obstaculização política à compreensão homogênea e inequívoca de Direitos Humanos, malsinada pela cosmovisão eurasiana, em especial pela Federação Russa e pela China. Nesta senda, os direitos humanos seriam meros instrumentos políticos ocidentais, no ambiente já delineado por Carl Schmitt do amigo-inimigo. No caso russo, o Conselho da Europa seria um instrumento de manejo para a concretização dos desideratos políticos da União Europeia e da Otan.

A ruptura do bloco oriental soviético, em 26 de dezembro de 1991, tinha impulsionado a esperança de uma nova ordem internacional pacífica, na exata linha do Tratado publicado em 1795 por Immanuel Kant intitulado à paz perpétua. A própria reunificação alemã, e a subsequente assinatura do Tratado de Maastricht, ato fundacional da União Europeia, propendia ao anulamento das tensões geopolíticas dimanantes da obsoleta Guerra Fria.          

Consoante o panorama urdido pelo jusfilósofo alemão Hasso Hofmann, a década de 1990 engendrou um processo de interdependência global entre economia e informação, política e cultura, impingindo na consciência coletiva o termo "Globalização", que abriu caminho para a ideia de uma cidadania mundial na perspectiva da validade universal dos direitos humanos (HOFMANN, 2020, p. 52). Consoante os mais recentes acontecimentos políticos e militares, avizinha-se o falhanço fragoroso de uma consciência unívoca europeia acerca dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito, conquanto ainda existente a superestrutura jurídico-institucional, máxime o Conselho da Europa e a União Europeia. A atual guerra na Europa está pondo em xeque a fortiori a confiança nos órgãos de deliberação supranacionais, nas cortes internacionais de justiça, e a capacidade e eficiência das normas cogentes de direito internacional no regramento das relações entre Estados.

A Ucrânia aderiu ao sistema do Conselho da Europa no ano de 1995. A Federação Russa, em 1996. Malgrado o pertencimento pari passu de ambos os Estados à mesma organização, a incivilidade da malfadada guerra e o puro talante do mais forte prevaleceu. A Justiça internacional está sub judice, e a legitimação política, jurídica e filosófica dos direitos humanos volta a estar no centro das discussões.         

Referências Bibliográficas
HOFMANN, Hasso. Filosofia Jurídica Pós 1945. Sobre a História do Pensamento Jurídico na República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Editora Fundação Fênix, 2020.
RESEK, José Francisco. Direito Internacional Público. Curso Elementar. 18ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.
TEIXEIRA, Carla Noura. Direito Internacional para o Século XXI. São Paulo: Saraiva, 2013.


[1] O comitê de ministros do Conselho da Europa excluiu a Federação Russa com base no art. 8º do seu estatuto. https://www.coe.int/en/web/portal/home Acesso em 16.03.2022. Ademais, o Conselho da Europa suspendeu todas as suas relações com autoridades de Belarus. 

[2] Os únicos países europeus que não compõem o Conselho são: Belarus, Cazaquistão e Vaticano.

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