Tribuna da Defensoria

Garantismo às avessas? A resistência da magistratura contra a imparcialidade

Autor

15 de março de 2022, 8h00

Imagine a seguinte cena: uma sala de audiências criminais realizando o ato por videoconferência. Após a oitiva das testemunhas de acusação, o Ministério Público requer ao juízo que seja designada audiência em continuação para a  oitiva de nova testemunha, que, por erro da acusação, não foi arrolada na denúncia. A defesa apresenta irresignação em relação ao pedido pois não se trata de pessoa cuja existência não se sabia e que surgiu apenas quando iniciada a instrução. Alega a defesa que o MP poderia ter arrolado a testemunha na denúncia, contudo, por erro ou omissão, não o fez. A defesa ainda rememora ao juízo que, em todas as respostas à acusação, pugna pelo arrolamento a posteriori de testemunhas que surgirem ao longo da instrução, sendo que em todos os casos o juízo indefere. Após a manifestação da defesa, o juízo defere o arrolamento a destempo da testemunha, justificando que a acusação tem direito de produzir a prova, inclusive com base em convenções e tratados internacionais.

O argumento de que o MP tem direito de produzir a prova, com base em convenções internacionais, por si só, não é suficiente para justificar um tratamento diametralmente oposto àquele dado à defesa. Com fundamento tanto na Convenção Americana de Direitos Humanos[1] como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,[2] diariamente a defesa criminal apresenta pedido similar, de apresentação de testemunhas após a resposta à acusação, mas, neste caso, a resposta é sempre o indeferimento.

O caso narrado, que ocorre diariamente nas varas criminais por todo o Brasil, demonstra uma situação que denomino de garantismo às avessas: especialmente no primeiro grau, os juízes deixam de ocupar a posição de neutralidade determinada pela Constituição e passam a colaborar, ainda que forma inconsciente, com o Ministério Público, violando vários princípios processuais, a exemplo da paridade de armas e do sistema acusatório.

No caso utilizado para apresentar a controvérsia, o juízo ainda violou aquilo que Dworkin chama de busca pela integridade do Direito. Vale dizer, não pode o juiz ter entendimentos diametralmente opostos sobre a mesma controvérsia fática, os modificando apenas a depender da parte que apresenta o pedido (se realizado ela acusação, defere; se pela defesa, indefere).

Mais do que um caso isolado, o que se percebe é um fenômeno no qual o juízo parece muito mais inclinado a decidir (os mesmos pedidos) favoravelmente à acusação, comprometendo o dever de neutralidade e imparcialidade exigido da autoridade judicial.

Sobre o ponto, importante mencionar que o garantismo de Ferrajoli surge com uma premissa de que a aplicação das normas de Direito Penal e de Processo Penal devem ser lidas a partir dos direitos e garantias asseguradas na Constituição Federal. Partindo-se desse raciocínio, tem-se que o Direito Penal e o Processo Penal servem para reduzir o poder de punir (Direito Penal) e a forma de punir (Processo Penal) do Estado, limitando-se a violência estatal e aumentando a proteção da liberdade.

Dentre os axiomas (valores que norteiam o garantismo) está o Nulla judicium sine accuston, que busca materializar o princípio acusatório. Isso significa que  acusação e autoridade julgadora devem ocupar posições distintas, cada um com atribuições especificadas e que não se comunicam. Em razão disso, não cabe ao juiz reparar os erros processuais do Ministério Público (como também não o faz em relação à Defesa).

No Brasil, surge uma doutrina, até contestada pelo próprio Ferrajoli, no sentido de que o garantismo seria monocular e hiperbólico. Monocular por se preocupar apenas com os direitos do réu (esquecendo-se da proteção dos demais componentes da relação jurídica) e hiperbólico por ser em excesso, violando o princípio da proporcionalidade. Nas palavras do autor do garantismo: "o sinal de uma grave regressão civil e cultural. As garantias penais e processuais não são apenas garantias de liberdade e verdade contra a arbitrariedade". "São a principal fonte de legitimação da jurisdição e também, com um aparente paradoxo, o principal fator de eficácia da intervenção judicial. Na verdade, são as garantias que geram a maior assimetria entre a incivilidade do crime e a civilização do direito: uma assimetria que, a meu ver, representa o principal fator de deslegitimação moral e isolamento social e político do desvio e, portanto, de eficácia primária do direito penal. É por causa do desaparecimento dessa assimetria que os sistemas punitivos degeneram em sistemas de máximo direito penal, ao mesmo tempo maximamente aflitivo e maximamente ineficiente[3]."

No mesmo sentido é a lição de Aury Lopes Junior, para quem o sistema penal serve ao réu, na medida em que limita o âmbito de atuação do Estado-Polícia, Estado-acusação e Estado-juiz[4].

Em um sentido diametralmente oposto àquele defendido pela doutrina do garantismo monocular hiperbólico, a práxis forense indica a existência de um estado de coisas em que a palavra da acusação e da defesa tem pesos diferentes. A magistratura brasileira mostra , com frequência, que não ocupa um papel de neutralidade e  está inclinada a deferir o pleito acusatório simplesmente por ter sido formulado pelo órgão de acusação.

O garantismo, que surge em Ferrajoli como uma releitura do processo penal e do direito penal com vistas a proteger o indivíduo acusado da prática de um crime, no Brasil, recebe contornos diversos.

É o que chamo de garantismo às avessas, prova da dificuldade das autoridades judiciais em adotar uma postura de neutralidade jurídica, indicando que o sistema acusatório permanece hígido apenas nos tratados e convenções internacionais, na Constituição Federal e no Código de Processo Penal e que só deve ser respeitado, na prática, se for de interesse da acusação.


[1] art. 8,2, "f" da CADH – f. direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

[2] art.14.3 "e" PIDCP – e) De interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusão e de obter o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação;

[3] "Populismo judicial é a mais perversa forma de populismo", diz Ferrajoli. In: https://www.conjur.com.br/2021-abr-24/entrevista-luigi-ferrajoli-professor-teorico-garantismo-penal. Disponível em 14 de abril de 2021. Acesso em: 14 de março de 2022>

[4] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!