Opinião

O fim do voto de qualidade no Carf é constitucional e conveniente

Autor

  • Breno Ferreira Martins Vasconcelos

    é sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados doutorando em Direito e Desenvolvimento na FGV Direito SP (beneficiário da Bolsa Mario Henrique Simonsen) advogado professor da pós-graduação lato sensu da Escola de Direito de São Paulo da FGV e do Insper e pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV e do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper.

19 de março de 2022, 9h17

Em abril de 2020, assinei, ao lado de juristas que admiro, texto neste espaço [1] no qual recomendamos veto presidencial ao artigo 28 da Lei nº 13.988/2020, que inseriu o artigo 19-E na Lei nº 10.522/2002, proveniente de emenda aglutinativa apresentada na conversão em lei da Medida Provisória nº 899/2019. O dispositivo previu a extinção do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e estabeleceu que, em caso de empate, resolve-se o julgamento "favoravelmente ao contribuinte".

Em síntese, naquela oportunidade, a pauta consensual foi a de sustentar e listar aprimoramentos pelos quais o Carf deveria passar, e de que seria um equívoco atribuir vitória ao contribuinte em caso de empate na votação. Adicionalmente, em entrevista, manifestei preocupação quanto a possíveis consequências sistêmicas indesejadas [2].

Passados quase dois anos da sanção à alteração legislativa, tenho o benefício do olhar em perspectiva para concluir que os antigos temores não se concretizaram e a decisão do parlamento foi acertada. Assim, após uma reflexão sincera, e considerando que não estamos vinculados a nossas visões passadas, mas nos mantemos sempre abertos ao diálogo, apresento os motivos que levaram à mudança de meu entendimento sobre o tema.

Para isso, abordarei as peculiaridades do modelo brasileiro de constituição do crédito tributário, com enfoque no Carf, e como ele justifica a adoção do critério de desempate "pró-contribuinte". Desenvolvo conceitos da literatura institucionalista, teoria multidisciplinar que reúne as ciências política, econômica e jurídica, e que estruturou essa reavaliação. Ao fim, minhas conclusões.

Antes de iniciarmos, é importante deixar claro que parto do pressuposto de que o fim do voto de qualidade é constitucional, formal e materialmente. Não se sustentam as alegações de que o artigo 28, da Lei nº 13.988/2020, seria fruto de um "contrabando legislativo", pois sua inclusão guarda pertinência temática com o restante da lei, que também trata de forma de extinção do crédito tributário. Ainda, diante do cenário de incertezas que passaremos a expor, o desempate "pró-contribuinte" nos parece ser a solução, passível de ser implementada atualmente, que melhor protege a segurança jurídica, princípio constitucional de máxima relevância.

Há anos estudamos o modelo do Carf e todo o sistema processual tributário [3]. Os estudos resultaram em proposições de mudanças institucionais voltadas à redução do litígio, ao reequilíbrio de forças e à construção de uma relação mais colaborativa entre fisco e contribuintes.

Essas alterações envolvem a criação de programas de conformidade capazes de conceder tratamentos mais justos em razão do perfil dos contribuintes, pela adoção de mais transparência e participação da sociedade na edição de normas tributárias, explicitação da interpretação oficial, bem como por reformulações de estrutura, composição e procedimentos do Carf. Quanto ao conselho, propusemos a ampliação dos prazos de mandato dos conselheiros e sua renovação automática, quando cumpridos requisitos objetivos; a equiparação entre os direitos e deveres de conselheiros representantes do fisco e dos contribuintes; além de alterações nas regras para a aprovação de súmulas e no papel exercido pelas Delegacias de Julgamento da Receita Federal, que passariam a assumir uma função consultiva e de orientação aos contribuintes, relacionada à formação e constituição das obrigações tributárias.

Enquanto isso, o papel do voto de qualidade no contencioso tributário administrativo federal era constante objeto de acalorados debates.

Na literatura institucionalista o voto de qualidade é o que se denomina como "instituição", uma regra do jogo em sociedade [4]. Instituições bem desenhadas geram incentivos positivos. Quando mal desenhadas, podem gerar relações conflituosas e extrativistas, e impactam o desenvolvimento econômico.

Compreender a instituição central sob estudo e aquelas em seu entorno pode nos ajudar a formular políticas públicas mais adequadas e eficientes. Um conceito importante, nesse processo científico, é o da dependência da trajetória (path dependence). Mariana Prado e Michael Trebilcock [5] a definem como a reiteração de um conjunto de arranjos institucionais por determinado período. E essa reiteração gera um aumento dos ônus para promover mudanças. Isso porque os agentes, que interagem e pertencem a esse ambiente institucional, tendem a dele extrair benefícios crescentes, o que os leva a resistirem às mudanças que possam implicar perdas individuais.

Outro conceito importante é o das complementaridades institucionais. De acordo com Matthew Taylor [6], elas são "instituições que orientam incentivos individuais na mesma direção e são, portanto, reforçadas por escolhas estratégicas semelhantes. Isso quer dizer que estão sujeitas a processos mutuamente constitutivos de reprodução e mudança institucional".

Uma instituição, como é o voto de qualidade, está conectada a outros arranjos institucionais em diferentes domínios sociais, que a preservam e reforçam. Indivíduos tendem a otimizar seus ganhos, ainda que suas estratégias gerem resultados coletivos subótimos. Essa leitura da realidade exige que se faça uma investigação de quais são os benefícios obtidos com a manutenção do arranjo institucional. O exame revelará os beneficiários da regra mal desenhada, o que auxilia na formulação de juízos normativos sobre sua adequação, permitindo, então, um debate mais racional sobre como promover reformas que promovam melhores resultados práticos.

Considerando os conceitos expostos e aplicando-os ao contexto do voto de qualidade, alguns elementos determinantes precisam ser considerados para se avaliar a correção da opção parlamentar de extingui-lo.

Na sistemática anterior, o modelo de desempate gerava uma incoerência: se o empate revela uma dúvida interpretativa, por que atribuir vitória à parte majoritariamente (ou exclusivamente) responsável pelo conflito? Em outras palavras, se cabe à União editar normas simples e claras, reduzir incertezas, prestar serviços em que o contribuinte seja tratado como um cliente, e não como adversário, e criar meios consensuais para evitar o contencioso, por que ela, União, e não o contribuinte, se beneficiaria do empate?

O sistema tributário brasileiro é caracterizado por elevada complexidade e insegurança [7], e pela superprodução de normas tributárias [8], cuja atribuição para interpretar, aplicar e recolher o tributo é progressivamente (e hoje quase totalmente) transferida ao contribuinte. Paradoxalmente, quando os contribuintes possuem dúvidas interpretativas — o que não é incomum considerando o número de atos normativos — podem iniciar um processo de consulta fiscal, notoriamente lento e desacreditado [9]. Para completar um cenário já disfuncional, são raras as iniciativas que concedem a esses contribuintes direitos como autorregularização, acesso a meios alternativos de solução de litígios ou incentivos à conformidade tributária [10].

Os números demonstram a necessidade de mudanças: em 2019, o contencioso tributário federal representava, em cálculo subestimado, 52,7% do PIB nacional, correspondentes a R$ 3,825 trilhões [11]; em janeiro deste ano, o estoque processual do Carf contava com 90.100 processos que somam R$ 1 trilhão em créditos tributários [12].

Assim, entendemos que, não tendo conseguido a autoridade administrativa convencer a própria Administração de que o lançamento atende aos pressupostos legais, o justo é que o crédito nele veiculado seja extinto.

Sob a ótica institucional, portanto, o fim do voto de qualidade desloca incentivos e devolve à União o ônus de produzir normas mais claras, investir e promover governança, segurança jurídica e uma relação mais cooperativa com os contribuintes.

Ao contrário do que sustentado no passado, entendemos ser necessária a manutenção em nosso ordenamento jurídico da alteração procedimental introduzida pelo artigo 19-E, da Lei nº 10.522/2002, incluído pela Lei nº 13.988/2020. Além de não afrontar a Constituição Federal, é, entre as opções de desempate, a que mais protege princípios e valores constitucionais, privilegiando, ainda, a eficiência na resolução de litígios em matéria tributária.

O fim do voto de qualidade no Carf é constitucional e, ao deslocar incentivos, pode induzir a União a promover mudanças incrementais positivas, como as que sempre defendemos, tornando o ambiente tributário mais previsível, colaborativo e adequado aos papéis desempenhados pelos sujeitos da relação tributária.


[2] Fim do voto de qualidade pode mudar teses no Carf, disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/fim-do-voto-de-qualidade-pode-mudar-teses-no-carf-26032020. Acessado em 15/3/2022.

[3] Os resultados dos estudos realizados desde 2016 estão registrados nos artigos:

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; MATTHIESEN, M. R. D.; SILVA, Daniel S. S. .15 propostas para melhorar o processo administrativo fiscal federal. São Paulo: JOTA, 2019 (Internet: site JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/15-propostas-para-melhorar-o-processo-administrativo-fiscal-federal-02032020, acessado em 9/6/2021)

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; MATTHIESEN, M. R. D.; SILVA, Daniel S. S. O início de uma reforma do processo administrativo fiscal federal. São Paulo: JOTA, 2019 (Internet: site JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/inicio-reforma-processo-carf-05042019, acessado em 6/6/2019)

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; SANTI, Eurico M. D.; SILVA, Daniel S. S.; AGUIAR, L. I. L.; MATTHIESEN, M. R. D.; LAGOS, R. M.; PASSOS, A. B.; ANDRADE JR, L. C.; GOLDSTAJN, R.; ALVES, O. V.; TOCCI, L.; BENITH, P. Macrovisão do crédito tributário: Modelos para o Carf. São Paulo: JOTA, 2017 (Internet: site JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/macrovisao-do-credito-tributario-modelos-para-o-carf-11102017, acessado em 6/6/2019)

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; MATTHIESEN, M. R. D. Honorários de sucumbência no NCPC: Risco, escolha e aposta no contencioso judicial tributário. In: Gisele Barra Bossa; Eduardo Perez Salusse; Tathiane Piscitelli; Juliana Furtado Costa Araújo. (Org.). Medidas de Redução do Contencioso Tributário e o CPC/2015. 1ed. São Paulo: Almedina, 2017, v. 1, p. 581-598.

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; SANTI, Eurico M. D. ; SILVA, Daniel S. S.; AGUIAR, L. I. L.; MATTHIESEN, M. R. D.; LAGOS, R. M.; PASSOS, A. B.; ANDRADE JR, L. C.; GOLDSTAJN, R.; ALVES, O. V.; TOCCI, L.; BENITH, P. . Macrovisão do crédito tributário: Aperfeiçoando o Carf. São Paulo: JOTA, 2017 (Internet: site JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/macrovisao-do-credito-tributario-aperfeicoando-o-carf-04102017, acessado em 6/6/2019)

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins. As Sete Falácias sobre o CARF. JOTA, 2015 (Internet: site JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-sete-falacias-sobre-o-carf-15062015, acessado em 6/6/2019).

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins. No campo das instituições, Carf se distingue como uma arena democrática. São Paulo: Consultor Jurídico, 2017 (Internet: site Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jan-02/retrospectiva-2016-carfse-distingue-arena-democratica, acessado em 6/6/2019).

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; SILVA, Daniel S. S.; SANTI, Eurico M. D.; DIAS, K. J.; GOMES HOFFMANN, S. Observatório do CARF: Tribunal zeloso e jurisprudência analítica. site JOTA, 2016 (Internet: site JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/observatorio-do-carf-tribunal-zeloso-e-jurisprudencia-analitica-11022016, acessado em 6/6/2019).

VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; SANTI, Eurico M. D.; SILVA, Daniel S. S. Dez Sugestões Institucionais para o CARF. JOTA, 2015 (Internet: site JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/dez-sugestoes-institucionais-para-o-carf-22042015, acessado em 6/6/2019).

[4] Douglass North, Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. São Paulo: Três Estrelas, 2018, p. 13.

[5] PRADO, Mariana; TREBILCOCK, Michael. Path dependence, development, and the dynamics of institutional reform. The University of Toronto Law Journal, vol. 59, n. 3, p. 341-379, 2009, p. 350.

[6] TAYLOR, Matthew. Decadent Developmentalism. The Political Economy of Democratic Brazil, Cambridge: Cambridge University Press, 2020, p. 16, tradução nossa.

[7] O Brasil foi apontado como o mais complexo entre as 100 jurisdições avaliadas pelas universidades alemãs LMU Munich e Universität Paderborn no estudo Tax Complexity Index (disponível em: https://www.taxcomplexity.org/, acessado em 30/3/2021) e o segundo mais inseguro entre os 21 países analisados pelo Centre for Business Taxation da University of Oxford no estudo Measuring corporation tax uncertainty across countries: Evidence from a cross-country (disponível em: https://etpf.org/papers/S001UncSrvy.pdf, acessado em 30/3/2021).

[8] De acordo com o acórdão nº 1105/2019, publicado pelo Tribunal de Contas da União, até setembro de 2017 o sistema tributário brasileiro já contava com mais de 26 mil atos vigentes.

[9] Essas constatações podem ser verificadas, a título de exemplo, no Acórdão TC 1105/2019, proferido em 2018 pelo Tribunal de Contas da União, e no artigo Diagnóstico do processo administrativo fiscal federal

Oito macro problemas que emperram o sistema tributário brasileiro, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/diagnostico-processo-administrativo-fiscal-federal-22082016, acessado em 14/3/2022, em que foram divulgados os resultados de entrevistas com pessoas atuantes nas diversas etapas do processo administrativo fiscal.

[10] Os primeiros passos nessa direção, ainda tímidos, foram dados com a regulamentação da transação pela Lei nº 13.988/20 e, mais recentemente, com o anúncio do Confia, um projeto-piloto de programa de conformidade cooperativa fiscal que será criado pela RFB. Mas ainda há muito a ser feito.

[11] Somadas as esferas judicial e administrativa dos âmbitos federal, estadual e municipal, o contencioso tributário brasileiro totaliza 75% do PIB do país, correspondente a R$ 5,44 trilhões. As informações foram extraídas de relatório publicado em 2020 pelo Núcleo de Tributação do Insper, disponível em https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/01/Contencioso_tributario_relatorio2020_vf10.pdf, acessado em 09/06/2021.

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