Opinião

Macrolitigância fiscal: uma perspectiva a partir da atuação da Fazenda em juízo

Autor

13 de março de 2022, 17h45

Noutras oportunidades, vimos abordando como a macrolitigância fiscal representa um mal que atinge (sub-) sistemas que interagem direta ou indiretamente entre si [1]. Dentre os recortes inquiridos, a atuação da Fazenda Pública em Juízo mostrou-se um campo bastante fértil, despertando nossa atenção para ser tematizado novamente [2], mas iluminando-o sob outra perspectiva.

Pois bem.

Embora muitos confundam, os órgãos da advocacia pública representam o ente político, e não o respectivo governo, pois são conceitos que não se misturam. Desta feita, a advocacia pública não se presta para atuar em favor de um governo, isto é, da cúpula diretiva responsável pelos atos de política, e sim em prol do ente. Afinal de contas, governos passam, são transitórios, alternam-se, enquanto as instituições que compõem o ente são permanentes. No contexto da União, nossa conclusão pode ser extraída da interpretação dos seguintes dispositivos constitucionais: 1) §3ª do artigo 103  o Advogado-Geral da União possui a função de defender o ato ou texto impugnado nas ações diretas de inconstitucionalidade, sobressaindo seu papel de fazer prevalecer o resultado do devido processo legislativo; e 2) Advocacia-Geral da União representa a União e presta assessoramento jurídico ao Poder Executivo, subentendendo-se seu papel de assegurar que o ente desempenhe suas funções segundo a estrita legalidade.

Fixada a primeira baliza, imperioso derrubar outro dogma, a da suposta dicotomia entre o interesse público primário e secundário. Pós Constituição de 1988, só há se falar em interesse público se este estiver em consonância com os direitos e garantias constitucionais, o que torna inadequado postular uma conexão necessária entre erário e interesse público. Por vezes, o interesse público está despido de valor pecuniário imediato; noutras, são figuras indissociáveis. A verdade é que a análise do que seja interesse público é interpretativa [3], sempre dependente de se aferir qual será a resposta correta para o caso concreto, segundo a Constituição.

Assim sendo, uma adequada compreensão do tema da Fazenda Pública em juízo passa pela superação da visão de um modelo de estado de viés liberal-individualista, substituindo-o por um sistema democrático de direito. Somente dessa maneira será possível afastar a ideia de uma suposta contraposição de interesses entre a esfera pública e a privada. Com efeito, defendemos que a administração pública fiscal não deve ser entendida como mero aparato burocrático, mas como instituição imbuída na efetivação dos direitos fundamentais.

Unindo os pressupostos acima, vimos insistindo que as Procuradorias devem, o quanto antes, reestruturar a forma de fazer negócios, haja vista que a "clientela" não mais é o governo e nem a figura abstrata do estado, e sim, em última instância, o povo. Dito de outro modo, o que as Procuradorias tutelam e/ou visam a promover são os direitos fundamentais, e não o tesouro real da coroa. Repetimos, a defesa irrestrita do "erário em si" só faz sentido se, antes de tudo, estiver em conformidade com uma adequada hermenêutica constitucional, ou seja, intepretações tacanhas, rasteiras ou indigentes devem ser descartadas.

Podemos comprovar nossas ilações a partir de diversos ângulos, mas, atendendo-se aos limites concedidos, podemos testá-la sob o próprio ponto de vista econômico-financeiro, tão caro para os governos. 

Pelo princípio da unidade de caixa, todas as receitas do ente são mantidas na conta única do tesouro  no caso da União, são depositadas no Banco Central (artigo 164, §3º, da CR) , como forma de controle da utilização dos recursos. Conquanto agrupados em uma conta única, os recursos se mantém individuais, geridos pelas respectivas unidades orçamentárias. Em razão disso, mantém-se incólume a autonomia orçamentária tal como a do Poder Judiciário. Para o nosso propósito, o que é preciso ter em mente é que os recursos de todos os órgãos, inclusive do Poder Judiciário, advêm da conta única do tesouro e que a sua proposta orçamentária deve obediência à Lei de Diretrizes Orçamentária  LDO [4].

Dando coerência à visão institucional da advocacia pública enfatizada no introito, entendemos que ela deve zelar também pelos recursos despendidos pelo Poder Judiciário. Dizemos isso no seguinte sentido, o aumento desenfreado da litigiosidade em massa, ao demandar mais gastos daquele poder, afeta, diretamente, as contas públicas como um todo. Na realidade, cria-se um círculo vicioso, pois quanto mais o Judiciário gastar com despesas administrativas e de pessoal para gerir os processos judiciais mais o Executivo também deverá dispender para atender os mesmos processos. Em resumo, a autonomia orçamentária se limita à dotação própria das verbas e a sua gestão, ou seja, o Poder Judiciário não possui autonomia financeira no sentido de criar suas próprias fontes de custeio, atributo este apenas dos entes federados, de modo que, ao menos indiretamente, a advocacia pública deve se preocupar com a aplicação racional de todos os recursos entregues pelo tesouro.

Nossas provocações transcendem à visão de um tradicional grande escritório de advocacia, porquanto, como frisado, a advocacia pública representa os interesses constitucionalmente previstos. Aliás, por se tratar de órgão com expressa previsão constitucional, sendo indispensável à administração da Justiça (artigo 133), acresce sua responsabilidade política na concretização das grandes diretrizes traçadas na Constituição. Por isso, mais do que se preocupar com demandas individuais e/ou com questões atinentes ao fluxo de caixa, deduzindo pretensões em juízo apenas em favor do tesouro do "rei", a advocacia pública deve envidar esforços em dar uma adequada execução às leis tributárias, ainda que não satisfaça necessidades imediatistas.

Ao compreendermos a intersecção entre Direito, Moral, Política e Economia, passando a entender a interação e a interdependência entre esses subsistemas, iluminamos um caminho para que a atuação da advocacia pública não se restrinja ao campo de resultados numéricos em benefício do órgão ou cúpula do executivo (por exemplo, nº de processos judiciais, valores arrecadados etc.), mas, sim, que se meça a partir de níveis de satisfação, segundo indicadores de qualidade de vida dos cidadãos.

Podemos extrair um exemplo do campo econômico, a partir do recente estudo patrocinado pelo Insper/CNJ, indicando que, no caso das empresas transacionais estabelecidas no Brasil, estas teriam o percentual de valores em litígio, em relação ao faturamento anual das empresas, de 57% no Brasil e de 3,33% em todos os outros países, de forma que o total de processos tributários, em média, 98,7% são brasileiros e 1,3% é de outros países [5]. Esse dado traz uma exigência de que a atuação da advocacia pública esteja compromissada com a redução da litigiosidade, no sentido de possibilitar que os julgamentos sejam mais justos, eficientes e menos lentos em relação às causas que realmente importam [6]. Levando a sério seu papel de elemento indispensável à administração da Justiça, com menos apego à figura anacrônica do "interesse público primário", há uma imposição na remodelação de seus negócios, conforme já pontuamos noutra ocasião. Dando uma intepretação concretista do "interesse público", isto é, consciente da situação hermenêutica na qual nos encontramos, o descongestionamento do Poder Judiciário, por se tratar de um instrumento para assegurar o direito à propriedade e o cumprimento dos contratos, passa a ter contornos normativos, haja vista se caracterizar como condicionante estrutural imprescindível para uma mudança fundamental rumo a retomada da economia no Brasil [7].

Somente quando percebemos que a advocacia pública não está atrelada aos interesses de governo (ou do executivo) que podemos repensar para além de reducionismos. Aliás, a ideia de "tesouro" veio justamente para separar patrimonialmente o que era do Rei e o que pertencia ao Estado. Infelizmente, a busca por resultados a curto-prazo, pelo executivo [8], faz com que haja uma pressão para o atingimento de metas de arrecadação e/ou redução de perdas, o que deteriora a noção sistêmica ora esposada. À evidência, a advocacia pública deve superar o modo de organização individualista por uma organização comunitária [9], apoiada em canais de permanente diálogo entre todos os poderes, órgãos e sociedade civil, cada vez mais integrados, sendo essa nova (re-) estrutura condição de possibilidade para que o ente público possa, de fato, afiançar e entregar os direitos e garantias prometidos pela Constituição. Em resumo, propomos o prevalecimento, no âmbito da advocacia pública, da adoção das práticas hodiernas de governança, no intuito de criar pontes negociais entre os órgãos componentes do ente, bem assim com o cidadão, sempre no afã de reduzir riscos de desconformidades e, ao mesmo tempo, preservar a justa e adequada aplicação das leis.

 


[1] Por exemplo, cito a análise que faço a respeito da importância do SPED, em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-07/rocha-precisamos-falar-simplificacao-tributaria.

[2] Sob outro recorte, analiso a temática a respeito da relação entre tecnologia e macrolitigância, em https://emporiododireito.com.br/leitura/digitalizacao-da-fazenda-publico-em-juizo-em-meio-a-macrolitigancia-fiscal..

[4] AO 1482, Relator(a): ministro MARCO AURÉLIO, Julgamento: 24/09/2007. Publicação: 01/10/2007.

[5] Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro : relatório final de pesquisa / Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa.  Brasília: CNJ, 2022, p.288.

[6] Nesse sentido, realizo um diagnóstico do que os números atuais da macrolitigância tributária indicam, em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/macrolitigancia-fiscal-no-mundo-digital-fazenda-publica-em-juizo-4-0-20102021

[7] OCDE. RAISING PRODUCTIVITY THROUGH STRUCTURAL REFORMS IN BRAZIL. 2021, p.27-29.

[8] Talvez, em razão de algum ponto de contato com a origem histórica de caixas separados, estipulado pelo Imperador Augusto, nos séculos I e II, organizando o orçamento do fiscus, para a arrecadação dos impostos, e da res privata, para riquezas em favor do império. (ZILVETE, Fernando Aurélio. A evolução da teoria da tributação: análise das estruturas socioeconômicas na formação do sistema tributário. São Paulo: Saraiva, 2017, p.86)

[9] GRACIOTTI, José Paulo. Governança Estratégica para Escritórios de Advocacia. 2.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.55-56.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!