Controvérsias Jurídicas

Entendendo o conflito entre Rússia e Ucrânia

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

17 de março de 2022, 8h00

Há três semanas, os primeiros tanques russos cruzaram a fronteira da Bielorrússia em direção à Ucrânia. De lá para cá, o que se viu foi a tomada gradual dos territórios ucranianos pelo exército russo e o bombardeio de suas principais cidades. Como resultado da guerra, mais de dois milhões de refugiados já cruzaram a fronteira com a Polônia e centenas de civis tiveram suas vidas interrompidas. Como retaliação, o Conselho de Segurança da ONU reprovou as ações da Rússia e a Assembleia-Geral emitiu carta de repúdio às ações lideradas por Putin. Visando a evitar ao máximo um conflito armado com a maior potência nuclear do mundo, os países da Europa Ocidental e os Estados Unidos implementaram uma série de sanções econômicas à Rússia, porém, até o momento, nada demoveu o ímpeto expansionista do Kremlin.

Por não ser um país tão popular entre os brasileiros, poucos conhecem a importância geopolítica da Ucrânia no cenário internacional. Com localização geográfica privilegiada, encontra-se no meio do caminho entre a Europa e a Ásia, na grande porção de terra chamada de Eurásia, especificamente no Leste Europeu.

O país é todo cortado pelo Rio Dnieper, dividindo-o entre Ucrânia do Oeste (ocidental) e Ucrânia do Leste (oriental). É banhado ao sul pelo Mar Negro, importante acesso de águas quentes para a Rússia, e possui solo de ótima qualidade, constituindo-se como uma potência agrícola na região e um dos maiores produtores e exportadores de trigo, milho e cevada.

É um Estado federativo, com 24 províncias, entre as quais Kiev e Sevastopol, como regiões metropolitanas autônomas. A Crimeia, dotada de regime jurídico-administrativo diferenciado, possui status de república autônoma dentro da Ucrânia. Inclusive, a concessão de regime jurídico-administrativo autônomo à Crimeia é um dos pontos fulcrais do embate militar assistido, já que as províncias de Donetsk e Luhansk (formadoras da macrorregião de Donbass), fortemente ligadas à Rússia, também reivindicam a mesma autonomia.

Kiev possui regime administrativo diferenciado por ser a sede do país. A Crimeia, que antigamente pertencia à URSS, foi cedida administrativamente para a Ucrânia na década de 50 com maior autonomia. A origem étnica da Crimeia também é um ponto fundamental de diferenciação com o resto da Ucrânia, tendo em vista sua população muçulmana expressiva (exemplo: tártaros).

Sevastopol, geograficamente localizada no extremo sul do país, tem importância estratégica para a geopolítica do Leste Europeu por ser banhada pelo Mar Negro. Ali, historicamente, há uma disputa territorial e um regime jurídico-administrativo híbrido, pois, embora seja formalmente território russo, é administrado pela Ucrânia. Outro fator preponderante para a disputa do território é a sua proximidade com o Mar de Azov ao norte e com os estreitos de Bósforo e Dardanelos ao sul, dando acesso ao Mar do Mediterrâneo.

O sistema de governo é semipresidencialista. Em 2019, Volodimir Zelensky foi democraticamente eleito presidente, adotando uma postura pró-ocidente e afrontando os interesses russos na região. Seu plano de governo consistia em uma maior integração econômica com a União Europeia e maior aproximação militar com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Criada em 1949, a Otan é um grande bloco político que tem como principal função dar apoio militar aos países da Europa Ocidental por meio da cláusula do pacto de mútua agressão, no qual um ataque militar a quaisquer dos países membros representa um ataque a todos, sendo obrigatória a mobilização militar do bloco para a defesa da soberania da nação atacada.

Demograficamente, 80% da população é de etnia ucraniana e 18% de russos. A expressiva parcela de russos se deveu a influência do antigo Império Russo e da URSS. A grande parcela da população com ascendência russa se concentra na região de Donbass, nos limites fronteiriços com a Rússia, fomentando o argumento de que em boa parte da Ucrânia há apenas um só povo, o russo.

Politicamente, a democracia ucraniana é dividida em dois grandes grupos de poder. De um lado, um partido ligado aos interesses da Europa e, de outro, um partido ligado aos interesses da Rússia. De forma geral, revezam-se no poder, concentrando suas votações em suas respectivas áreas de influência: pró-ocidente a oeste e pró-Rússia a leste.

Para que possa se compreender as raízes do conflito entre Ucrânia e Rússia, é preciso retornar ao momento da Guerra Fria (1947-1989), marcada pela bipolaridade entre EUA, defensor do modelo econômico capitalista e político democrático, e a URSS, defensora do modelo econômico socialista e político autocrático ou unipartidário. A nomenclatura do conflito se fundamentou no embate ideológico entre as duas potências, cada qual impondo seu modelo político-econômico em regiões estratégicas do globo. Outra característica preponderante do período foi a corrida armamentista, consistente na disputa de maior poderio militar e desenvolvimento de ogivas nucleares mais potentes do que as utilizadas em Hiroshima e Nagasaki. A busca da hegemonia mundial também se dava no campo das artes, do entretenimento e da literatura, chegando em seu ponto máximo durante a corrida espacial, na qual EUA e URSS criaram agências governamentais com o escopo de desenvolver tecnologias de domínio do espaço sideral próximo, lançamentos de satélites artificiais e a conquista da Lua.

A bipolaridade das potências na Guerra Fria somente encontraria seu fim com a dissolução da URSS, em 1991. Antigos países que antes formavam o bloco soviético (Ucrânia, Bielorrússia, Estônia, Lituânia, Letônia, dentre outros) passaram a ser independentes e a Rússia voltou a figurar como nação separada no cenário geopolítico. A década de 90 pode ser considerada o período de maior aproximação entre Estados Unidos e Rússia, principalmente pela implementação de políticas conjuntas de privatização de grandes empresas estatais russas e de acordos bilaterais assinados por Bill Clinton e Boris Yeltsin. Além da aproximação russo-americana, o período também representou a expansão da influência da Otan pelo Leste Europeu. Letônia, Estônia e Lituânia, antigos membros da URSS, passaram a integrar o bloco, em meados dos anos 2000, representando significativa perda política e militar da Rússia na região.

Entre 2006 e 2008, com a formação do Bric, bloco econômico composto por Brasil, Rússia, Índia e China, o Kremlin, agora liderado por Vladimir Putin, líder nacionalista, ex-integrante do serviço secreto soviético (KGB), ganhou força e passou a implementar uma política de reconquista dos territórios de influência da antiga URSS.

O fato de um governo ucraniano pró-Ocidente simplesmente aventar a possibilidade de integrar a Otan, configura uma forte ameaça aos planos de reconquista de Putin. A entrada da Ucrânia no bloco seria um marco histórico no combate pelas zonas de influência entre EUA e Rússia, tendo em vista que a proximidade entre Kiev e Moscou colocaria, pela primeira vez, Otan e Rússia separadas apenas pela fronteira. Nesse sentido, o regime russo passou a enxergar o território ucraniano como o último obstáculo para a dominação total da Otan na região, sendo que sua perda poderia acarretar em vulnerabilidades econômicas e militares inimagináveis, colocando fim ao plano nacionalista de retomada das antigas áreas de influência das repúblicas soviéticas.

A primeira investida militar russa sobre o território ucraniano se deu na batalha da Crimeia (2013-2014), porção de terra estratégica para o domínio dos mares de Azov, Negro e Mediterrâneo, que foi anexada pela Rússia. Ao mesmo tempo, o regime de Putin passou a dar suporte bélico a grupos separatistas da região de Donbass, que embora não fossem anexados ao território russo, seriam reconhecidos como territórios independentes, facilmente manipulados por Moscou.

As razões para o confronto guardam relação com a influência exercida pela Rússia durante o período soviético e a aproximação paulatina das antigas repúblicas socialistas com o bloco econômico europeu e militar americano. Tal fragmentação passou a representar ameaça inaceitável aos olhos do regime nacionalista de Putin, que tenta reanexar os territórios perdidos e retomar a influência exercida pela Rússia na região durante o século 20.

Além da importância política, a Ucrânia é peça fundamental para o abastecimento de grãos a toda Europa. A aproximação de Kiev com um mercado comum europeu representaria o rompimento com um elo de dependência econômica da Europa com a Rússia. Com a entrada na União Europeia, além da adesão de unidade monetária e passaporte comum, os grãos ucranianos passariam a ser comercializados livremente pelo continente, sem a incidência de tarifas alfandegárias, possibilitando maior competitividade do produto no mercado. Assim, a segurança alimentar, uma das moedas de barganha política utilizada pela Rússia, perderia sentido.

Os objetivos russos na Ucrânia, de modo geral, são a queda do regime de Zelensky e a colocação de um governo marionete, com o impedimento formal do país ingressar na Otan. Além disso, pleiteia o reconhecimento da independência da região de Donbass e o fortalecimento da influência russa ao norte, por meio da fronteira com a Bielorrússia.

Sem dúvida, trata-se de um dos maiores conflitos bélicos na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A situação é agravada pela nítida ausência de grandes líderes no Ocidente capazes de impor um efetivo bloqueio aos planos expansionistas de Putin. A economia do Ocidente, fortemente atingida pela pandemia do novo coronavírus, vê altos índices inflacionários e taxas de desemprego crescentes, podendo um conflito armado fomentar a maior crise econômica desde o crack da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929.

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