Opinião

A titularidade das funções públicas de interesse comum

Autor

  • Douglas Estevam

    é advogado secretário-geral da Comissão de Saneamento e Recursos Hídricos da Subseção da Barra da Tijuca (OAB-RJ) assessor do Instituto Rio Metrópole (IRM) membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

25 de março de 2022, 19h03

O fenômeno das regiões metropolitanas no Brasil, embora antigo [1], ainda suscita muitas dúvidas quanto a seu regime jurídico, à vista das recentes inovações legais e jurisprudenciais.

Além de sua disposição constitucional, que outorgou aos Estados a competência para instituí-las, o Supremo Tribunal Federal, em 2013, também fixou sua interpretação sobre a harmonia entre as unidades territoriais urbanas e as competências federativas previstas na Constituição de 1988.

No julgamento da ADI 1.842/RJ [2], a Corte entendeu que a "função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum", quando então é instituída a unidade territorial urbana.

Dito de outro modo, o interesse comum "inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município", razão por que sua gestão isolada seria uma desordem em termos de políticas públicas.

Não só, o interesse comum também se afigura nos serviços "que, restritos ao território de um [único município], sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais".

Ao fim e ao cabo, o acórdão esclareceu que o interesse comum "não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano", cujo ajuntamento compulsório já havia sido inclusive objeto de decisões anteriores — ADI 1.841/RJ e ADI 796/ES.

Nesse sentido, o artigo 25, §3º, da Constituição Federal inaugurou mais uma espécie de competência federativa, denominada competência conciliar. A esse respeito, os municípios não podem tomar decisões de modo isolado, "senão conjuntamente, numa espécie de cogestão entre eles e o Estado" [3].

Em síntese, os municípios são originariamente competentes para tratar de assuntos de interesse local. Entretanto, quando as funções públicas passam a demandar um tratamento integrado e coordenado, e esse fato jurídico é validamente reconhecido em lei complementar estadual, a predominância do interesse sobre a matéria deixa de ser municipal e se torna metropolitana.

Esse foi justamente o cerne do julgamento da ADI 1.842/RJ, cujo acórdão esclareceu que "o interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal". Pois que, desde que se estabeleça o interesse comum sobre alguma função pública, não é possível mais considerá-la como se municipal fosse.

O ponto de maior inflexão é o fato de o interesse comum ser "muito mais que a soma de cada interesse local envolvido, pois a má condução" desses serviços públicos é capaz de gerar consequências negativas para a unidade territorial como um todo. Ou seja, é impossível repartir a competência conciliar para cada um dos municípios agrupados, pois sua emergência está acima dos próprios interesses locais.

Juridicamente falando, os municípios deixam de ser titulares dos serviços públicos que forem objeto da lei complementar estadual, que se tornam funções públicas de interesse comum. É por essa razão que, no acórdão, é explicitamente ressaltado: "Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado".

Em outros termos, as regiões metropolitanas, as aglomerações urbanas e as microrregiões são titulares das funções públicas de interesse comum, em que se incluem os serviços públicos taxativamente elencados na lei complementar estadual.

Porém, é possível que opiniões divergentes surjam sobre a interpretação desse trecho do acórdão, pois o colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado não possui necessariamente a natureza de pessoa jurídica (de direito público), o que seria um impedimento à assunção de suas competências conciliares, na qualidade de titular dos serviços públicos.

No caso das unidades territoriais urbanas cuja instância colegiada deliberativa com representação da sociedade civil — não seja constituída sob a forma de pessoa jurídica (de direito público), alguém poderia argumentar que a titularidade sobre o serviço público, portanto, seria mantida com os municípios, a cujo órgão interfederativo seria outorgado apenas o exercício da função pública. Contudo, apesar de sofisticada, essa teoria não se coaduna com a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Essa questão está posta, pois aquele julgamento durou mais de uma década, com votos apresentando expedientes distintos para o mesmo problema, além da composição do próprio tribunal que mudou diversas vezes ao longo do processo. Enfim, não é possível depreender uma explicação jurídica, no acórdão da ADI 1.842/RJ, para a assunção da titularidade de serviços públicos por parte de eventual órgão interfederativo desprovido de personalidade jurídica.

Portanto, ou se parte do pressuposto teórico de que a personalidade jurídica é condição indispensável para a titularidade das funções públicas de interesse comum (criando um problema jurídico para as unidades territoriais urbanas cujo órgão colegiado seja despersonalizado), ou se reconhece que a teoria canônica necessita ser adequada aos novos fenômenos do direito constitucional brasileiro.

O exemplo mais ilustrativo dessa questão é a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, composta por três instâncias em sua governança interfederativa, além de seu fundo orçamentário especial: Conselho Deliberativo, Conselho Consultivo e Instituto Rio Metrópole. Nos termos da Lei Complementar nº 184/2018 [4], apesar de sua principal instância colegiada não ter personalidade jurídica, é atribuição do Conselho Deliberativo "exercer sua titularidade em relação aos serviços" de saneamento básico, incluindo a decisão "sobre a forma de prestação dos serviços, sua delegação e modelagem", bem como a aprovação das "minutas de editais de licitação de prestação de serviços, contratos e convênios" e a autorização para "a retomada da operação dos serviços".

Dentro dessa estrutura de governança, somente o Instituto Rio Metrópole possui natureza jurídica de autarquia (em regime especial), com a função de executar as decisões do Conselho Deliberativo. Sem embargo, no processo de desestatização dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário, o Conselho Deliberativo, em nome próprio, autorizou a celebração da gestão associada com o Estado do Rio de Janeiro e a este delegou as atividades de organização, gerenciamento e concessão dos serviços públicos [5], para a consecução dos auspiciosos leilões do ano de 2021.

Isto é, o Conselho Deliberativo não representou juridicamente os interesses particulares dos municípios que o compunham, mas agiu na própria qualidade de titular do saneamento básico, planejando, regulando, prestando e fiscalizando o serviço público. Isso porque existe uma clara distinção entre o interesse comum, capitaneado pela região metropolitana, e os interesses locais defendidos por cada municipalidade dentro de sua esfera federativa autônoma.

Nesse contexto, o problema da assunção de obrigações e até mesmo da representação jurídica — é sanada pela existência do Instituto Rio Metrópole, pessoa jurídica de direito público, que pode responder em nome da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. De um modo ou de outro, o titular dos serviços metropolitanos permanece sendo o Conselho Deliberativo.

Sem a pretensão de esgotar o tema, mas apenas explorando introdutoriamente a questão, quer-se dizer que a assunção da titularidade de serviço público por entidade despersonalizada já é um fenômeno jurídico seguramente instituído no direito brasileiro, em consonância com a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 1.842/RJ.

A título de exemplo, lembre-se de que é possível atribuir autonomia gerencial e financeiro-orçamentária a entidades da administração direta por meio de contratos de desempenho, o que permite, praticamente, órgãos despersonalizados responderem em nome próprio. Se assim o é, então a delimitação do conceito de titularidade necessita ser desatrelada da questão da personalidade jurídica, para que a realidade não seja deformada pela teoria.


[1] ESTEVAM, Douglas. O regime constitucional das regiões metropolitanas. Conjur, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-12/estevam-regime-constitucional-regioes-metropolitanas. Acesso em 14/3/2022.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 1.842. Relator min. Luiz Fux. Redator do acórdão min. Gilmar Mendes. Julgado em 6/3/2013. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630026. Acesso em 14/3/2022.

[3] ALVES, Alaôr Caffé. Regiões Metropolitanas, Aglomerações Urbanas e Microrregiões: Novas Dimensões Constitucionais da Organização do Estado Brasileiro. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista/tes1.htm. Acesso em 14 out. 2022.

[4] RIO DE JANEIRO. Lei Complementar nº 184, de 27 de dezembro de 2018. Dispõe sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sua composição, organização e gestão, define as funções públicas e serviços de interesse comum, cria a autoridade executiva da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e dá outras providências. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=52&url=L2NvbnRsZWkubnNmL2E5OWUzMTdhOWNmZWMzODMwMzI1Njg2MjAwNzFmNWQyLzE4NjVlMmM1NjVlMWU1NDc4MzI1ODNkMTAwNWRhOTlmP09wZW5Eb2N1bWVudA==. Acesso em 14/3/2022.

[5] CONSELHO DELIBERATIVO DA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO. Resolução CD nº 8, de 28 de dezembro de 2020. Autoriza a delegação de atividades específicas ao Estado do Rio de Janeiro, delibera sobre a forma de prestação dos Serviços de Água e Esgotamento Sanitário da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e aprova o Plano Metropolitano de Água e Esgotamento Sanitário. Disponível em: http://www.irm.rj.gov.br/publicacoes/DO-238-A-Resolucao-CD-n07-e-Resolucao-CD-n08-de-28-12-2020.pdf. Acesso em 14/3/2022.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), membro da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Gás Encanado (OAB-RJ), assessor da Diretoria de Planejamento e Projetos do Instituto Rio Metrópole (IRM), membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e membro da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro (Ujucarj).

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