Opinião

Como a gratificação de Natal se desvirtuou e se transformou em 13º salário

Autor

  • Zeno Simm

    é advogado mestre e doutor em Direito juiz aposentado do TRT-9 membro da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT) e da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (ABDSS).

18 de março de 2022, 7h02

No passado, muitas empresas, embaladas pelos bons resultados do exercício que se findava, costumavam premiar os contratados com gratificações de fim de ano, em dinheiro [1]. Todavia, enquanto algumas buscavam melhorias do nível de seus empregados, distribuindo um pouco do que lhes sobrava, outras não o faziam, criando uma distinção sensível, não só no setor econômico como no profissional: os empregados das primeiras recebiam, os das outras não, em desigualdade reprovável [2]. Além disso, na própria empresa pagante nem sempre havia um critério único para o cálculo da gratificação, ficando ao livre arbítrio do empregador por ser mera liberalidade.

Em 10/6/1959, o deputado Aarão Steinbruch apresentou ao Legislativo o projeto de lei nº 440/1959 [3] propondo a instituição por lei dessa gratificação para os trabalhadores do setor privado. Na sua justificativa, citou exemplos de Itália e Argentina e afirmou que "a gratificação natalina é uma praxe seguida por quase todas as empresas, não sendo justo que a medida não se generalize, ao ponto de ser obrigatória para todos". Esse projeto converteu-se na Lei nº 4.090, de 13/7/1962, dizendo a sua ementa que era instituída a "Gratificação de Natal para os Trabalhadores", sendo regulamentada pelo Decreto nº 1.881/62 e depois alterada pela Lei nº 4.749/65 e por isso novamente regulamentada pelo Decreto nº 57.155/65 [4], recebendo pequeno acréscimo por meio da Lei nº 9.011/95.

Como salientou Arnaldo Süssekind, a lei generalizou, "tornando compulsória a praxe adotada por algumas empresas de gratificar, ao ensejo das festas natalinas, os respectivos empregados" [5]. Gomes e Gottschalk, apoiando-se na jurisprudência do TST da época, lembram que a gratificação instituída pela Lei nº 4.090/62 "substitui a dada espontaneamente pelo empregador, não se acumulando com esta" [6], perdendo força a controvérsia sobre se saber se aquela gratificação espontânea dada na época do Natal teria ou não natureza salarial diante da antiga redação do § 1º do artigo 457 da CLT ("Integram o salário, não só a importância fixa estipulada, como também as comissões, percentagens e gratificações pagas pelo empregador"). Já para Cesarino Júnior, essa gratificação de Natal criada pela lei "constitui efetivamente salário (…) porque guarda proporcionalidade com o tempo de trabalho prestado durante o ano" como uma "retribuição a serviço prestado" [7], o que não parecia ser a interpretação mais correta diante das razões que levaram o legislador a instituí-la e da circunstância de que o costume é também uma das fontes do Direito. Leite de Carvalho igualmente diz que "a verba não tem mais o caráter de gratificação, desde quando se a impôs através de preceito legal" [8].

Em sua redação original, a lei era muito simples: "Artigo 1º — No mês de dezembro de cada ano, a todo empregado será paga, pelo empregador, uma gratificação salarial, independentemente da remuneração a que fizer jus". Em linhas gerais, previu ainda o seu pagamento proporcional nos casos de extinção dos contratos a prazo, de cessação do vínculo por aposentadoria (artigo 1º, § 3º) e de despedida sem justa causa, aqui com base no salário do mês da rescisão (artigo 3º). O seu primeiro regulamento (Decreto nº 1.881/62) refere-se à verba ora como "gratificação de Natal aos trabalhadores" (ementa), ora como "13º mês de salário" (artigo 1º), ora ainda como "gratificação compulsória de Natal" (artigo 2º), ou simplesmente "gratificação de Natal" (artigos 3º e parágrafo único, 4º, 5º e 7º), determinando que ela fosse paga "no decorrer de dezembro de cada ano" e com base na remuneração desse mês (artigo 2º). Previu que na hipótese de salário variável o pagamento em dezembro deveria ser feito na base de 1/11 dos valores variáveis recebidos até novembro, fazendo-se o ajuste (para mais ou para menos) até o dia 10 de janeiro seguinte, agora apurando-se o valor na proporção de 1/12 do total variável recebido no ano anterior (artigo 3º e parágrafo). A gratificação ficou isenta de quaisquer descontos, inclusive os previdenciários (artigo 7º), mas legislação posterior determinou a incidência da contribuição à previdência social.

A ideia logo se espraiou para o campo previdenciário por meio da Lei nº 4.281, de 8/11/1963, que instituiu um "abono especial [9], em caráter permanente", para aposentados e pensionistas dos institutos de previdência da época. O benefício correspondia a 1/12 do total recebido pelo aposentado ou pensionista durante o ano civil e deveria ser pago até o dia 15 de janeiro do ano seguinte, assim como ao segurado que no ano tivesse recebido auxílio-doença por mais de seis meses e a dependentes que, por igual período, tivessem recebido auxílio-reclusão. Foi esta mesma lei que, para custear tal abono, determinou a incidência da contribuição previdenciária sobre a gratificação instituída pela Lei nº 4.090/62 (que no seu artigo 3º já chamou de "décimo-terceiro salário"). Depois de algumas alterações, atualmente no âmbito previdenciário o benefício está previsto, ainda com o nome de "abono anual", no artigo 40 da Lei nº 8.213/91, cujo parágrafo único se reporta à "Gratificação de Natal dos trabalhadores" para fins de cálculo do benefício.

No marco do trabalho doméstico, a Lei Complementar nº 150, de 1/6/2015, no seu artigo 19 mandou aplicar a esta categoria profissional a Lei nº 4.090/62 e alude e "gratificação de Natal" (artigo 34, § 1º). No âmbito do serviço público a verba foi instituída pelo Decreto-lei nº 2.310, de 22/12/1986, que a denominou "Gratificação de Natal" (artigo 7º), fixando seu valor em 1/12 da remuneração de dezembro por mês de efetivo exercício no respectivo ano e fixando seu pagamento em dezembro, mas com um adiantamento entre janeiro e novembro. A matéria foi incorporada na Lei nº 8.112/90 com o título de "gratificação natalina" (artigo 61, II), determinando seu pagamento até o dia 20 de dezembro mas não falou em adiantamento (artigos 63 a 66), só o fazendo em relação ao aposentado (artigo 194), mas o Decreto nº 1.043/94 estabeleceu que para o pagamento da verba o Tesouro deveria liberar recursos em duas parcelas, junho e dezembro, então essa gratificação passou a ser fracionada e paga nesses dois meses, mas atualmente alguns órgãos pagam o adiantamento já em janeiro. Nesse regime jurídico a verba recebeu as denominações de gratificação de Natal ou gratificação natalina, enquanto na Constituição da República o § 3º do artigo 39 remete ao inciso VIII do artigo 7º que alude a "décimo terceiro salário".

Nos primórdios, a obrigação de pagar, em dezembro, o salário normal e mais a gratificação, gerava para as empresas problemas de caixa com a duplicação da folha de pagamento naquele mês (a maioria delas não se precavia para isso [10]), o que gerou muita pressão para a revogação da medida. O conflito foi resolvido pela promulgação da Lei nº 4.749, de 12/8/1965, que previu a possibilidade de o empregador pagar, entre fevereiro e novembro, um adiantamento da gratificação em valor igual à metade da remuneração do mês anterior, não sendo obrigado a dar este adiantamento a todos os empregados no mesmo mês, quantia esta a ser deduzida do valor definitivo a ser pago até o dia 20 de dezembro. Com isso, foi possível às empresas atenuar os efeitos do pagamento integral em dezembro, diluindo, entre os trabalhadores e dentro do espaço de 10 meses, parte da obrigação anual. Curioso que até hoje são poucas as empresas que usam essa opção, a maioria prefere dar o adiantamento no último dia do prazo, 30 de novembro. Vale notar que essa segunda lei chama a verba de "gratificação salarial" (artigos 1º e 4º).

Diante da nova lei, foi baixado o segundo regulamento (Decreto nº 57.155/65), cuja ementa se refere à lei que instituiu a "gratificação de Natal para os trabalhadores", mas no corpo usa a nova nomenclatura de "gratificação salarial" (artigos 1º e 8º) e cria a contribuição previdenciária sobre esta verba (artigo 8º). A segunda lei e o segundo regulamento, que usam a denominação "gratificação salarial", foram firmados pelo então ministro de Estado Arnaldo Süssekind e talvez seja por isso que ele, com apoio no § 1º do artigo 457 da CLT, doutrinariamente sustenta que "a gratificação natalina compulsória é, inquestionavelmente, de natureza salarial" [11].

A partir dessa nova disciplina jurídica, com a previsão do adiantamento dedutível em dezembro, generalizou-se o uso das equivocadas expressões "primeira e segunda parcela" da gratificação. Mas não se trata de pagamento em duas parcelas, o primeiro valor é mera antecipação, a ser abatido quando do cálculo do quantum efetivamente devido, mero adiantamento e não parcela própria, seja porque a lei assim o denomina, seja pela própria forma de seu cálculo. Dizem o artigo 2º da Lei nº 4.749/65 e o artigo 3º do Decreto nº 57.155/65 que esse adiantamento corresponderá à metade do salário do mês anterior ao pagamento e que seu valor será deduzido da gratificação efetivamente devida em dezembro, podendo o salário ter tido reajustes ao longo do ano e que seu valor em dezembro não seja o mesmo da época do adiantamento. Então, se se tratasse de uma "primeira parcela", haveria a sua automática quitação pelo salário da época no ato do seu pagamento, sem necessidade de abatimento em dezembro, quando seria quitada a dita "segunda parcela" pelo salário desse mês, mas o que ocorre é que se calcula a verba pela remuneração de dezembro e abate-se aquilo que foi adiantado, o que também está claro pela forma de cálculo prevista no decreto regulamentador para o salário variável (ou parte variável do salário, artigos 2º e 3º) e para os períodos proporcionais trabalhados no ano civil (§ 4º do artigo 3º). Então, ainda que o adiantamento corresponda à metade do salário do mês anterior, isso não significa que corresponda a 50% do valor efetivamente devido em dezembro e, assim, não se poderia também falar em duas "metades". Mas, e especialmente, pela previsão da hipótese de extinção contratual antes do pagamento do saldo final em dezembro: neste caso, o valor do adiantamento será deduzido da gratificação total devida "e, se não bastar, com outro crédito de natureza trabalhista que possua o respectivo empregado" (artigo 3º da Lei nº 4.749/65), o mesmo sucedendo em caso de despedida por justa causa [12], conforme artigo 7º do Decreto nº 57.155/65. Por fim, é clara a norma que determina a incidência da contribuição previdenciária por ocasião do pagamento do saldo em dezembro e incidente sobre o total efetivamente devido (artigo 8º do Decreto nº 57.155/65 e Lei nº 4.281/63). Diante desse quadro, parece evidente que tecnicamente não se pode falar em primeira e segunda parcelas ou em primeira e segunda metades da gratificação de Natal [13].

A Constituição de 1988 recepcionou o instituto, assegurando o direito ao "13º salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria" (artigo 7º, VIII, e parágrafo único) e mais adiante diz que "a gratificação natalina dos aposentados e pensionistas terá por base o valor dos proventos do mês de dezembro de cada ano" (artigo 201, § 6º) [14]. Então, é o próprio texto maior que ora se refere a 13º salário, ora a gratificação natalina, o mesmo sucedendo com a legislação infraconstitucional. Talvez por isso Amauri Mascaro Nascimento tenha afirmado: "O 13º salário é uma gratificação compulsória por força de lei, tem natureza salarial e é também denominado gratificação natalina" [15]. O TST, de seu lado, adotou as expressões "gratificação natalina" e "gratificação de Natal" em suas Súmulas nº 14, 45, 46, 50, 148, 242 e 253, enquanto a Súmula nº 157 refere-se genericamente a "gratificação instituída pela Lei nº 4.090" e a SDI1 menciona "décimo terceiro salário" na sua OJ-394 e na OJ-Transitória nº 47 [16]. Augusto César Leite de Carvalho, por seu turno, refere-se ao 13º salário como "a antiga gratificação natalina", concluindo que não é mais gratificação porque imposta por lei e não é mais propriamente natalina porque seu pagamento pode ocorrer em diversos momentos do vínculo ou mesmo na sua extinção [17].

O que se vê na prática é que a maior parte das empresas paga o adiantamento só no dia 30/11 e faz a quitação da verba no dia 20/12, costume tão arraigado que o comércio já conta com o ingresso de bilhões de reais no mercado nessas datas [18]. Por outro lado, os meios de comunicação mostram que muitos trabalhadores utilizam esse benefício para quitar, total ou parcialmente, suas dívidas em atraso ou se previnem para as contas que sempre surgem em janeiro, sendo menor o número daqueles que gastam nas comemorações natalinas e mais reduzido ainda o grupo dos que aplicam o valor em algum investimento no mercado financeiro, dependendo, evidentemente, da condição pessoal de cada um [19].

Conclui-se, pois, que gradativamente foi perdendo espaço aquela ideia original, possivelmente de inspiração cristã, de proporcionar ao empregado um salário extra por ocasião dos festejos natalinos e de gratificá-lo pelo empenho ao longo do ano [20] , para ser hoje apenas um ganho extra utilizado para os mais diversos fins, inclusive para reforçar os baixos salários e amortizar dívidas em atraso. Foi assim que no Direito do Trabalho, onde já se conhecia o dia de 25 horas (CLT, artigo 73, § 1º), o ano passou a ter 13 meses.


[1] Antes, costumavam brindar seus empregados com as conhecidas "cestas de Natal", provavelmente por inspiração cristã.

[2] TEIXEIRA, João Régis Fassbender; SIMM, Zeno. Teoria prática do direito do trabalho. São Paulo: RT, 1981. p. 45.

[3] Portanto, o benefício não foi uma "inovação" de Getúlio Vargas, dito "o pai dos pobres", como já foi afirmado (TAVARES, Henrique. O 13º salário é realmente um bônus? Disponível em: https://henriqueadv.jusbrasil.com.br/artigos/153070550/o-13-salario-e-realmente-um-bonus. Acesso em: 13 dez. 2021) até porque Vargas tinha morrido em 24/8/1954.

[4] O recente Decreto nº 10.854, de 10/11/2021, que consolidou (sem alterar) inúmeras normas regulamentares trabalhistas, fê-lo também com relação a essa gratificação no Capítulo XI, artigos 76 a 82, com isso revogando o Decreto nº 57.155/65.

[5] SÜSSELKIND, Arnaldo. Da remuneração. In: SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. V. I. 19ª ed. atual. por Arnaldo Süssekind e Lima Teixeira. São Paulo: LTr, 2000. p. 329-492. p. 394.

[6] GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do Trabalho.18ª ed. atual. por José Augusto Rodrigues Pinto e Otávio Augusto Reis de Sousa. Rio: Forense, 2007. p. 237.

[7] CESARINO JÚNIOR, Antonio Ferreira. Direito social. São Paulo: LTr; Edusp, 1980. p. 246.

[8] CARVALHO, Augusto César Leite de. Direito individual do trabalho. 2ª ed. Rio: Forense, 2007. p. 209.

[9] Depois denominado "abono anual" pela Consolidação das Leis da Previdência Social-CLPS (Decreto nº 77.077, de 24/1/1976).

[10] No geral, as empresas imprudentemente não faziam uma provisão para fazer frente a essa despesa, limitando-se a reclamar da duplicidade da folha em dezembro. Também os síndicos de condomínios demoraram muitos anos para se prevenirem com uma arrecadação mensal destinada a um fundo com o objetivo específico de quitar a verba oportunamente.

[11] SÜSSELKIND, Arnaldo. Op. cit. p. 395. (grifo do original).

[12] Em sentido contrário, a Sumula nº. 93 do TRT da 4ª. Região: "Dispensa por justa causa. Décimo terceiro salário proporcional. A dispensa por justa causa do empregado não afasta o direito ao pagamento do 13º. Salário proporcional". (BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Súmula nº 93. Disponível em: https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/sumulas. Acesso em: 12 jan. 2022). No âmbito do TST, a Súmula nº 14 trata da hipótese de rescisão por culpa recíproca. (BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: https://www.tst.jus.br/sumulas. Acesso em: 12 jan. 2022).

[13] Augusto César Leite de Carvalho, não obstante, refere-se a "primeira metade" e "segunda metade" do décimo terceiro salário. (CARVALHO, Augusto César Leite de. Direito individual do trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 210.)

[14] Grifou-se.

[15] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 35ª ed. São Paulo: LTr, 2009. p. 362. Grifos do original.

[16] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: https://www.tst.jus.br/sumulas. Acesso em: 12 jan. 2022

[17] CARVALHO, Augusto César Leite de. Op. cit. p. 209-10.

[18] Baseado em dados do Dieese , em fins de 2017 o Jornal do Comércio anunciou que "A economia brasileira receberá uma injeção de R$ 200,5 bilhões até dezembro por conta do pagamento de 13º salário a cerca de 83 milhões de trabalhadores. O valor equivale a aproximadamente 3,2% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e será pago aos trabalhadores do mercado formal". (JORNAL DO COMÉRCIO. Porto Alegre, 8/11/2021. Acesso em: 24 fev. 2022.))

[19] TORO BLOG. O que fazer com o 13º Salário: veja como investir nas melhores opções! Belo Horizonte, 23 nov. 2021. . Acesso em: 24 fev. 2022.

[20] Para isso as convenções/acordos coletivos de trabalho já preveem outras gratificações, como as semestrais, de balanço, participação nos lucros ou resultados etc.

Autores

  • é advogado, membro da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social-ABDSS e da Associação Brasileira dos Magistrados do Trabalho-ABMT e juiz aposentado do TRT-9 (Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região).

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