Opinião

Olho no olho: o direito do réu de ser julgado presencialmente no Tribunal do Júri

Autor

  • Janson de Oliveira Matos Filho

    é advogado criminalista pós-graduado em Processo Penal presidente da Comissão de Direito Criminal e Assuntos Prisionais da 23ª Subseção da OAB/SC da Comissão Estadual de Assuntos Prisionais da OAB/SC e do Instituto Anjos da Liberdade.

26 de março de 2022, 15h34

Por ocasião da pandemia do novo coronavírus, não foram raras as ocasiões em que os juízes presidentes de sessões do Tribunal do Júri país a fora determinaram que, para fins de resguardo sanitário, o réu participaria do julgamento remotamente, normalmente na própria unidade prisional em que se encontrasse preso.

Pois bem.

O Tribunal do Júri encontra previsão, tamanha sua importância, na Constituição Federal, estando estabelecido que se trata da instituição competente para julgamento dos crimes dolosos contra a vida (artigo 5º, inciso XXXVIII).

No que diz respeito às características constitucionais do Tribunal do Júri, percebe-se que o legislador Constituinte tratou de prever expressamente a plenitude de defesa. Isto é, há uma garantia expressa e inequívoca, além da ampla defesa prevista no inciso LV do já citado artigo 5º, e em grau mais elevado que aos acusados em geral, quanto aos réus no procedimento do Tribunal do Júri.

Em análise ao disposto na legislação processual penal, verifica-se que os artigos 454 a 458 do Código de Processo Penal apontam a previsão da ausência de cada um dos atores na sessão plenária, tratando respectivamente dos jurados no artigo 454, do membro do Ministério Público no artigo 455, do advogado do acusado no artigo 456 e do próprio réu no artigo 457.

Ainda que o caput do artigo 457 especifique que a sessão plenária não será adiada na ausência do réu solto, é necessária a análise do §2º do mesmo artigo:

§2º  Se o acusado preso não for conduzido, o julgamento será adiado para o primeiro dia desimpedido da mesma reunião, salvo se houver pedido de dispensa de comparecimento subscrito por ele e seu defensor.

Do que se verifica da menção legal citada, há comando específico quanto ao comparecimento e à condução do acusado preso à sessão de julgamento, de forma que a sua ausência comporta no adiamento, salvo por pedido expresso de dispensa.

Além da falta de previsão expressa e a dissonância com a amplitude de defesa, é necessário apontar que há possibilidade de o Juiz determinar a restrição de comparecimento do réu nos termos do artigo 217 do Código de Processo Penal:

"Artigo 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor".

É necessário, contudo, a cautela na leitura do mencionado artigo de lei. Isto porque a segunda parte do diploma legal menciona a realização tão somente do ato de inquirição de testemunhas na ausência do réu. Diante da dinâmica do procedimento da sessão plenária do Tribunal do Júri, o ato do interrogatório — que ocorre, procedimentalmente, após a inquirição das testemunhas — bem como os debates e a leitura da sentença devem ser realizados na presença do réu.

Nesse sentido, inclusive, menciona-se entendimento da doutrina especializada:

"A presença do acusado, ao lado do defensor técnico, durante a realização do cross examination das testemunhas, no interrogatório dos corréus, bem como nas sessões do Tribunal do Júri, poderá ser de fundamental transcendência à formulação dos questionamentos, mormente quando os contatos prévios entre defensor e imputado são restritos. Por isso, o direito de presença se perfectibiliza se houver possibilidade de intervir de modo efetivo na audiência, o que não ocorre se ficar afastado de seu defensor técnico ou com ele não puder se comunicar. Relevante também que o acusado compreenda o que está ocorrendo na audiência, para que possa instar seu defensor a interferir durante a prática do ato processual". (GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. 2017, p. 125)

Além disso, é também necessário verificar que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado nacionalmente por meio do Decreto nº 592/1992, prevê expressamente em seu art. 14.3, alínea 'd', o direito de presença do acusado nos atos judiciais:

"3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias:
(…)
d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex-offício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo;"

Igualmente a Convenção Americana de Direitos Humanos, ainda que não de maneira expressa, prevê o direito de presença por meio do direito à autodefesa e de inquirição de testemunhas, nos termos do artigo 8.2, 'e’'e 'f’'.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 98.676/PA, de relatoria do ministro Celso de Mello, elaborou decisão interessante quanto à impossibilidade de o réu comparecer a ato processual por dificuldades de logística quanto ao deslocamento a ser providenciado pela Administração Pública:

"O acusado tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório. São irrelevantes, para esse efeito, as alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder ao custeio de deslocamento do réu, no interesse da Justiça, para fora da sede de sua Organização Militar, eis que razões de mera conveniência administrativa não têm  nem podem ter  precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e de respeito ao que determina a Constituição" [1].

Obviamente que, por ocasião do atual momento de crise sanitária ainda não resolvida por definitivo, há controvérsias quanto à realização da sessão plenária por segurança da saúde dos participantes da sessão.

Por ocasião da responsabilidade do juiz presidente do Tribunal do Júri, por obvio entende-se a discricionariedade quanto à realização de julgamentos e atos presenciais, e em especial quanto à matéria atinente, às sessões plenárias.

Contudo, o fato de se possibilitar a realização da sessão, com convocação de todos jurados (suplentes e titulares), nos termos do artigo 433 do Código de Processo Penal, e ainda com a garantia de presença das bancas das partes, bem como de toda a estrutura pessoal do Judiciário, dado o atual quadro de vacinação e outras medidas sanitárias necessárias para comparecimento pessoal nos atos judiciais que os Tribunais têm adotado para o retorno das atividades à normalidade, também permite interpretar que o réu — sujeito e parte principal no julgamento de um processo penal — terá também garantida a proteção da sua saúde.

Feitos tais esclarecimentos, necessário consignar a amplitude de defesa necessária de ser garantida no âmbito dos julgamentos pelo Conselho de Sentença. A própria realização do ato — o sujeito ser julgado por seus iguais — demanda a presença física do próprio réu, em plenas condições de igualdade, para que seja garantido o julgamento em plenitude de equiparação. Para isso, a jurisprudência já se comporta no sentido de garantir o julgamento em roupas civis e sem o uso de algemas. A presença física do acusado, portanto, garante a equiparação de condições que o Tribunal do Júri demanda da sua essência e da sua razão de existir.

Conforme ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci:

"O que se busca aos acusados em geral é a mais aberta possibilidade de defesa, valendo-se dos instrumentos e recursos previstos em lei e evitando-se qualquer forma de cerceamento. Aos réus, no Tribunal do Júri, quer-se a defesa perfeita, dentro, obviamente, das limitações naturais dos seres humanos" (NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 35).

Ademais, muito embora o artigo 93, inciso IX da Constituição Federal estabeleça a necessidade de fundamentação das decisões judiciais pelos membros do Poder Judiciário, o julgamento pelo Conselho de Sentença é estabelecido num grau de convicção íntima, desmotivada e injustificada.

A preocupação para com a plenitude de defesa no âmbito do procedimento do Júri é objeto, inclusive, de análise da jurisprudência pátria, conforme estabeleceu o STJ no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº 60.575/MG [2], de relatoria do Min. Ribeiro Dantas, quando tratando do uso de uniforme prisional nas sessões plenárias:

"Mutatis mutandis, a par das algemas, tem-se nos uniformes prisionais outro símbolo da massa encarcerada brasileira, sendo, assim, plausível a preocupação da defesa com as possíveis pré-concepções que a imagem do réu, com as vestes do presídio, possa causar ao ânimo dos jurados leigos".

No mesmo sentido, cita-se trecho extraído de um dos precedentes representativos que ensejaram a edição da Súmula Vinculante 11:

"Em primeiro lugar, levem em conta o princípio da não culpabilidade. É certo que foi submetida ao veredicto dos jurados pessoa acusada da prática de crime doloso contra a vida, mas que merecia tratamento devido aos humanos, aos que vivem em um Estado democrático de Direito. (…) Ora, estes preceitos — a configurarem garantias dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no País — repousam no inafastável tratamento humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a dignidade. Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante. O julgamento no Júri é procedido por pessoas leigas, que tiram as mais variadas ilações do quadro verificado. A permanência do réu algemado indica, à primeira visão, cuidar-se de criminoso da mais alta periculosidade, desequilibrando o julgamento a ocorrer, ficando os jurados sugestionados" (HC 91.952, relator ministro MARCO AURÉLIO, TRIBUNAL PLENO, j. 7/8/2008, DJE de 19/12/2008).

Por tais fatos, e ainda, considerando que, nos termos dos §1º e §2º do artigo 483 do Código de Processo Penal, não há necessidade de os membros do conselho de sentença fundamentarem sua decisão, tratando-se de afirmativa objetiva no caso de absolvição ou condenação, não há possibilidade de se determinar com certeza as consequências da realização de ato de sessão plenária sem a presença física do então acusado, bem como quaisquer outras influências de natureza subjetiva.

Compor o Conselho de Sentença importa na presunção de reputação ilibada, mas também em grande responsabilidade pelo destino de bem jurídico precioso, qual seja a liberdade. É necessário, ante a necessária igualdade de condições, que os julgadores estejam frente a frente com o acusado, conforme a já citada essência do Tribunal do Júri, quando o juiz presidente apresentar sentença absolutória ou condenatória.

Em relação ao exposto, no que diz respeito à subjetividade das votações do Conselho de Sentença e do comportamento jurisprudencial supracitado, é possível verificar a existência de possível nulidade da sessão de julgamento quando desrespeitada a plenitude de defesa. Sem prejuízo a todos os aspectos processuais e às questões subjetivas quanto aos direitos de cada caso concreto, é também necessário verificar-se quanto ao real risco de submeter um ato judicial de expansivo valor econômico aos cofres públicos, visto os custos de cada Sessão de Julgamento, a ato anulável.

A garantia de presença física do réu na ocasião do seu julgamento, opinamos, deve ser garantida. Acaso seja compreendida a necessidade de adiantar o julgamento por excesso de prazo, o réu detém o direito de estar no mesmo espaço físico e olhar nos olhos de seus julgadores quando da prolação da sua sentença, qualquer que seja o seu resultado, e privá-lo de tal ato também será compreendido pela privação da dignidade e da plenitude do direito de defesa, ante o subjetivismo das decisões dos jurados.

Não podemos, portanto, permitir que sejam suprimidas garantias em prol de uma suposta necessidade de garantia de saciedade de justiça. Reportamo-nos aos ensinamentos do imperador Marco Aurélio, que eternizou em suas meditações, a ideia de que "o que é bom para a natureza do todo, e contribui para preservá-la, é bom para cada uma de suas partes". O respeito às garantias, um necessário meio para combater as infelizes arbitrariedades cotidianas, é um respeito à toda a sociedade.


[1] STF — HC: 98676 PA, relator: ministro CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 07/02/2012, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-155 DIVULG 07-08-2012 PUBLIC 08-08-2012

[2] RMS 60.575/MG, relator ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 19/08/2019

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  • é advogado criminalista catarinense, pós-graduado em processo penal, presidente da Comissão de Direito Criminal e Assuntos Prisionais da 23ª Subseção da OAB/SC, membro da Comissão Estadual de Assuntos Prisionais da OAB/SC e membro do Instituto Anjos da Liberdade.

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