Opinião

Processo aduaneiro, voto de qualidade no Carf e prescrição intercorrente

Autor

  • Mônica Elisa de Lima

    é advogada sócia do Escritório Lima e Oliveira Brito Advogados mestre em Direito pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) ex-conselheira da 3ª Seção do Carf e ex-auditora Fiscal da Receita Federal do Brasil.

24 de março de 2022, 14h11

O Processo Administrativo Fiscal Federal (PAF) é regido pelo Decreto (com força de Lei) nº 70.235/72. Em princípio e de acordo com seu artigo 1º, o âmbito dessa regência é o processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União e o de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal.

Tais processos administrativos são iniciados na Receita Federal e a apreciação dos litígios daí decorrentes é feita, em primeira instância, pela própria RFB, por meio de suas delegacias de julgamento, e em segunda, pelo Ministério da Economia, através do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf, órgão colegiado, com participação de representantes da própria Receita e dos contribuintes)

Na prática, não apenas as matérias propriamente tributárias estão inseridas no âmbito do PAF, mesmo porque incumbe à Receita Federal do Brasil não apenas a fiscalização e o controle de matérias tributárias, como também as aduaneiras. Assim é que também são processados no rito do Decreto 70.235/72 as cobranças dos direitos antidumping [1], a multa por conversão da pena de perdimento [2] e uma série de penalidades relativas a infrações ao controle administrativo das importações [3].   

Fato é que, sob o guarda-chuva do PAF, abrigam-se os processos tributários e não tributários. Tudo sob a denominação genérica de processos de determinação do crédito tributário, conforme disposto no artigo 1º: "este Decreto rege o processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União e o de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal".

Esta generalização talvez não soasse tão atécnica há 50 anos, ao ser editado o Decreto, quanto se percebe hoje, quando se tem clara a diferença entre a natureza do Direito Aduaneiro em confronto com Direito Tributário, mas é inegável que esta atécnia em nada invalida a circunstância de que as exigências contidas em ambos os tipos de processo, tributário e aduaneiro, estão abrangidos no conceito lato sensu de "determinação e exigência dos créditos tributários da União".

Sim, porque quem milita na área verifica, diariamente, os próprios auditores fiscais da Receita denominarem seus autos de infração eminentemente aduaneiros — com multas de conversão de perdimento e outras penalidades administrativas ou direitos antidumping — de lançamento de crédito tributário, ao mesmo tempo em que se baseiam exclusivamente no Código Tributário Nacional para se referirem a questões como responsabilidade, prescrição etc. Aliás, os próprios sistemas informatizados da RFB rodam os autos de infração das multas aduaneiras de forma padronizada, usando termos como "responsável tributário", "crédito tributário", "lançamento". A rigor, não há erro nisto, quando se considera o direito sob uma ótica ampla.

Por isto mesmo que não é, nem de longe, crível que o legislador, ao propor o acréscimo do artigo 19-E à Lei nº 10.522/2002, tenha tido a intenção de distinguir entre os processos aduaneiros e os tributários regidos pelo PAF, ao revogar a regra do desempate pró-fisco no Carf. Simplesmente seguiu a mesma redação — "processos de determinação e exigência do crédito tributário" — contida no artigo 1º do Decreto 70.235/72 e alterou, de forma ampla e geral, a regra do desempate nos julgamentos do Carf. Neste sentido, vejamos a alteração legislativa introduzida pelo artigo 28, da Lei nº 13.988/2020:  

"Artigo 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 19-E:
Artigo 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte".

Desta forma, padece de ilegalidade gritante a Portaria ME nº 260/2020, que distinguiu, onde a lei não o fez, os processos aduaneiros daqueles em que se discutem tributos, ao determinar que somente nestes o resultado será proclamado em favor do contribuinte [4].

É, no mínimo, contraditório e estarrecedor, um administrado receber um auto de infração, cobrando-lhe um "crédito tributário apurado", ser chamado de "contribuinte", ler uma ementa de DRJ falando de "obrigação tributária" e, em um julgamento empatado no Carf, ser surpreendido com a aplicação do voto de qualidade em seu desfavor, por se tratar de um auto aduaneiro. 

Não existe rigor técnico algum na Portaria ME nº 260/2020, mas um indisfarçável inconformismo com a alteração pró-contribuinte e administrado introduzida pela Lei nº 13.988/2020 e uma tentativa ilegal de distorcer as palavras do PAF para distinguir onde a lei não o fez.

Em resumo: academicismo por conveniência, violando a moralidade, a competência, a impessoalidade; enfim a legalidade em sentido amplo.

Contudo, esse mesmo suposto zelo pela técnica não se verifica quando, de fato, esta deveria ser adequadamente aplicada, ou seja, quando se trata da questão da prescrição intercorrente, para qual existe norma específica, com estatura de lei ordinária, fazendo a distinção formal entre crédito tributário e crédito não-tributário.

Com efeito, a Lei nº 9.873/99 estabelece hipótese de prescrição intercorrente para procedimento administrativo que trate de crédito não tributário e remarca sua não aplicabilidade aos procedimentos de natureza tributária. Nesse sentido:

"Artigo 1º (…).
§ 1º Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.
1º-A. Constituído definitivamente o crédito não tributário, após o término regular do processo administrativo, prescreve em cinco anos a ação de execução da administração pública federal relativa a crédito decorrente da aplicação de multa por infração à legislação em vigor. Artigo 5º O disposto nesta Lei não se aplica às infrações de natureza funcional e aos processos e procedimentos de natureza tributária."

Logo, restando certo que as multas aduaneiras não possuem natureza tributária (a teor do conceito de tributo constante do artigo 3º, do CTN [5]); sendo, a rigor, sanções por atos ilícitos, imperiosa é a aplicação da regra da prescrição intercorrente nos procedimentos administrativos correspondentes.

Registre-se que todos os precedentes geradores da Súmula Carf nº 11 — Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal — têm suporte em julgamentos tributários, relativos a impostos e contribuições federais [6].

Portanto, em relação aos processos administrativos aduaneiros julgados sob o rito do Decreto nº 70.235/72: não se aplica a restrição imposta pela Portaria ME nº 260/2020 (voto de qualidade pró-Receita Federal), pois a lei nº 13.988/2020 abrangeu todos os processos julgados no rito do PAF. Igualmente não se aplica o disposto na Súmula Carf nº 11 (restrição à prescrição intercorrente), porque está sob julgamento procedimento de natureza não tributária.

O que não se pode admitir, pelo mínimo de coerência e isonomia, é o Carf classificar as multas aduaneiras como procedimentos de natureza tributária, de modo a não lhes aplicar a prescrição intercorrente, e como de feição não tributária, para impingir derrotas pelo voto de qualidade.


[1] Lei 9.019/95:

Artigo 7º O cumprimento das obrigações resultantes da aplicação dos direitos antidumping e dos direitos compensatórios, sejam definitivos ou provisórios, será condição para a introdução no comércio do país de produtos objeto de dumping ou subsídio.

(…)

§5º A exigência de ofício de direitos antidumping ou de direitos compensatórios e decorrentes acréscimos moratórios e penalidades será formalizada em auto de infração lavrado por Auditor-Fiscal da Receita Federal, observado o disposto no Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972, e o prazo de cinco anos contados da data de registro da declaração de importação.

[2] Lei nº 12.350/2010:

Artigo 41. Os artigos 23, 28, 29 e 30 do Decreto-Lei no 1.455, de 7 de abril de 1976, passam a vigorar com a seguinte redação:

"Artigo 23. (…).

§ 3o As infrações previstas no caput serão punidas com multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, na importação, ou ao preço constante da respectiva nota fiscal ou documento equivalente, na exportação, quando a mercadoria não for localizada, ou tiver sido consumida ou revendida, observados o rito e as competências estabelecidos no Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972".

[3] Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009):

Artigo 707. As infrações de que trata o artigo 706 (Lei no 6.562, de 1978, artigo 3o):

I – não excluem aquelas definidas como dano ao Erário, sujeitas à pena de perdimento; e

II – serão apuradas mediante processo administrativo fiscal, em conformidade com o disposto no art. 768.

Artigo 768. A determinação e a exigência dos créditos tributários decorrentes de infração às normas deste Decreto serão apuradas mediante processo administrativo fiscal, na forma do Decreto nº 70.235, de 1972 (Decreto-Lei no 822, de 5 de setembro de 1969, artigo 2o; e Lei nº 10.336, de 2001, artigo 13, parágrafo único).

§ 1º O disposto no caput aplica-se inclusive à multa referida no §1º do artigo 689.

[4] Portaria ME nº 260/2020.

Artigo 2º O resultado do julgamento, constatado empate na votação, após colhidos os votos nos termos do artigo 58 da Portaria MF nº 343, de 9 de junho de 2015, será proclamado com o voto de qualidade do presidente de turma, na forma do §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.

§1º O resultado do julgamento será proclamado em favor do contribuinte, na forma do artigo 19-E da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, quando ocorrer empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, assim compreendido aquele em que há exigência de crédito tributário por meio de auto de infração ou de notificação de lançamento.

(…)

Artigo 3º A proclamação de resultado do julgamento favorável ao contribuinte nos termos do §1º do artigo 2º:

(…)

II – não se aplica ao julgamento:

a) de matérias de natureza processual, bem como de conversão do julgamento em diligência;

b) de embargos de declaração; e

c) das demais espécies de processos de competência do Carf, ressalvada aquela prevista no §1º do artigo 2º.

[5] Lei nº 5.172/66: Artigo 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

[6] Súmula CARF nº 11. Acórdãos precedentes: 103-21113 (IRPJ), 104-19410 (IRPF), 104-19980 (IRPF), 105-15025 (IRPJ), 107-07733 (IRPJ), 202-07929 (IUM), 203-02815 (IPI), 203-04404 (FINSOCIAL), 201-73615 (ITR), 201-76985 (IPI).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!