Opinião

O novo marco legal do câmbio e a teoria de path dependence

Autor

  • Marcelo Godke

    é sócio do Godke Advogados especialista em Direito Empresarial Mercado de Capitais (securitização derivativos IPOs) Integridade Corporativa M&A Societário Project Finance Contratos Domésticos e Internacionais e em Direito dos Contratos pelo Ceu Law School professor do Insper e da Faap mestre em Direito pela Columbia University School of Law e doutorando pela Universiteit Tilburg (Holanda) e em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

16 de março de 2022, 11h09

Desenvolveu-se, há algumas décadas, no campo das ciências econômicas, uma teoria chamada de path dependence, segundo a qual decisões tomadas hoje levam em consideração eventos passados, muitas vezes de forma desarrazoada. Atribui-se tal teoria ao economista Paul A. David. Hoje, ela é aplicada além dos limites da economia e pode ser utilizada para questões sociológicas, jurídicas e políticas. Assim, explica um pouco do que se viu na edição da Lei nº 14.286, de 29/12/2021, que traz o novo marco legal das operações de câmbio.

As origens do atual regime legal-regulatório do mercado de câmbio brasileiro remontam à década de 1920. A Lei nº 4.182, de 13/11/1920, e o Decreto nº 23.258, de 19/10/1933, ambos ainda em vigor, trazem normas voltadas para as operações e o mercado de câmbio. Com os constantes problemas macroeconômicos enfrentados no Brasil, a visão que prevaleceu é a de que os investimentos deveriam ser direcionados para o território nacional e não para fora dele. Por isso, foram criadas barreiras legais e regulatórias para dificultar e restringir investimentos brasileiros no exterior. Tal pensamento sempre influenciou o conteúdo das normas cambiais editadas no Brasil.

Em virtude do amadurecimento da economia brasileira, originado do maior controle inflacionário observado desde o Plano Real, o regime legal-regulatório cambial brasileiro vem sendo modernizado de maneira a torná-lo mais flexível e alinhado com o que se vê em países desenvolvidos. Tal modernização vem sendo bastante paulatina e, recentemente, deu mais um importante passo com a edição da Lei nº 14.286/21. Mesmo assim, observa-se clara influência da "path dependence" no novo texto legal.

É importante ressaltar, de início, que a Lei nº 14.286/21 traz algumas importantes mudanças a serem festejadas. O novo texto legal aumenta a flexibilidade de contratação de operações de câmbio, que poderão ser realizadas livremente e sem limitação de valor, observados a legislação e a regulamentação pertinentes. Já havia sido editada norma equivalente na regulamentação infralegal, mas, com a previsão em lei de tal possibilidade, aumenta-se a segurança jurídica.

Outra alteração refere-se à possível redução da burocracia. Há exigência legal de se registrar, perante autoridades monetárias brasileiras, o investimento estrangeiro feito no Brasil. O regime atual, em vigor desde a edição da Lei nº 4.131, de 3/9/1962, estipula que tal registro seja feito perante o Banco Central nos casos de investimento estrangeiro direto ou em portfólio, ou, ainda, em casos de empréstimos internacionais voltados para residentes em território nacional, para que possam ser feitas legalmente remessas ao exterior. A falta de registro, inclusive, legitimava a imposição de multas. A expectativa criada pelo texto da Lei nº 14.286/21 é que seja abandonado o sistema de registro hoje existente e seja inaugurado outro, menos burocrático, em que bastará o fornecimento de informações ao Banco Central.

Além disso, a Lei nº 14.286/21 põe fim aos poderes do Conselho Monetário Nacional para determinar restrições às importações e remessas de rendimento dos capitais estrangeiros sempre que ocorrer grave desequilíbrio de pagamento ou sérias razões para prever a iminência de tal situação.

Outro ponto positivo da Lei é o poder dado ao Banco Central para autorizar contas mantidas em moeda estrangeira em território nacional, que, até hoje, somente são permitidas em casos específicos. Tal medida é algo demandada há muitos anos por agentes econômicos, como maneira de mitigar o risco das atividades das empresas que necessitam comprar e vender moeda estrangeira com regularidade.

Note-se, que há aspectos da nova Lei que ainda se apegam ao passado. É aí que reside o path dependence no novo regime cambial. A preocupação do legislador em manter controle rígido sobre o câmbio e as operações internacionais sempre existiu, para evitar a chamada “evasão de divisas”. Como resultado, caso uma pessoa, física ou jurídica, tenha crédito a receber e dívida em relação a uma outra localizada no exterior, as obrigações devem ser cumpridas separadamente, com duas operações segregadas de câmbio, exceto se houver regra específica. É a conhecida proibição à chamada "compensação privada de créditos", que aumenta os custos de cumprimento de obrigações internacionais.

Em um mundo moderno, que demanda rapidez nas remessas de recursos e redução dos custos, esse tipo de restrição deixou de fazer sentido. Tal ideia se reforça com o fortalecimento do mercado de criptoativos, que permite a transferência internacional de recursos de maneira rápida, segura, eficiente e barata.

Ao invés de colocar fim por completo à proibição da compensação privada de créditos, o legislador fez outra escolha. A Lei nº 14.286/21 estipula que somente as operações de compensação privada de créditos ou de valores entre residentes e não residentes previamente autorizadas pelo Banco Central poderão ser cursadas. Não está claro o motivo de permanecer qualquer restrição, mas ela persiste, cabendo ao BC o poder para mitigar tal problema.

Chegou a hora de reformular verdadeiramente o regime cambial brasileiro e colocá-lo em patamar de real modernidade, mitigando o path dependence de maneira a reduzir os custos de transação, oferecendo segurança jurídica aos agentes de mercado. Isso se faz necessário com urgência para permitir a constante modernização do sistema financeiro nacional.

Autores

  • é sócio de Godke Advogados, especialista em Direito Empresarial, professor do Insper, do CEU Law School, da Faculdade Belavista e palestrante da FGV e do Ibmec.

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