Opinião

Judiciário, ativismo e autocontenção: análise do perfil decisório do STF

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18 de março de 2022, 19h28

No debate desse tema, far-se-á uma análise comportamental do Judiciário diante de demandas legislativas, abarcando a evolução do direito constitucional e do norteador princípio da separação dos poderes, aliando-se ao que se entende por uma postura ativista ou autocontida e suas razões na centralidade do equilíbrio democrático.

Embora o princípio da separação dos Poderes esteja previsto desde a Constituição de 1824, sendo suprimido apenas na vigência da Carta de 1937, essa que, segundo Bonavides [1], sequer pode ser vislumbrada como propriamente uma Constituição, por ser oriunda de um ato de força e sem caráter democrático, em todas as outras Cartas, a separação dos Poderes já era reconhecida e, em especial, a de 1988 marcou o novo constitucionalismo por fortalecer e garantir a atuação de cada Poder, sobretudo do Judiciário.

Com a evolução do constitucionalismo, obtém-se, igualmente, uma nova compreensão acerca do princípio da separação dos Poderes. Nesse sentido, Abboud [2] faz uma análise dessa nova percepção, através das visões contemporâneas de Waldron e Ackerman, e percebe que, ainda deve-se manter a essência da ideia originária de limitação do poder, mas que não necessariamente essa separação de poderes deve ser vista de maneira mecânica e mais, é necessário observar em que medida essa limitação de poder ocorre, tendo em vista que é preciso medir o grau dessa limitação, para que não configure um desequilíbrio democrático, com a centralização em apenas um deles, como identifica-se atualmente no Judiciário.

Ao Poder Judiciário, recai a competência de guarda da Constituição, como preceitua o artigo 102 [3] do texto Magno, atuando na aplicação do Direito às lides que lhes são postas, solucionando conflitos decorrentes da vida em sociedade, o qual exercerá essa função conforme estrutura a própria Constituição.

Ocorre que, o legislador constituinte optou por dispor sobre um imenso volume de direitos, ou seja, trata-se de uma constituição analítica, o que tem como consequência, nas palavras de Vieira [4], uma "hiper-constitucionalização da vida contemporânea". Isso quer dizer que tudo pode ser direcionado para o crivo judicial no final das contas e, dessa forma, juízes estariam a atuar pelo cumprimento das normas constitucionais. Ainda, segundo Vieira, esse cenário é condutor ao que ele chama de "supremocracia", podendo ser conceituada como a peculiaridade brasileira em que o STF teria autoridade em sobre as demais instâncias e, da mesma maneira, sobre os demais Poderes.

Legislativo x Judiciário
Diante da necessidade de limitação de poder para que se sustente um Estado democrático, o crescente protagonismo judicial é colocado em questão. Decorrente da conjuntura sistêmica brasileira, o judiciário é convocado a atuar em uma medida além da que se previa.

Aliada à volumosa constitucionalização de direitos expressamente previstos, o destaque judicial também é decorrente da retração legislativa configurada pela inércia na regulamentação de direitos, bem como na evolução deles, tendo em vista que a sociedade está em constante desenvolvimento e é dever do Estado acompanhar esse progresso. O que se compreendia dez anos atrás como direito fundamental, hoje já se tem uma compreensão diferente e avançada. O fato de o legislador não acompanhar esse desenvolvimento ou, estrategicamente, optar por não legislar determinado assunto, direciona a discussão para o Judiciário, tendo como consequência o enfraquecimento do sistema democrático.

Ao passo que uma atuação judicial sobre temas que deveriam ser discutidos e resolvidos na arena política pode causar um desequilíbrio democrático, tem-se que o Judiciário é o guardião dos ideais democráticos e direitos estão sendo impedidos de serem exercidos em face da inércia legislativa, o que condiciona a um posicionamento judicial mais arrojado. Para Vieira [5], configura uma "situação paradoxal".

O momento de crise política faz com que haja um forte apelo popular para que o Judiciário solucione definitivamente o conjunto de questões políticas. A figura do juiz, para muitas pessoas, é como a figura de um padre, por exemplo — íntegra, com neutralidade e especialista no assunto, que solucionaria o problema. Enquanto o padre usaria a bíblia sagrada, o juiz teria como seu instrumento a Constituição. Há mais crença de que um juiz teria posicionamentos mais corretos do que confiar essas decisões em legisladores. Entretanto, descuidam as pessoas que entendem como correta essa usurpação de competência, já que isso definha a democracia tanto almejada.

Ainda, analisando a inércia legislativa como estratégia, vislumbra-se que diante de temas controvertidos, ou que na palavra de Hirschl [6] seriam as "hot potatos", o legislativo prefere que a responsabilidade de posicionamento seja transferida à esfera judicial, com intuito de evitar um comprometimento com seu eleitorado e assumir uma postura isenta no seu papel de representatividade.

Além disso, comumente a oposição busca o Judiciário para reclamar questões políticas e não necessariamente questões que envolva a constitucionalidade da matéria, o que para Alec Stone Sweet [7], seria uma estratégia benéfica a essas oposições por não ter custos e porque a oposição sempre perde. Dessa forma, o autor critica essa postura de parlamentares, por entender que esse não é o papel de um tribunal e transferir essas questões políticas para o judiciário, implica numa redução de poder do parlamento e do governo. Conforme dispõe Sweet, "the court is not a parliamentary chamber, but a judge of the constitucional review stage recasts the strategic environment in which legislators find themselves".

Dessa maneira, percebe-se que a ascensão judicial sobre questões que envolve política é decorrência da conjuntura constitucional, juntamente com a colaboração da retração do Poder Legislativo.

O perfil decisório do STF 
Diante desse ambiente de fortalecimento judicial, constrói-se o que se batiza por ativismo judicial. Oriundo do direito americano, o qual é regido pelo common law, no Brasil caminha para peculiaridades próprias e, conforme afirma Campos [8], pode ter um conceito multidimensional, o qual, em linhas gerais, conceitua-se pela escolha comportamental adotada pelo judiciário para de "modo proativo e expansivo interpretar a Constituição, dela extraindo regras não expressamente criadas pelo constituinte ou pelo legislador".

O ativismo judicial pode ser visto de duas faces, uma positiva e outra negativa. Vê-se positivamente quando se relembra que antes da Constituição de 1988 a Corte não possuía a devida autonomia e sofria repressão de outros poderes. De outro lado, vê-se negativamente quando se observa a instituição indo além de suas funções, através das brechas da legislação para atuar em uma área ou em uma intensidade indevida.

A atitude ativista é centro de diversas críticas, tendo em vista que quando o judiciário opta por se posicionar para além de suas funções precípuas, estaria invadindo a esfera de atuação de outros Poderes, como o Legislativo, a exemplo da interpretação dada pelo STF em 2019 acerca da criminalização da homofobia, ou seja, o STF atuou como legislador. Assim, questiona-se: cabe ao Judiciário a última palavra?

Mendes [9] trabalha a temática em um de seus estudos, questionando de quem seria a última palavra e expõe argumentos, em igual medida, na defesa tanto dos Parlamentos como das Cortes, demostrando os diversos pontos de vista. Todavia, conclui que a titularidade dessa última palavra não deve ser atribuída a um Poder. Em um ambiente democrático, isso não pode ser previamente definido. A definição do que prevalecerá depende da apreciação de cada contexto, à guisa do equilíbrio democrático e da separação dos Poderes. Sendo assim, Mendes [10] reforça que:

"The concept of constitutional democracy, per se, does not provide a solution to the anxiety to choose between parliaments and courts. I dare say this is a distractive binary trap. The challenge of constitutional theory is to keep the comparative advantages of both institutions, while trying to minimize their inherent shortcomings."

Embora tenha-se a impressão de que tudo recai para o Judiciário e ele quem dá a palavra final, isso não é a realidade. Além de não ser uma postura democrática, é relevante mencionar que o Legislativo não é vítima de um Judiciário usurpador de atribuições. Como já visto, o legislador contribui significativamente a essa transferência de responsabilidade e, não só isso, existem mecanismos de reversão da decisão judicial. Cita-se, então, o efeito backlash como um desses mecanismos, que segundo Marmelstein [11] consiste na "reação adversa não desejada à atuação judicial. Para ser mais preciso, um contra-ataque político ao resultado de uma deliberação judicial". Pode-se mencionar como exemplo o caso da vaquejada, em que o STF interpretou no julgamento da ADI 4.983 de a prática como crueldade aos animais e posteriormente o Congresso reverteu esse entendimento através de uma emenda à constituição.

Trata-se, então de situação que demonstra que, quando uma decisão judicial não agrada o Legislativo, esse possui mecanismos e age para adequar a conjuntura a seus interesses. É algo que o próprio STF já notou, de igual modo, e observa-se que, por vezes, a postura ativista dá lugar a uma postura de autocontenção.

A autocontenção é identificada no recente caso levado à Corte sobre o fundo eleitoral de 2022. A constitucionalidade da Lei de Diretrizes Orçamentárias, que prevê o valor de R$ 4,9 bilhões fora questionada no julgamento da ADI 7.058, em face do elevado valor previsto. O entendimento que prevaleceu fora pela constitucionalidade da previsão, que embora seja de expressivo valor, trata-se de uma questão interna do Poder Legislativo.

Mais uma situação de autocontenção também envolve o próprio caso da vaqueja. Após a prática ser considerada constitucional através da atuação congressual, o STF recebeu novas demandas questionando a constitucionalidade do dispositivo, entretanto optou por não coloca-lo em discussão, até o momento.

Nesse sentido, Ribeiro e Arguelhes [12] ressaltam que:

"Ainda que possuam suas garantias constitucionais, por vezes, o stf pode optar, estrategicamente, evitar conflitos direto e evitar uma reação política que pode ser desde o descumprimento da decisão judicial, como a produção normativa que supere a decisão do tribunal poderes, que o Presidente ou membros do Congresso Nacional venham a público criticar o STF por ter declarado inconstitucional uma emenda 'retaliadora'. Mais ainda, no limite, a simples proposição de uma emenda desse tipo pode vir a ter certos custos políticos para o tribunal. A palavra final jurídica não necessariamente exclui a continuação do conflito na área política."

Os tensionamentos entre os Poderes é prejudicial a democracia e uma atuação judicial demasiada impulsiona essa tensão. Um ativismo demasiado ou uma autocontenção demasiada prejudica os ideais democráticos. De mesmo modo, cabe ao Legislativo um maior empenho em sua atuação de regulamentação de direitos, a fim de que se evite o excesso de acúmulo de funções no Judiciário e a representatividade democrática seja efetivada.

Sendo assim, na busca pelo equilíbrio democrático se faz essencial uma atuação conjunta entre os Poderes, no sentido de mútua colaboração pelo ideal comum, que é a perquirição pelos ideais democráticos.

Em face desse panorama que envolve o perfil decisório do STF com relação a demandas com aspectos do Legislativo, é possível notar um agir estratégico de ambos os Poderes.

Portanto, percebe-se que o perfil do Judiciário e do Legislativo pode ser moldado a depender do caso concreto, de mesmo modo não existe o monopólio da última palavra ou a prevalência de um poder sobre o outro. Sendo assim, para uma solidez democrática, a atuação dos Poderes precisa ser apoiada no diálogo institucional pela busca dos interesses democráticos.  

Referências bibliográficas
ABBOUD, Georges. Direito Constitucional pós-moderno.  São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro.
 5. ed. Ver., atual. e ampl.  São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 32. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2017.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
HIRSCHL, Ran. Rumo à Juristocracia – As origens e consequências do novo constitucionalismo; Tradução Amauri Feres Saad
 1ª ed.  Londrina, PR. Editora E.D.A. – Educação, Direito e Alta Cultura, 2020.
LUNARDI, Fabrício Castagna. O STF na política e a política no STF. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

MENDES, Conrado Hübner. Is all about the last word? Deliberative separation of Powers 1. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1911822. Acesso em: 8 de mar. de 2022.
RIBEIRO, Leandro Molhano; ARGUELHES, Diego Werneck. Preferências, Estratégias e Motivações: Pressupostos institucionais de teorias sobre comportamento judicial e sua transposição para o caso brasileiro. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350944518006. Acesso em 7 de mar. de 2022.
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro).
 Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
SWEET, Alec Stone. Governing with Judges: Constitucional Politics in Europe. Oxford University Press, 2000.
VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/6vXvWwkg7XG9njd6XmBzYzQ/?lang=pt&format=pdf. Acesso em 11 de mar. de 2022.


[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 32. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 567.

[2] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro.  5. ed. Ver., atual. e ampl. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1470 – 1479.

[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

[4] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/6vXvWwkg7XG9njd6XmBzYzQ/?lang=pt&format=pdf. Acesso em 11 de mar. de 2022.

[5] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/6vXvWwkg7XG9njd6XmBzYzQ/?lang=pt&format=pdf. Acesso em 11 de mar. de 2022.

[6] HIRSCHL, Ran. Rumo à Juristocracia  As origens e consequências do novo constitucionalismo; Tradução Amauri Feres Saad  1ª ed.  Londrina, PR. Editora E.D.A. – Educação, Direito e Alta Cultura, 2020.

[7] SWEET, Alec Stone. Governing with Judges: Constitucional Politics in Europe. Oxford University Press, 2000. p. 2574.

[8] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 20.

[9] MENDES, Conrado Hübner. Is all about the last word? Deliberative separation of Powers 1. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1911822. Acesso em: 8 de mar. de 2022.

[10] MENDES, Conrado Hübner. Is all about the last word? Deliberative separation of Powers 1. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1911822. Acesso em: 8 de mar. de 2022. p. 42.

[11] MARMELSTEIN, George. Efeito Backlash da Jurisdição Constitucional: reações políticas ao ativismo judicial. 2016. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/caju/Efeito.Backlash.Jurisdicao.Constitucional_1.pdf. Acesso em: 18 dez. 2021. p. 3.

[12] RIBEIRO, Leandro Molhano; ARGUELHES, Diego Werneck. Preferências, Estratégias e Motivações: Pressupostos institucionais de teorias sobre comportamento judicial e sua transposição para o caso brasileiro. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350944518006. Acesso em 7 de mar. de 2022. p. 110 – 111.

Autores

  • é mestranda em Direito Público pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e pós-graduada em Direito Constitucional e em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio.

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