Opinião

As exorbitâncias da Nota Técnica 14/2022 do Ministério da Saúde

Autores

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

  • Francisco José Garcia Figueiredo

    é advogado professor de Direito Animal do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) mestre em Direito pela UFPB e Especialista em Metodologia do Ensino Superior coordenador do Núcleo de Justiça Animal (NEJA-UFPB) presidente da Comissão de Direito e Bem-Estar Animal e Enfrentamento do Problema de Abandono de Animais Domésticos nos Campi da UFPB autor do anteprojeto do Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba e ex-presidente da Comissão de Direito Animal da OAB/PB.

  • Vânia de Fátima Plaza Nunes

    É médica veterinária especialista em Vigilância Sanitária Saúde Ambiental e Pública pela Unicamp em Ecologia e Educação Ambiental pela Unianchieta em Bem-Estar Animal pelo E-learning Institute e em Comportamento Animal pela Unifeob diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal/SP fundadora e diretora técnica do Grupo de Voluntários para Valorização da Vida Animal/Jundiaí-SP idealizadora e ex-presidente da Comissão de Bem-Estar animal do CRMV-SP e da Comissão de Médicos Veterinários professora de Etologia e Bem-Estar Animal na Faculdade de Medicina Veterinária de Jaguariúna diretora da Associação Brasileira de Medicina Veterinária Legal e da Associação Médica Veterinária Brasileira de Bem-Estar Animal pós-graduanda em Medicina Veterinária Legal membro da Diretoria do Instituto Abolicionista Animal (IAA) e da Comissão Medicina Veterinária e superintendente da Fundação Serra do Japi/Jundiaí-SP.

8 de março de 2022, 20h13

Entrou em vigor, em 18/2/2022, a Lei 14.228/2021, que dispõe sobre a proibição da eliminação de cães e gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, e dá outras providências [1].

Poucos dias depois, em 23 de fevereiro de 2022, foi assinada pelo Coordenador-Geral de Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial e ratificada pela Diretora do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, a Nota Técnica 14/2022, com o declarado "propósito de prestar esclarecimentos a respeito da Lei Nº 14.228, de 20 de outubro de 2021 (0025402614), que dispõe sobre orientações de eutanásia de cães e gatos nas Unidades de Vigilância de Zoonoses (UVZs)", trazendo "esclarecimentos e recomendações" para "as UVZs ou CCZs e/ou canis municipais", diante da possibilidade de "interpretações diversas sobre o prosseguimento das ações desenvolvidas pelas UVZs estabelecidas em todo o país".

Como a referida nota técnica recebeu ampla divulgação pelas redes sociais, especialmente em páginas de Conselhos Regionais de Medicina Veterinária [2], é oportuno demonstrar, criticamente, as exorbitâncias da referida manifestação, de modo a prevenir os profissionais da saúde animal quanto aos reais limites e efeitos da Lei 14.228/2021.

Os limites interpretativos da Lei 14.228/2021

Todas as disposições normativas que digam respeito a animais devem ser interpretadas à luz da regra constitucional da proibição da crueldade e do correlato princípio da dignidade animal, normas que exsurgem do inc. VII, do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal de 1988.

Na legislação federal, cães e gatos contam com a proteção especial do tipo penal qualificado, descrito do artigo 32, §1º-A, da Lei 9.605/1998 (incluído pela "Lei Sansão"), que recrudesceu a punição para quem ofende a dignidade de cães e gatos, deles abusando, maltratando, ferindo ou mutilando.

Na legislação estadual, cães e gatos são considerados sujeitos de direitos, a exemplo do que faz o Código Estadual de Proteção aos Animais de Santa Catarina, conforme seu artigo 34-A e também o artigo 216 do Código Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Lei 15.434/2020).

Todas essas leis – aqui enumeradas apenas em caráter exemplificativo  deixam claro que, no Brasil, cães e gatos têm o direito à vida garantido, o que torna, por consequência, a supressão da vida desses animais uma excepcionalidade que deve estar prevista em lei em sentido formal. É nesse contexto que a Lei 14.228/2021 deve ser interpretada, abrindo apenas uma única exceção à eliminação da vida de cães e gatos: a eutanásia.

Mas, como conciliar o direito à vida com a morte por eutanásia?

É mais do que evidente que a eutanásia, como supressão da vida, deve ser admitida apenas em função do interesse animal em não sofrer, quando atingido por uma doença incurável e sem tratamento para seu controle e para a garantia do bem-estar do animal.

Esse é o conteúdo semântico mínimo da palavra "eutanásia", que não pode ser ignorado na interpretação da lei, sob pena de se desvirtuar os propósitos pelos quais ela se justifica. Não existe eutanásia que não seja morte para evitar um sofrimento irremediável. Semanticamente, a eutanásia nunca poderá ser a indução da morte por qualquer razão.

A eutanásia em animais é objeto da Resolução 1.000/2012, do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), a qual traz os casos em que a eutanásia seria permitida (artigos 2º e 3º).

Parece longe de qualquer dúvida que o único caso de eutanásia, em sentido estrito, previsto nessa resolução, é o do inciso I do artigo 3º: "o bem-estar do animal estiver comprometido de forma irreversível, sendo um meio de eliminar a dor ou o sofrimento dos animais, os quais não podem ser controlados por meio de analgésicos, de sedativos ou de outros tratamentos". Os demais casos não são de eutanásia, mas de eliminação da vida animal.

É exatamente nesse sentido que se deve interpretar o artigo 2º da Lei  14.228/2021. No entanto, a Lei explicita, como garantia, duas condições para que a  eutanásia seja excepcionalmente permitida: 1) os males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas que acometem o animal devem ser incuráveis, ou seja, o bem-estar do animal deve estar comprometido de forma irreversível, não havendo como cessar a dor e/ou o sofrimento; e 2) os males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas que acometem o animal devem colocar em risco a saúde humana e a de outros animais, de maneira que, quando houver tratamento e monitoramento médico veterinário adequado, que possa fazer cessar o sofrimento e controlar o risco à saúde humana e animal, a eutanásia torna-se descabida.

O zelo da Lei 14.228/2021 pelo direito à vida de cães e gatos é reforçado pela exigência de comprovação de que a eventual eutanásia seja ajustada aos parâmetros legais, mediante justificativa "por laudo do responsável técnico pelos órgãos e estabelecimentos referidos no caput deste artigo, precedido, quando for o caso, de exame laboratorial" (artigo 2º, § 1º).

As exorbitâncias contidas na Nota Técnica 14/2022 quanto à eutanásia de cães e gatos

Considerando o exposto, podem ser catalogadas as exorbitâncias da nota técnica em relação ao seu poder regulamentar, as quais, nitidamente, reduzem ou eliminam a eficácia prática da Lei 14.228/2021 na proteção do direito à vida de cães e de gatos.

A primeira exorbitância contida na nota técnica é a separação indevida de conceitos que a Lei não separou, ao contrário, reuniu. No item 2.1, ao iniciar a análise, a nota técnica, a fim de uniformizar os termos contidos na lei, acaba subvertendo-os ao separá-los, artificiosamente, em a) males ou doenças graves e b) enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e de outros animais, como se, na Lei, os males e doenças graves também não devessem ser incuráveis e colocar em risco a saúde humana e de outros animais, como se extrai do artigo 2º do texto legal.

Ao isolar males e doenças graves em relação às enfermidades infectocontagiosas incuráveis e da condição de que coloquem em risco a saúde humana e de outros animais, a nota técnica extrapolou os limites interpretativos da Lei, abrindo um leque quase infinito de hipóteses de eliminação da vida de cães e gatos, sem quaisquer relações com o conceito de eutanásia (cf. artigo 3º, I, da Resolução 1.000/2012, CFMV).

Assim, como males e doenças graves, passíveis de eutanásia (item 2.4 da NT), a nota técnica relaciona, de forma exorbitante:

a) distúrbio comportamental grave do animal que represente um risco à saúde das pessoas e impossibilite a sua permanência no convívio social, possibilitando a eliminação da vida animal por problemas comportamentais, os quais podem ter etiologia variada e tratamento diversificado, mas em nada se assemelhando a males incuráveis que impliquem em sofrimento irremediável para o próprio animal;

b) casos em que o animal manifeste doença ou condição de saúde que apresente um alto risco de morte, possibilitando a eliminação da vida animal acometida por doença curável e tratável, muito embora haja alto risco de morte;

c) doença ou condição de saúde que impacte negativamente a qualidade de vida do animal e a função diária [função diária=rotina diária?], seja onerosa em sintomas, tratamentos e estresse do cuidador, possibilitando a eliminação da vida animal por motivos econômicos e alheios aos interesses animais, na linha do criticável artigo 3º, V, da Resolução 1.000/2012, do CFMV, o qual, de toda sorte, não é aplicável a cães e gatos, titulares do direito fundamental à vida.

Nenhuma dessas hipóteses pode ser considerada eutanásia, porque discrepam da finalidade protetiva da dignidade de cães e gatos contra o sofrimento irremediável. São casos de eliminação da vida animal expressamente proibidas  pelo próprio texto da lei – o que releva o alto nível de exorbitância da nota técnica, a qual, por reflexo dos conceitos que adota, legitima e respalda as eliminações proibidas da vida animal, nas unidades de vigilância de zoonoses, o que é muito grave.

A exorbitância da nota técnica em relação à Lei é tão intensa e perigosa nesse ponto, que chega a indicar a esporotricose, doença tratável e curável [3], como hipótese genérica e autorizada de eutanásia de gatos (cf. item 2.4, letra a), sem contemporizar a gravidade e as peculiaridades que a doença pode manifestar em um animal específico.

Interessante notar que, na sequência, quando conceitua enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e de outros animais, a nota técnica fica aquém do devido, limitando-se a dizer que se trata de "doença causada por um patógeno ou seu produto tóxico, que surge através da transmissão de uma pessoa infectada, um animal infectado ou um objeto inanimado contaminado para um hospedeiro suscetível, zoonótica e que não tenha cura clínica ou parasitológica cientificamente comprovadas". No entanto, perceba-se que o conceito nada diz acerca do que significa colocar "em risco a saúde humana e de outros animais", como se esse elemento não devesse ser necessariamente aderido ao conceito como um todo (e aos demais males e doenças graves, como visto).

Com esse último conceito em vista, a nota técnica também legitima e respalda a eutanásia nas seguintes hipóteses:

a) casos suspeitos ou animais contactantes daqueles confirmados com doenças infectocontagiosas incuráveis (cura clínica ou parasitológica) que coloquem em risco a saúde humana e de outros animais, em que não é possível realizar diagnóstico 'ante mortem'(como a raiva), possibilitando a eliminação da vida animal sem certeza diagnóstica de doença infectocontagiosa incurável e que possa colocar em risco a saúde humana ou animal, bastando a "suspeita" ou o "contacto" com animais confirmados como doentes e a impossibilidade de diagnóstico ante mortem, o qual, tecnicamente, é uma prática possível [4]; a generalidade da "permissão" da eutanásia nesses casos, sem especificar a doença (a raiva é apenas exemplificada), é, de todo, contrária às finalidades da Lei 14.228/2021;

b) casos confirmados de doenças infectocontagiosas incuráveis (cura clínica ou parasitológica) que coloquem em risco a saúde humana e de outros animais (Ex: leishmaniose visceral), possibilitando a eliminação da vida animal com certeza diagnóstica (clínica e laboratorial) de doença infectocontagiosa incurável e que possa colocar em risco a saúde humana ou animal, sem questionar, no entanto, em função da carência conceitual anterior (cf. item 2.1, letra b), sobre a eficácia de tratamentos disponíveis para conter a doença e evitar o risco à saúde pública.

Como consequência da insuficiência conceitual contida nesse último caso, a nota técnica exorbitou ao incluir, genericamente, a leishmaniose visceral canina, atualmente tratável (o que possibilita a preservação da vida e da dignidade do animal infectado e impede o risco à saúde humana/animal) [5], dentre as doenças que autorizam a eutanásia e que impedem o resgate de cães pelas entidades de proteção animal (itens 2.4 e 3.1 da NT).

As exorbitâncias, nesse ponto, finalizam-se com a proibição (com o "não" gravado em letras maiúsculas) de que "animais que se enquadrem nas situações supracitadas nos itens 'b' e 'c' [analisadas, acima, nos últimos itens a e b] NÃO poderão ser resgatados por entidades de proteção de animais e nem disponibilizados para adoção" (item 2.5 da NT), o que contraria a norma do artigo 2º, §2º da Lei 14.228/2021, que confere ampla possibilidade de resgate de animais pelas entidades de proteção animal, excluída, apenas, as hipóteses "de doença infectocontagiosa incurável" (para tanto, com diagnóstico certo, não apenas suspeito), que caracterize risco à saúde pública (no qual, evidentemente, a adoção dos protocolos de prevenção e tratamento cumpridos e monitorados não seja eficaz para evitar esse risco).

A Nota Técnica 14/2022 termina, em suas considerações finais, a confirmar a sua exorbitância, ao orientar que a "Lei N°14.228/2021 não restringe as situações e condições previstas para realização de eutanásia para doenças como leishmaniose visceral e raiva nas UVZs, já estabelecidas na legislação até então vigente", com isso dizendo, com outras palavras, que a Lei 14.228/2021 é praticamente inútil, porque não inova a ordem jurídica, dado que, pelos conceitos inadvertidamente criados pela própria nota técnica, a nova Lei não estabelece novas restrições à eutanásia de cães e gatos nas unidades de vigilância de zoonoses.

O mais grave é que a nota técnica, ao legitimar e respaldar hipóteses de eliminação da vida animal, não contempladas pelas excepcionalidades admitidas pela Lei 14.228/2021, dá ensejo a argumentos de exclusão de ilicitude para casos de descumprimento da própria Lei, impedindo a aplicação das sanções penais e administrativas decorrentes da Lei 9.605/1998 (conforme preconiza o artigo 5º da Lei 14.228/2021), sem falar da defesa, no mesmo sentido, em ações civis de natureza reparatória.

A conclusão não pode ser outra: deve o Congresso Nacional sustar a referida nota técnica, nos termos do artigo 49, V, da Constituição, para evitar que ela induza a erro os responsáveis pela aplicação da Lei 14.228/2021, o que aumenta a insegurança jurídica e fragiliza o sistema de proteção dos direitos fundamentais dos animais.

 


[1] Sobre essa Lei, cf. ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; FIGUEIREDO, Francisco José Garcia. Considerações sobre a Lei 14.228/2021. Consultor Jurídico, 25/10/2021.

[3] Disponível em: https://portal.fiocruz.br/esporotricose. Acesso em: 28 fev. 2022.

[4] CÔRTES, Valdson de Angelis; PAIM, Gil Vianna; OLIVEIRA, Maria Cecília Gibrail de. Diagnóstico da raiva canina. I. Comparação entre amostras de saliva e de encéfalo. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 13, p. 353-356, 1979.

[5] Segundo orientação do Conselho Federal de Medicina Veterinária, "os cães que estiverem em tratamento exclusivamente com o Milteforan aprovado pelo MAPA não necessitarão ser encaminhados para eutanásia", conforme informação disponível em: https://www.cfmv.gov.br/perguntas-e-respostas-sobre-a-leishmaniose-visceral-canina-lvc-questoes-tecnicas-e-legais/transparencia/perguntas-frequentes/2018/10/26/. Acesso em: 28 fev. 2022.

Autores

  • é juiz federal da 2ª Turma Recursal Federal - PR, professor adjunto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

  • é advogado, professor de Direito Animal do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mestre em Direito pela UFPB e Especialista em Metodologia do Ensino Superior, coordenador do Núcleo de Justiça Animal (NEJA-UFPB), presidente da Comissão de Direito e Bem-Estar Animal e Enfrentamento do Problema de Abandono de Animais Domésticos nos Campi da UFPB, autor do anteprojeto do Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba, e ex-presidente da Comissão de Direito Animal da OAB/PB.

  • É médica veterinária, especialista em Vigilância Sanitária, Saúde Ambiental e Pública pela Unicamp, em Ecologia e Educação Ambiental pela Unianchieta, em Bem-Estar Animal pelo E-learning Institute e em Comportamento Animal pela Unifeob, diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal/SP, fundadora e diretora técnica do Grupo de Voluntários para Valorização da Vida Animal/Jundiaí-SP, idealizadora e ex-presidente da Comissão de Bem-Estar animal do CRMV-SP e da Comissão de Médicos Veterinários, professora de Etologia e Bem-Estar Animal na Faculdade de Medicina Veterinária de Jaguariúna, diretora da Associação Brasileira de Medicina Veterinária Legal e da Associação Médica Veterinária Brasileira de Bem-Estar Animal, pós-graduanda em Medicina Veterinária Legal, membro da Diretoria do Instituto Abolicionista Animal (IAA) e da Comissão Medicina Veterinária e superintendente da Fundação Serra do Japi/Jundiaí-SP.

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