Opinião

Apego à competitividade ou risco de insegurança na licitação?

Autor

  • Luciano Elias Reis

    é sócio do RLLAW doutor e mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) doutor em Direito Administrativo pela Universitat Rovira i Virgili e presidente do Instituto Nacional da Contratação Pública.

8 de março de 2022, 6h04

O artigo 64 da nova Lei de Licitações previu que, após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para: 1 – complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame; 2 – atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.

Quanto à atualização de documento cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas, inexiste qualquer problemática. O fato de o licitante durante o certame ter apresentado o documento tempestivamente e a administração pública, quando avaliá-lo, perceber que o seu prazo expirou, deverá conceder um prazo razoável para que o licitante junte o documento pertinente com o prazo de vigência atual.

A grande questão está no limite de alcance do poder-dever de diligência pelo agente público quando tiver um documento incompleto, obscuro ou ausente.

No documento incompleto ou obscuro, o princípio da verdade real e a busca da proposta mais vantajosa pelo poder público deverão nortear a atuação do agente público, notadamente para requerer que o licitante ou o terceiro emissor do documento apresente os devidos esclarecimentos e com isso haja tranquilidade para decidir pela habilitação ou inabilitação.

Em casos de irregularidades meramente formais, a orientação do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas têm sido unânimes pela viabilidade de saneamento a partir de diligências realizadas pela comissão de licitação, pregoeiro ou agentes de contratação:

"9.6. comunicar à DR/SPM/ECT que, na condução de licitações, falhas sanáveis ou meramente formais, identificadas na documentação das proponentes, não devem levar necessariamente à inabilitação ou à desclassificação, cabendo à comissão de licitação promover as diligências destinadas a esclarecer dúvidas ou complementar o processamento do certame, conforme decisões do Tribunal de Contas da União (v.g. Acórdãos 2.459/2013, 3.418/2014 e 3.340/2015, todos do Plenário);" (ACÓRDÃO Nº 61/2019 — TCU — Plenário)

"O TCU da ciência à (omissis) que '(…) as omissões nas planilhas de custos e preços das licitantes não ensejam necessariamente a antecipada desclassificação das respectivas propostas, devendo a administração pública promover as adequadas diligências junto às licitantes para a devida correção das eventuais falhas, sem a alteração, contudo, do valor global originalmente proposto, em consonância, por exemplo, com os Acórdãos 2.546/2015, 1811/2014 e 187/2014, do Plenário do TCU; 9.4.2. a eventual preclusão do direito de recurso por perda de prazo, nos termos do artigo 45, § 1 º, da Lei nº 12.462, de 2011, não se confunde com o poder-dever de a administração rever os seus atos eivados de ilegalidade, nos termos do artigo 63, § 2º da Lei nº 9.784, de 1999, e da Súmula nº 473 do STF.'" (Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 830/2018, Plenário).

"O TCU da ciência ao (omissis) de que '(…) o excesso de rigor e formalismo identificado na aferição das propostas técnicas fere o princípio da seleção da proposta mais vantajosa, previsto no artigo 3º da Lei 8.666/1993 e pode ser mitigado através de diligências, conforme dispõe o artigo 43, § 3º da Lei 8.666/1993; 9.4.2. a inobservância do princípio da isonomia, no tratamento desigual dado aos licitantes no cômputo da pontuação de suas propostas técnicas desrespeita o artigo 3º da Lei 8.666/1993; 9.4.3. a falta de motivação dos atos administrativos, a exemplo da ausência, no processo licitatório objeto desta Representação, das razões para a desclassificação da representante, em desacordo com o disposto no artigo 50, inciso I e § 1º da Lei 9.784/1999.'" (Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 581/2018, Plenário).

"AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO ORDINÁRIA – PROCEDIMENTO LICITATÓRIO – INABILITAÇÃO – VÍCIO SANADO TEMPESTIVAMENTE – OBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO DO FORMALISMO MODERADO – DECISÃO REFORMADA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. O princípio do formalismo moderado garante a possibilidade da correção de falhas ao longo do processo licitatório, isso sem desmerecer o princípio da vinculação ao instrumento convocatório." (TJ-MS – AI: 14082527020188120000 MS 1408252-70.2018.8.12.0000, relator: des. Amaury da Silva Kuklinski, data de julgamento: 23/1/2019, 4ª Câmara Cível, data de publicação: 27/1/2019)

"ADMINISTRATIVO – LICITAÇÃO – FORMALIDADES: CONSEQUÊNCIAS
1. Repudia-se o formalismo quando é inteiramente desimportante para a configuração do ato. 2. Falta de assinatura nas planilhas de proposta da licitação não invalida o certame, porque rubricadas devidamente. 3. Contrato já celebrado e cumprido por outra empresa concorrente, impossibilitando o desfazimento da licitação, sendo de efeito declaratório o mandado de segurança. 4. Recurso provido." (Superior Tribunal de Justiça, RMS 15.530/RS, rel. min. Eliana Calmon, 2ª Turma, j. em 14/10/2003, DJ 1/12/2003, p. 294).

"O TCU deu ciência à (omissis), de que '(…) a exigência contida em item de pregão, no sentido de que os atestados, certidões e declarações devem ser apresentados em papel timbrado da pessoa jurídica, bem como referenciar o respectivo certame licitatório, caracteriza, respectivamente, formalismo desnecessário e restrição indevida ao caráter competitivo do certame, conforme artigo 3º, § 1º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993 e artigo 37, inciso XXI, parte final, da Constituição Federal.'" (Tribunal de Contas da União, item 1.7, TC-028.700/2013-9, Acórdão nº 2.843/13, Plenário).

Já quando é uma situação de falta de documento, apesar da existência do fato a ser comprovado no certame diante do mundo real, a complexidade se agiganta a partir de interpretações jurídicas plausíveis e antagônicas.

De um lado, há os que defendem que a entrega nos autos do processo licitatório é uma mera formalidade, tendo como consequência direta a viabilidade de ser juntado um documento novo, não conhecido até então no certame, para certificar uma situação pré-existente à licitação. Por exemplo, é como se o licitante não apresentasse o atestado de capacidade técnica, contudo fosse o atual prestador de serviço do objeto licitado no órgão ou entidade promotora do certame; isto quer dizer, no mundo dos fatos é incontroverso que o licitante possui aptidão para a execução do objeto licitado, tanto que já executa no próprio órgão, mas por um descuido ou uma relapsia não apresentou o referido documento quando da entrega da sua habilitação.

Nesse sentido, já foram emitidas decisões do Tribunal de Contas da União para chancelar a postura de agentes de contratação que permitiram a juntada de documentos novos, como se observa por exemplo do Acórdão 1.211/2021 – Plenário, que é paradigma sobre o assunto:

"REPRESENTAÇÃO. PREGÃO ELETRÔNICO REGIDO PELO DECRETO 10.024/2019. IRREGULARIDADE NA CONCESSÃO DE NOVA OPORTUNIDADE DE ENVIO DE DOCUMENTAÇÃO DE HABILITAÇÃO AOS LICITANTES, NA FASE DE JULGAMENTO DAS PROPOSTAS, SEM QUE O ATO TENHA SIDO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO. PROCEDÊNCIA. REVOGAÇÃO DO CERTAME. MEDIDA CAUTELAR PLEITEADA PREJUDICADA. CIÊNCIA AO JURISDICIONADO ACERCA DA IRREGULARIDADE. OITIVA DO MINISTÉRIO DA ECONOMIA SOBRE A CONVENIÊNCIA E OPRTUNIDADE DE IMPLANTAÇÃO DE MELHORIAS NO SISTEMA COMPRASNET. Admitir a juntada de documentos que apenas venham a atestar condição pré-existente à abertura da sessão pública do certame não fere os princípios da isonomia e igualdade entre as licitantes e o oposto, ou seja, a desclassificação do licitante, sem que lhe seja conferida oportunidade para sanear os seus documentos de habilitação e/ou proposta, resulta em objetivo dissociado do interesse público, com a prevalência do processo (meio) sobre o resultado almejado (fim). O pregoeiro, durante as fases de julgamento das propostas e/ou habilitação, deve sanear eventuais erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, dos documentos e sua validade jurídica, mediante decisão fundamentada, registrada em ata e acessível aos licitantes, nos termos dos artigos 8º, inciso XII, alínea 'h'; 17, inciso VI; e 47 do Decreto 10.024/2019; sendo que a vedação à inclusão de novo documento, prevista no artigo 43, §3º, da Lei 8.666/1993 e no artigo 64 da Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), não alcança documento ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta, que não foi juntado com os demais comprovantes de habilitação e/ou da proposta, por equívoco ou falha, o qual deverá ser solicitado e avaliado pelo pregoeiro."

Do voto do ministro Walton Alencar, que foi o relator do feito, pode-se perceber que ele inclusive apontou sobre a possibilidade de juntar documentos que comprovem fatos já existentes, tudo com a finalidade de pensar na melhor proposta para a Administração Pública:

"Como visto, a interpretação literal do termo '[documentos] já apresentados' do artigo 26, §9º, do Decreto 10.024/2019 e da vedação à inclusão de documento 'que deveria constar originariamente da proposta', prevista no artigo 43, §3º, da Lei 8.666/1993 pode levar à prática de atos dissociados do interesse público, em que o procedimento licitatório (meio) prevalece e ganha maior importância que o resultado almejado, qual seja, a obtenção da proposta mais vantajosa para a Administração (fim).

Imperioso observar que, visto por este prisma, a interpretação literal desses comandos legais vai contra o entendimento da jurisprudência deste Tribunal, no sentido de que o edital não constitui um fim em si mesmo. Cito caso semelhante à situação ora tratada em que, por meio do Acórdão 1758/2003-TCU-Plenário, de minha relatoria, o TCU considerou regular a inclusão de documentos no processo licitatório, no ato da sessão, conforme autorizado pela pregoeira, no exercício de suas regulares atribuições, tratadas no artigo 11, incisos XIII e XIV, do Decreto 3.555/2000.

O edital de licitação constitui instrumento para a consecução das finalidades do certame licitatório, quais sejam, assegurar a contratação da proposta mais vantajosa para a Administração e a igualdade de oportunidade de participação dos interessados, nos termos do artigo 3º, caput, da Lei 8.666/93. Dessa maneira, a interpretação e a aplicação das regras estabelecidas devem ter por norte o atingimento dessas finalidades, evitando-se o apego a formalismos exagerados, irrelevantes ou desarrazoados, que não contribuam para esse desiderato.

As regras de licitações e a jurisprudência vêm evoluindo nesse sentido, sendo possível, por exemplo, ante à falta de juntada de comprovantes de regularidade fiscal pelo licitante, a consulta, pelo próprio agente público que conduz o certame, a sítios públicos em que constem tais documentos, nos termos do artigo 40, parágrafo único, do Decreto 10.024/2019.

Em alinhamento com esse entendimento, a vedação à inclusão de documento 'que deveria constar originariamente da proposta', prevista no artigo 43, §3º, da Lei 8.666/1993, deve se restringir ao que o licitante não dispunha materialmente no momento da licitação. Caso o documento ausente se refira a condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta, e não foi entregue juntamente com os demais comprovantes de habilitação ou da proposta por equívoco ou falha, haverá de ser solicitado e avaliado pelo pregoeiro.

Isso porque admitir a juntada de documentos que apenas venham a atestar condição pré-existente à abertura da sessão pública do certame não fere os princípios da isonomia e igualdade entre as licitantes e o oposto, ou seja, a desclassificação do licitante, sem que lhe seja conferida oportunidade para sanear os seus documentos de habilitação, resulta em objetivo dissociado do interesse público, com a prevalência do processo (meio) sobre o resultado almejado (fim).

Cito ainda o disposto no artigo 64 da nova Lei de Licitações (Lei 14.133 de 1º de abril de 2021), que revogará a Lei 8.666/1993 após decorridos dois anos da sua publicação oficial:

Artigo 64. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou a apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para:

I – complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;

II – atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.

§ 1º. Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.

O dispositivo reproduz a vedação à inclusão de novos documentos, prevista no artigo 43, §3º, da Lei 8.666/1993; porém, deixa salvaguarda a possibilidade de diligência para a complementação de informações necessárias à apuração de fatos existentes à época da abertura do certame, o que se alinha com a interpretação de que é possível e necessária a requisição de documentos para sanear os comprovantes de habilitação ou da proposta, atestando condição pré-existente à abertura da sessão pública do certame.

Assim, nos termos dos dispositivos citados, inclusive do artigo 64 da Lei 14.133/2021, entendo não haver vedação ao envio de documento que não altere ou modifique aquele anteriormente encaminhado. Por exemplo, se não foram apresentados atestados suficientes para demonstrar a habilitação técnica no certame, talvez em razão de conclusão equivocada do licitante de que os documentos encaminhados já seriam suficientes, poderia ser juntado, após essa verificação no julgamento da proposta, novos atestados de forma a complementar aqueles já enviados, desde que já existentes à época da entrega dos documentos de habilitação."

Contudo, doutro lado, a interpretação acima encontra resistência, já que a juntada de um documento novo, ainda que seja para evidenciar um fato existente e eficaz, pode significar uma surpresa aos demais licitantes e uma violação à objetividade das regras editalícias.

A pergunta comum entre os licitantes em uma licitação que ocorra essa permissividade é: por que apresentarei tal documento, se posteriormente a comissão, o pregoeiro ou o agente de contratação poderá diligenciar e juntá-lo? Assim, gera uma fragilidade ao dever de respeito ao princípio da vinculação do instrumento convocatório, da legalidade estrita e do dever de atenção máxima pelo licitante quando da sua participação na licitação.

Outro argumento plausível é que o licitante ao não apresentar um documento essencial, poderá assim o fazê-lo com o intuito de manipular o vencedor do certame. Explica-se. Quando a Administração Pública solicita o documento faltante, a depender do cenário e dos potenciais benefícios/malefícios econômicos, inclusive aqueles ilícitos por obter uma vantagem indevida de terceiro (por exemplo, segundo colocado com o anseio de tornar-se vencedor com um preço mais alto oferece uma vantagem ilícita), o fornecedor simplesmente desconsidera o pedido administrativo, diz que não tem ou não entrega. Ou seja, ele usa de maneira irregular e imoral a regra de permissividade da juntada de novo documento.

Dessa feita, considerando as interpretações suscitadas, o ideal é que o edital fixe quais situações serão passíveis de diligência para fins de esclarecimento ou até disponha sobre a juntada de documentos que atestam situação pré-existente, gerando menor imprevisibilidade e insegurança à disputa licitatória.

Autores

  • é sócio do Reis & Lippmann Advogados, doutor e mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, doutor em Direito Administrativo pela Universitat Rovira i Virgili, presidente do Instituto Nacional da Contratação Pública, professor de Direito Administrativo do Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba), coordenador da especialização em Licitações e Contratos da Faculdade Polis Civitas, diretor-adjunto acadêmico do Instituto Paranaense de Direito Administrativo e autor de livros jurídicos.

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