Opinião

Racismo como responsabilidade civil nas relações de consumo (parte 1)

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22 de março de 2022, 6h31

Por meio da Constituição Federal de 1988, quis o nosso Poder Constituinte extirpar qualquer forma de preconceito, visando uma sociedade plúrima, harmoniosa e fraterna, a teor do contido no preâmbulo constitucional e no artigo 3º, IV. Neste sentido, o racismo resta capitulado como crime inafiançável e imprescritível, de acordo com o que dispõe textualmente o seu artigo 5º, XLII.

O crime de racismo, assim, vem definido na Lei nº 7.716/1989. Porém, pouco ou quase nada se fala sobre a prática do racismo — seja na sua forma escancarada e/ou velada (estrutural) , nas relações de consumo, por exemplo: quando uma pessoa negra é impedida de entrar numa loja; ou, ainda que se permitindo que esta realize suas compras, os seguranças a seguem constantemente, como se ela fosse um perigo em potencial; ou quando, mesmo se permitindo que essa pessoa finalize a compra, por uma suposta "falta de comunicação" do setor de segurança, o (a) consumidor (a) negro (a) é revistado (a) ao sair, como se tivesse furtado o bem recentemente adquirido, tendo, ao final e após muitas explicações, de provar que, de fato, comprou o produto.

O presente artigo nasce do estudo de um caso específico, originário do Tribunal de Justiça de São Paulo, processo 1041653-97.2016.8.26.0100. Ao ler a decisão colegiada, fiquei estarrecido pela "luta" de dois dos três desembargadores que participaram do julgamento, em discutir elementos como imprudência, negligência ou imperícia  característicos da chamada responsabilidade subjetiva , contrariando a regra da responsabilidade objetiva do Código de Defesa do Consumidor. A leitura do acórdão causou-me estranheza, espanto e, para ser sincero, revolta no esforço dos magistrados em tentar "desculpar" uma conduta que deveria ter sido reprimida de imediato, independentemente de quem fosse: se criança ou adulto, se pobre ou rica, se nacional ou estrangeira.

Vários também são os casos em que se decide por um suposto “exercício regular de direito” dos fornecedores ou, quando muito, minimizando a questão para apenas um "mero aborrecimento".

O Estado Social e Democrático de Direito e a busca pela felicidade, pela dignidade, pela prosperidade, igualdade e promoção do bem é para todos, indistintamente, porém e infelizmente, não é o que vemos na prática e, nas relações de consumo, o racismo não é diferente. No caso brasileiro, há sempre um "mas", um "porém", uma exceção que parece privilegiar brancos em detrimento de negros, ricos em detrimento de pobres, homens em detrimento de mulheres e por aí vai.

Iniciamos o estudo do racismo nas relações de consumo esclarecendo, desde já, que não é nosso objetivo discutir o óbvio: que o racismo, enquanto um ato de desumanização de indivíduos de determinada raça e, portanto, antijurídico, é crime, mas sim, verificarmos juntos o que o Código de Defesa do Consumidor nos diz sobre referidas situações ainda tão infelizmente corriqueiras.

Relação jurídica de consumo
Quando se tem uma situação fática como um financiamento, por exemplo, em que há a necessidade de forma solene, isto é, no qual o formalismo é condição sine qua non de existência e validade do negócio jurídico, a teor do que nos impõe o artigo 166, IV do Código Civil, é fácil percebermos quando nasce a relação jurídica de consumo, pois nestas há a sua concretização mediante à adesão contratual, ou seja, a assinatura do contrato. Mas e quando a relação advém, por exemplo, da compra e venda de uma roupa numa loja?

É importante frisarmos que as relações de consumo prescindem de um instrumento, ou seja, de um reconhecimento formal de sua existência. É possível, sim, que a relação já reste evidenciada pelo só desejo de aquisição do bem.

Em verdade, num mundo em que a oferta de produtos e serviços é massificada à nível global, as relações de consumo se encontram em modo stand by, sempre em seu modo latente, pairando sobre a cabeça dos consumidores, mas já produzindo alguns de seus efeitos jurídicos, tais como a exigência de boa-fé objetiva que deve preceder as relações negociais.

Nos casos de compra e venda numa loja de produtos eletrônicos, de cosméticos, roupas, calçados, por exemplo, entendemos que a relação jurídica de consumo resta configurada, através e pelo mesmo ato que dá legitimidade e, de igual modo, juridicidade ao contrato, qual seja: a vontade. A vontade é o elemento que concretiza a relação de consumo. A partir do momento em que o consumidor vê, por exemplo, uma publicidade de um determinado produto e decide adquiri-lo, nasce, com isso, a relação de consumo. Isto se dá uma vez que os fornecedores se utilizam da prática predatória da publicidade o que acaba influenciando o consumidor à, muitas vezes, adquirir um produto sem sequer precisar, sem sequer parar para pensar se aquele produto é, realmente, necessário. Trata-se da tal necessidade do consumo desenfreado, podendo conduzi-lo, inclusive, ao tal super endividamento. 

Nada mais justo do que pensarmos que a vontade já lastreia a relação de consumo e à ela dá vida, na medida em que, no mundo capitalista atual, a maior arma dos fornecedores para incidir na consciência dos consumidores e atraí-los para que adquiram seus produtos é justamente a oferta, a propaganda e o marketing. São essas "armas" que tentam nos convencer de que referido bem é necessário e sua aquisição é urgente. Tamanha sua importância que o Código de Defesa do Consumidor se preocupou em regrá-los, consoante se verifica dos artigos 35 a 38, evitando abusos que coloquem os consumidores em ainda maior desvantagem fática, jurídica, econômica, etc.

No mais, quando o fornecedor disponibiliza um espaço físico, recepcionando seus consumidores, para que ali ocorram as várias relações de consumo de seus produtos e serviços; quando aquele os expõe em suas vitrines; o que o fornecedor está fazendo é, numa visão teleológica, atrair pessoas e, com isso, formar sua cartela de clientes, inclusive, fidelizando-os, o que reforça a nossa afirmação de que tanto a oferta, quanto a publicidade são poderosos instrumentos para a formação da vontade do cliente.

Ora, adotando-se o exemplo acima como premissa para nossa conclusão, vejam que, mesmo que o consumidor decida, ao final, não adquirir nenhum produto da loja, a relação de consumo já resta configurada. Suponhamos que este mesmo consumidor, ao se dirigir à saída, sofre alguma queda ou um pedaço do teto cai sobre sua cabeça. Estaríamos, obviamente, diante de um típico acidente de consumo, passível de reparação, portanto. Isso porque há um dever de proteção, de segurança que independe de contrato, daí decorrendo o fato do serviço. Observe que o Código de Defesa do Consumidor não exige um contrato  forma solene  para sua incidência, mas, sim, trata das "relações" de consumo, ou seja, do vínculo fático-jurídico entre pessoas.

Os consumidores negros
Importante frisarmos que o Brasil é signatário de pactos internacionais, tais como a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que preconizam não só o fim de toda e qualquer forma de discriminação, mas igualmente, assim como o Código de Defesa do Consumidor, o respeito às liberdades e interesses sócio-econômicos de uma parcela da população a qual histórica e culturalmente sofre violências de toda sorte. Cabe-nos pontuar, ainda, que referidos pactos são alçados ao patamar constitucional, não apenas pelo que dispõe o artigo 5º, §2º de nossa Constituição, mas por sua natureza de direitos humanos e, portanto, fundamentais quando assim incorporadas ao ordenamento jurídico nacional, constituindo-se em verdadeiras normas materialmente constitucionais, ainda que fora da composição originária da Lei Suprema.

A jurisprudência pátria, entretanto costuma reprimir  nas raras vezes em que o faz  apenas e tão somente atos de racismo explícito e violento. Entretanto, quando falamos em racismo estrutural, as decisões são normalmente no sentido de concluir que não houve racismo; ou, ainda que o reconhecendo, acabam por defini-lo como "mero aborrecimento". De todo modo, os fornecedores que praticam táticas desleais contra consumidores negros são infelizmente quase sempre isentos de qualquer tipo de penalidade, reforçando e fazendo perpetuar o racismo velado praticado.

É primordial que o Poder Judiciário faça uma desconstrução de alguns de seus posicionamentos e repense o que entende por racismo, para incluir o racismo estrutural, no sentido de avaliar se uma determinada situação é, de fato, prática de racismo velado. O racismo não vive só de ofensas e/ou agressões, mas hoje, principalmente, de posturas que reforçam a segregação econômico-social desta camada mais discriminada da população.

O eminente escritor, filósofo e advogado Silvio de Almeida [1], em entrevista ao jornal El País Brasil, nos ensina, com irretocável clareza, que "temos um sistema de Justiça que funciona a partir do que chamamos de seletividade. (…) O que a gente já chama de desigualdade racial e de desigualdade econômica é naturalizada e é tecnicamente construída a partir da atuação do sistema de Justiça".

Destacamos, ainda, que em matéria publicada no jornal O Globo[2], o Procon-SP fez uma pesquisa na qual constatou que "negros e mulheres estão entre os principais alvos de preconceito", entretanto, o órgão afirma que há baixa procura por reparações judiciais, justamente pela "dificuldade de comprovar a discriminação, pois na maior parte dos casos ela é velada".

Há, portanto, um conjunto de fatores que contribuem para que o racismo estrutural persista: 1) não só a dificuldade em se reconhecer sua prática, como igualmente 2) a normalização dela, através de posturas adotadas pelo próprio Poder Judiciário, no sentido de abrandar seus efeitos, entendendo-o como ato comum e, portanto, aceitável ou que não ofende a honra de suas vítimas, desestimulando as reparações civis, além e por fim, 3) de grande parte dos juízes e desembargadores, em razão de sua posição sócio-econômica, adotar uma postura elitista, que privilegia uns em detrimento de outros, tratando com total indiferença os problemas e dificuldades das pessoas negras.

A psicanalista Vera Iaconelli, mestre e doutora pela Universidade de São Paulo (USP), alerta que "quando toleramos a piada sexista/racista, criamos o caldo de cultura propício à naturalização de atos violentos. Por ação ou omissão, nos tornarmos seus incentivadores e cúmplices [3]", ressoando, assim, a mensagem enfática da ativista, filósofa e escritora norte-americana Angela Davis, no sentido de que "numa sociedade racista, não basta não ser racista. É preciso ser antirracista".

Neste sentido, prestamos nossas homenagens à desembargadora Andréa Maciel Pachá, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos autos do processo nº 0050308-47.2019.8.19.0203, para a qual, com grande lucidez, asseverou em importante precedente que "impossível decidir sobre o conflito (…), sem registrar, de forma objetiva, a tentativa de normalizar o racismo, como se fosse possível determinar quem são 'os suspeitos de sempre', a partir da cor do corpo. (…) Para enfrentar essa chaga que nos envergonha e nos diminui em humanidade, precisamos, antes de mais nada, deixá-la visível e adotar, institucionalmente, práticas antirracistas para reduzir os danos, respeitando a intensidade da dor que o preconceito produz".

O racismo estrutural, portanto, é um racismo mais perigoso, porquanto reforça situações constrangedores, discriminatórias e segregatórias entre consumidores brancos e negros, fazendo com que estes últimos permaneçam em condições de desigualdade, das mais variadas formas. Vejam que, quando se fala em situações de racismo, os consumidores negros devem ser automaticamente enquadrados como hipossuficientes, ou seja, no sentido de se reconhecer sua vulnerabilidade qualificada, a teor do que determina o artigo 39, IV do Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido, entendemos necessário acostarmos, aqui, a lição do e. mestre Sérgio Cavalieri Filho, para o qual "hipossuficiência é um agravamento da situação de vulnerabilidade, um plus. (…) o consumidor vê-se agravado nessa situação por sua individual condição de carência cultural, material ou ambos [4]". E vai além o e. jurista, ao afirmar que "o CDC trata de maneira desigual o consumidor não para conferir-lhe privilégios ou vantagens indevidas, mas, sim, prerrogativas legais  materiais e instrumentais  para que se atinja o desiderato constitucional da igualdade real. (…) Dito de outra maneira, não fere o princípio constitucional da isonomia o tratamento diferenciado  protetivo e defensivo – dispensado pelo legislador infraconstitucional ao consumidor (…) [5]"

Acerca da questão da igualdade real, vejamos a lição do constitucionalista português Jorge Miranda, para o qual "os direitos são os mesmos para todos; mas, como nem todos se acham em igualdade de condições para os exercer, é preciso que estas condições sejam criadas ou recriadas através da transformação da vida e das estruturas dentro das quais as pessoas se movem (…) mesmo quando a igualdade social se traduz na concessão de certos direitos ou até certas vantagens especificamente a determinadas pessoas  as que se encontram em situações de inferioridade, de carência, de menor proteção  a diferenciação ou a discriminação (positiva) tem em vista alcançar a igualdade e tais direitos ou vantagens configuram-se como instrumentais no rumo para esses fins [6]".

Há, portanto, o dever constitucional de se enfrentar o racismo estrutural, o qual, a nosso ver e com o devido respeito àqueles que pensam de forma contrária, é muito mais perigoso do que o racismo mais violento e palpável, pois se trata de uma forma de discriminação velada, acobertada sobre um suposto manto de legalidade, quando, em verdade, é mais insidioso, vil e cruel, visando justamente acoberta o pensamento antiquado, imoral e segregatório de que existe uma determinada raça ou de indivíduos de uma determinada cor de pele que não merecem ter o mesmo respeito às suas liberdades individuais, econômicas e sociais atendidos.

Continua parte 2


[4] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, Pág. 43.

[5] Idem nota 1, pág. 43 e 44.

[6] MIRANDA, Jorge de. Manual de Direito Constitucional. 3. Ed, tomo IV, Coimbra Editora, p. 225.

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