Opinião

Suspensão de segurança: tiro de canhão para matar passarinho

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24 de março de 2022, 15h19

Tem chamado a atenção da mídia especializada a estratégia processual adotada por alguns estados brasileiros de utilizar-se de um recurso chamado "suspensão de segurança" para cassar, de uma só vez, todas as liminares em vigor que dispensam os contribuintes de ICMS do pagamento do diferencial de alíquota do imposto (Difal) [1].

Mas não pretendemos discutir neste artigo a tese jurídica relacionada à constitucionalidade, ou não, da cobrança do Difal, até porque já o fizeram com maior propriedade Igor Mauler Santiago [2] e Fernando Facury Scaff [3], mas sim o recurso utilizado pelos estados para atingir seus objetivos.

O recurso de suspensão de segurança está previsto no artigo 15 da Lei nº 12.016/09 (Lei do Mandado de Segurança), que prevê a possibilidade de o presidente do tribunal perante o qual tramita o processo suspender, em decisão fundamentada, a execução de liminares e sentenças "para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas".

O parágrafo quinto do mesmo dispositivo permite, ainda, que, em uma única decisão, o presidente do tribunal estenda os efeitos da suspensão às liminares cujo objeto seja idêntico, bem como àquelas que venham a ser deferidas sobre a mesma matéria, mediante simples emenda do pedido original.

Tal recurso sempre sofreu severas críticas por parte da doutrina. Em primeiro lugar, por ferir o princípio da "paridade de armas" [4]. Se uma arma é concedida apenas a uma parte em um duelo, como a justiça será respeitada? Em segundo lugar, por criar uma "instância especial de cassação" [5], sujeita, obviamente, a uma grande interferência política.

Mas o que chama mais a atenção, nessa situação, é a utilização pela lei de conceitos vagos, cujo conteúdo pode ser preenchido casuisticamente, a depender da vontade do julgador. Afinal, o que vem a ser "grave lesão à economia pública"? Em matéria tributária, como as relações entre Fisco e contribuinte tendem a ser uniformes e continuadas, a maioria das decisões tem potencial para gerar um efeito multiplicador.

Não á toa, dez presidentes de tribunais estaduais já se utilizaram desse subterfúgio para cassar liminares que suspendiam a cobrança do Difal [6]. E a fundamentação é sempre a mesma, eminentemente econômica, de que a manutenção das liminares poderia causar prejuízo aos já combalidos cofres públicos, em "evidente" lesão à economia pública. Nem um argumento sobre a legalidade, ou não, da cobrança!

O Presidente do Tribunal de Justiça do Piauí foi além: suspendeu as liminares futuras que eventualmente venham a determinar a suspensão da cobrança do Difal, sem a necessidade de qualquer emenda ao pedido original [7], em clara demonstração de seu poder de prever o futuro, como os videntes, ou precogs, do filme Minority Report, dirigido por Spielberg.

E isso tudo (pasmem!) mesmo após a Advocacia Geral da União ter apresentado Parecer ao Supremo Tribunal Federal, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 7066 e 7070, pela suspensão da cobrança do Difal no ano de 2022.

Agora, caros leitores, imaginem a seguinte situação: um gerente de RH de uma determinada empresa recebe uma reclamação de alguns funcionários relativamente a descontos indevidos que os mesmos vêm sofrendo em seus salários. Após avaliar questão, determina a suspensão imediata dos descontos. Ao tomar conhecimento dessa situação, o diretor financeiro da empresa pede ao diretor de RH que mantenha os descontos, sob pena de a empresa não poder honrar seus compromissos.

Não lhes parece muito justo, certo? É porque não é!

Mesmo que possa ser superada a questionável constitucionalidade desse recurso, os presidentes dos tribunais devem atuar com extrema cautela para não tornar a exceção uma regra! Como adverte Hugo de Brito Machado Segundo, para corrigir decisões judiciais equivocadas, existem os recursos ordinários assegurados a ambas as partes do processo [8].

Não se pode confundir interesse público com interesse do Erário Público para se deferir tais ordens. Até porque, caso as cobranças indevidas sejam mantidas durante o curso processo, criarão um passivo para o Estado, que terá que devolver os valores recebidos indevidamente acrescidos de correção, juros, custas e honorários.

A suspensão de segurança, ensina Angelina Mariz de Oliveira [9], foi criada em um tempo em que não havia recursos ordinários contra liminares e sentenças proferidas em mandados de segurança, o que poderia fazer com que uma decisão equivocada causasse prejuízo extremo em razão do lapso temporal transcorrido até o julgamento da apelação.

Assim, banalizar a utilização da suspensão de segurança para todo e qualquer caso capaz de gerar "grave lesão à economia pública", como a maior parte das lides tributárias, a depender do julgador, é uma medida desproporcional e tem potencial, aí sim, de ser causar um dano imprevisto. E a vítima, nesse caso, é a democracia!


[4] BUENO, Cassio Scarpinella. A nova Lei do Mandado de Segurança. São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 93

[5] MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. São Paulo: Dialética, 2015, pág. 609

[8] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo tributário. São Paulo: Atlas, 2019, pág. 419

[9] OLIVEIRA, Angelina Mariz. "Suspensão de liminar e de sentença em mandado de segurança, na jurisprudência das Cortes Superiores" in RDDP nº 36. São Paulo: Dialética, março 2006, p. 22

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