Opinião

Modulação perdeu eficácia nas relações tributárias

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21 de março de 2022, 11h22

A diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Se é possível extrair um ensinamento desse ditado popular para o contexto de exigência do ICMS-Difal, é de que a solução dada pelo Supremo Tribunal Federal, com a pretensão de manter o equilíbrio das relações tributárias, resultou, na realidade, em mais um impasse judicial do tema.

Rememoremos: no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5469/DF, ocorrido em fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do Convênio nº 93/2015, que instituiu a incidência do Difal nas operações interestaduais envolvendo consumidores finais não-contribuintes do ICMS.

De acordo com o texto constitucional, o ICMS é imposto devido em favor do estado de origem da mercadoria, tributação que, no contexto vigente de economia digital, implicou distorções no equilíbrio econômico entre os Estados. Dessa forma, por meio da Emenda Constitucional nº 87/2015, posteriormente regulamentada pelo Convênio nº 93/2015, foi proposto o diferencial de alíquota do ICMS, popularmente denominando como Difal, com a finalidade de canalizar parte dos recursos para o Estado de destino. Em linhas gerais, o contribuinte do ICMS passou a ser responsável por mais uma obrigação tributária: além do recolhimento do imposto para o estado de origem, caberia o pagamento do Difal para o estado de destino, calculado conforme a diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual da unidade federada.

No julgamento da ADI nº 5469/DF, entendeu a Suprema Corte que o convênio não seria o instrumento adequado para estabelecer normas gerais tributárias, que é o que, de fato, o Convênio nº 95/2015 fez ao dispor sobre procedimentos para o recolhimento do diferencial de alíquota de ICMS devido nas operações interestaduais. Sob o império da Constituição Federal, tem-se que a obrigação tributária, os contribuintes e todos os aspectos materiais e quantitativos da tributação configuram matérias afeitas à lei complementar, ou seja, não poderiam ser veiculadas em um convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).

E, inexistindo lei complementar em vigor, tampouco há base jurídica para a exigência do diferencial de alíquota pelos Estados e pelo Distrito Federal. Ora, a consequência da declaração de inconstitucionalidade é que a norma é expurgada do ordenamento jurídico, afastando-se os efeitos pretéritos e futuros dela decorrentes, o que, para o caso concreto, significaria a extinção de quaisquer cobranças do Difal vencidas ou vincendas fundamentadas no Convênio ICMS nº 93/2015.

No entanto, essa não foi a determinação proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Sob a aplicação da modulação de efeitos, concluiu-se que inconstitucionalidade do Convênio ICMS nº 93/2015 somente produziria efeitos a partir do exercício financeiro seguinte à publicação do julgamento, ou seja, no ano de 2022. Essa postergação dos efeitos advindos da ordem judicial pretendia conferir aos Entes Tributantes lapso temporal suficiente para a edição do veículo legislativo adequado para a instituição do ICMS-Difal, sem que, nesse ínterim, houvesse impacto os cofres públicos.

Embora sejam incontestáveis os reflexos do julgamento na ADI nº 5469/DF na arrecadação e na política fiscal dos Estados e do Distrito Federal, a modulação de efeitos é um instituto com caráter excepcional, cuja aplicação, por força do artigo 27 da Lei no 9.868/1999, não se justifica pela perda arrecadatória decorrente da declaração de inconstitucionalidade. Questionamentos sobre a modulação de efeitos à parte, fato é que essa foi a alternativa utilizada pelo Supremo e que, mesmo com meses de prazo para a edição de uma lei complementar, a controvérsia não se encerrou com o advento da norma.

Isso porque, tendo o STF definido, como limite máximo para a produção de efeitos do Convênio ICMS nº 93/2015, o encerramento do exercício de 2021, a exigência do diferencial de alíquota de ICMS, a partir de 1º de janeiro de 2022, demandaria a prévia existência de lei complementar em vigor. Apesar da movimentação do Congresso Nacional e dos Governos Estaduais, a entrada em vigor da lei complementar que instituiu o Difal de ICMS, a Lei Complementar no 190/2022, somente se deu em 04 de janeiro de 2022, data da sanção presidencial.

Considerando que a sanção do Presidente da República é ato indispensável para a vigência e para a eficácia da legislação, o tratamento do diferencial de alíquota por meio da LC nº 190/2022 não atendeu ao prazo máximo imposto pelo Supremo Tribunal Federal para a edição da norma, de modo que a exigência do Difal seria legítima apenas em 2023.

Além do princípio da legalidade tributária, regra que já alicerçou o julgamento da ADI nº 5469/DF, o poder de tributar é limitado pelos princípios da anterioridade anual e da anterioridade nonagesimal, os quais preveem que a exigibilidade da exação dar-se-á apenas no ano calendário referente ao exercício financeiro seguinte da vigência da lei instituidora, depois de transcorridos noventa dias da publicação, sob pena de infringência da garantia aos contribuintes salvaguardada pelo texto constitucional.

Existe razão de ser para que essas limitações à tributação, a exemplo do princípio da anterioridade anual, consubstanciem comandos mandatórios aos Entes Públicos e aos contribuintes. A sua finalidade precípua é a de invocar garantias de previsibilidade e de não-surpresa, assegurando a segurança jurídica para que os contribuintes não sejam surpreendidos por uma exigência tributária inesperada, que muito se reflete na cobrança de um diferencial de alíquota amparada por legislação que sequer estava vigente no início do exercício.

Ocorre que, mesmo tendo a LC 190/2022 observado a anterioridade nonagesimal, ao estabelecer que a produção de efeitos do diferencial de alíquota iniciará a partir do mês de abril de 2022, a sua redação é silente quanto à regra da anterioridade do exercício. Com isso, os Estados e o Distrito Federal se movimentam para cobrar o Difal ainda em 2022: mais recentemente, o Estado de São Paulo editou o Comunicado CAT nº 02, de 27/01/2022, determinando que o Difal será exigido a partir de 01/04/2022.

A exigência imediata pelos Fiscos Estaduais despreza que, salvo para os tributos de caráter extrafiscal e para as contribuições sociais, os princípios constitucionais da anterioridade anual e nonagesimal são insuscetíveis de restrição. Ora, tendo sido instituída nova relação jurídico tributária, ponto que, no que tange ao ICMS-Difal, restou incontroverso pelo julgamento da ADI nº 5469/DF, será cabível o cumprimento da anterioridade do exercício e da noventena, não podendo o Poder Público eleger quais das regras acatará na novel tributação.

Iniciado um novo capítulo para a controvérsia do Difal, não resta alternativa aos contribuintes senão o caminho da judicialização. Ao passo que os contribuintes ingressam com suas ações individuais, existindo decisões favoráveis à suspensão da cobrança em 2022, o assunto já chegou no Supremo Tribunal Federal, por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizadas pelo Estado de Alagoas e pela Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq).

E, assim, o remédio da modulação de efeitos não mais aparenta ser uma solução eficaz para dirimir os conflitos de natureza tributária.

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