Opinião

Por um direito com mais matemática

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10 de março de 2022, 21h09

A transdisciplinaridade é uma tendência. A ciência se expandiu e se aprofundou, mas essa especialização pode enfraquecer seus ramos, caso o distanciamento entre a especialidade e o tronco seja acompanhado por uma desvinculação em relação às necessidades humanas e uma perda da visão sistêmica do conjunto. Karl Popper já advertia que a filosofia tenderia a morrer se se desvinculasse das necessidades externas a ela.

Não que a pesquisa pura, sem pretensão prática, seja inútil. Muitas invenções foram criadas sem intenção. Muitas invenções, ao serem criadas, nem possuíam utilidade ou serventia. Muitas invenções já existentes teoricamente carecem de tecnologia para serem construídas no mundo fenomênico.

O que se quer aqui é apenas ressaltar a riqueza que é adquirida pela aproximação das ciências diversas. Mais do mesmo pode levar a uma saturação ou a resultados infrutíferos e estéreis. Numa analogia, a reprodução entre seres humanos parentes pode levar a defeitos genéticos, como que se a natureza estivesse determinando a miscigenação, a mistura.

A aproximação entre o direito e as outras ciências já começa a ser notada, por exemplo, com a economia na disciplina de direito e economia.

Ocorre que mesmo dentro da economia se observa aproximação com a psicologia, com a estatística e com a matemática.

E é a matemática que se quer buscar aqui associar com o direito.

Já existem na lei alguns encontros casuais, como, por exemplo, normas que determinam a forma de cálculo de penas pecuniárias ou de penas privativas de liberdade. Também há normas que preveem cálculos de remuneração, de correção monetária e de juros. Há normas que fixam quórum de aprovação de determinados atos ou prazos para serem contados para determinados fins.

Há ainda situações que já mostram a tendência da transdisciplinaridade, como as políticas públicas que são desenhadas a partir de evidências.

E há situações, aliás, em que a matemática é usada para fins privados egoísticos, como quando montanhas de dados pessoais são processadas por computadores para prever e influenciar comportamentos, sugerindo propagandas direcionadas ou aproveitando momentos de vulnerabilidade para incentivar o consumo compulsivo. Não se nega, por outro lado, o lado positivo dessas novas tecnologias para realização de diagnósticos médicos e prescrições de tratamento, para sugerir relacionamentos amorosos com mais chances de dar certo e até para prever e prevenir situações de violência doméstica.

Mas esses exemplos ainda não alcançam todo potencial do que se pretende com uma disciplina como "Direito e Matemática". Aliás, o nome mais adequado pode ser democraticamente e cientificamente discutido pela academia.

Quando Descartes descobriu o potencial da matemática e por meio dela pode vislumbrar a beleza da natureza, constatou uma inteligência suprema por trás do universo visível.

Questionou então como seria um produto feito pelo ser humano se o ser humano fosse dotado dessa inteligência suprema.

Com base em lições da própria natureza, os seres humanos a decodificaram e descobriram padrões que evidenciavam níveis ótimos de eficiência. Podem ser citados, por exemplo, a curvatura da casca do ovo que propicia a máxima resistência a partir do material usado em sua estrutura; ou as estruturas das bolhas de sabão que se desenham de modo a sua película formar a menor superfície possível.

Houve autores, como Joseph Raphson que, a partir disso, chegaram até mesmo a escrever livros para provar que Deus existe (Demonstration de Deo sive Methodus ad cognitionem dei naturalem de 1710) [1].

Descobertas como o cálculo diferencial e integral por Newton e Leibniz foram responsáveis por um incrível ganho de produtividade, principalmente na Revolução Industrial, ao se associar economia de recursos com produção em massa.

A natureza parece indicar como norma a busca da eficiência, como indica Pierre Louis Moreau de Maupertius, por sugestão de René Descartes, ao propor o Principe de la Moindre Action, ou Princípio da Mínima Ação, aplicado no Essai sur la formation des Corps Organisés em 1754 [2].

Mais recentemente, Daniel Kahneman [3] demonstrou que mesmo o cérebro humano também é influenciado por essa lei ao buscar economizar energia. Para isso, o cérebro funcionaria com dois sistemas, dos quais um para uso em atividades que exijam mais esforço e, portanto, mais energia, e o outro responsável pela maioria das atividades cotidianas, de caráter automático e repetitivo.

Sabendo que os seres humanos são regidos pelas leis naturais, quanto poderia ganhar o Direito se se baseasse nessas leis para estabelecer as normas jurídicas?

O que é a ciência senão a descoberta de padrões para prever ou para determinar? E o que são padrões senão normas?

As normas jurídicas deixariam de ser meramente jurídicas para ter um caráter científico, de modo que elas evoluiriam com a ciência e não com os sabores cegos das paixões.

Seria possível matematizar a justiça?

Ora, a noção de justiça parece estar ligada a equilíbrio e a proporção, algo que cada um guarda dentro de si. Equilíbrio se vincula à ideia de igualdade, o princípio fundamental que faz mover toda a Matemática.

Como dito acima, algo já começa a ocorrer com o direito ao se unir à economia. A busca de associar pesquisas empíricas ou evidências para o direito também é salutar.

Mas se propõe aqui ir além e alcançar a própria Matemática para ter contato mais direto com os fenômenos e decifrá-los.

Buscar a norma ideal não é algo distinto do que buscar otimizar uma função matemática. Haveria um ponto ideal entre segurança e justiça?

A provocação de Descartes levou o ser humano a buscar concretizar sua proposta de produzir bens e serviços otimizados, baseados na inteligência "divina".

Ainda que algumas normas decorram do poder dos interesses envolvidos, é curioso que o resultado nem sempre é o mais vantajoso. Adam Smith já advertia, por exemplo, que o protecionismo favorecia no curto prazo determinados comerciantes, mas no longo prazo e de uma perspectiva mais ampla acarretava um resultado desvantajoso para a economia como um todo.

Para tentar dar apenas um exemplo dessa associação entre direito e matemática, não seria possível estabelecer valores mais justos para a tabela de alíquotas do imposto de renda? Não seria possível aprimorar a carga fiscal para que ficasse efetivamente proporcional à capacidade contributiva dos contribuintes? A percepção dos contribuintes quanto à justiça do sistema tributário não teria o efeito de diminuir a sonegação?

Seria possível as normas deixarem de se basear apenas em impressões imprecisas ou de tatear no escuro para terem um caráter mais científico e fundamentado em algo mais racional?

Como fazer isso? O papel desse ensaio é apenas abrir a discussão. E o assunto é muito relevante e agradável para ser pensado por uma só pessoa.


[1] Apud RICIERI, Aguinaldo Prandini. Matemática aplicada à vida: P2. 2019. Apostila.

[2] Apud RICIERI, Aguinaldo Prandini. Matemática aplicada à vida: P2. 2019. Apostila.

[3] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. São Paulo: Objetiva, 2012.

Autores

  • é doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor credenciado pela Escola da AGU e procurador do Banco Central do Brasil.

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