Direito Eleitoral

Orçamento público impositivo e o fundo eleitoral

Autor

  • Claudia Bressan Brincas

    é advogada mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) especialista em Direito Público pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc) presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SC e da Comissão de Direito Eleitoral do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (Iasc) e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

7 de março de 2022, 11h49

De acordo com o artigo 2º [1], da lei federal 4.320/64, que estatui normas gerais de Direito Financeiro, o Orçamento Público é a lei que contém a discriminação da receita e da despesa, de forma a evidenciar a política econômica-financeira e o programa de trabalho do governo, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade.

Assim, o Orçamento Público Geral da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, iniciam-se com a elaboração pelo Poder Executivo de um projeto de lei encaminhado para apreciação e aprovação do Poder Legislativo. A peça orçamentária deverá conter a estimativa de arrecadação das receitas para o exercício financeiro subsequente bem como a autorização para a realização de despesas.

O projeto de lei do orçamento anual é onde se identifica a destinação dos recursos que o governo arrecada sob a forma de tributos. Assim, nenhuma despesa pública poderá ser realizada sem estar prevista no Orçamento Anual. Portanto, considera-se o Orçamento Público Geral, o coração da administração pública federal, estadual, distrital e municipal.

Portanto, o Governo é obrigado a encaminhar o Projeto de Lei Orçamentária Anual ao Congresso nacional até o dia 31 de agosto de cada ano (quatro meses antes do encerramento da sessão legislativa). Acompanha o projeto, mensagem do Presidente da República, no caso do orçamento público da União, na qual é feito um diagnóstico sobre a situação econômica do país e suas perspectivas.

Entende-se, todavia, que o orçamento público é ato de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, onde, cada um dos Poderes elaborará sua proposta orçamentária e a encaminhará ao Poder Executivo para consolidação e posterior encaminhamento ao Poder Legislativo, com uma proposição única da Federação envolvida.

Com o advento das Emendas Constitucionais 86, de 2015 e 100, de 2019, a execução orçamentária sofreu algumas mudanças, estabelecendo uma nova relação entre o Poder Executivo e Legislativo. Referente à EC 86/15, que alterou a redação dos artigos 165, 166 e 198 da Constituição Federal, fez-se obrigatória a execução da programação orçamentária advinda de emendas parlamentares apresentadas e aprovadas na LOA. Nesse sentido, nota-se que o principal objetivo da EC 86/15 foi impor limites à discricionariedade do Executivo na execução do orçamento e, por conseguinte, prestigiar as emendas do Legislativo.

Assim, o Congresso Nacional deixa de ser mero autorizador do orçamento público, como pode ser verificado em parte da Nota Técnica 10/13, elaborada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, anexada a PEC 565/06, que originou a EC 86/15 — ao afirmar que, "subjacente às propostas de dar um caráter impositivo à LOA ou de proteção das emendas parlamentares, está a percepção de perda gradativa de importância política do papel do Congresso Nacional na matéria orçamentária e financeira" [2].

Quanto a EC 100, de 2019, essa, por sua vez, torna obrigatória a execução da programação orçamentária proveniente de emendas de bancada de parlamentares de Estado ou do Distrito Federal, em 1,0% da receita corrente líquida, com alteração dos artigos 165 e 166 da CF; enquanto a EC 86/2015, contempla as emendas individuais relativas a 1,2% da receita corrente líquida.

Importante ressaltar, que uma parcela da previsão orçamentária para as emendas de bancada, é destinada para o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas — FEFC (fundo eleitoral), que foi criado em 2017 pelas leis 13.487 e 13.488, cujos recursos deste fundo é definido pela Lei Orçamentária anual.

Inicialmente, o projeto de lei orçamentário para o exercício financeiro de 2022, encaminhado pelo Poder Executivo, trouxe o valor previsto para o FEFC de R$ 2.127.519.77 [3]. Com alteração da proposta, por meio de substitutivo e a derrubada do Veto Presidencial quanto ao aumento do valor anterior, a previsão de fundo eleitoral na Lei de Diretrizes Orçamentárias, foi de até R$ 5,7 bilhões para o ano de 2022.

Nesse sentido, o texto aprovado pela Comissão Mista do Legislativo, definiu que o reajuste do FEFC seria de 25% da verba da Justiça Eleitoral [4]4. Atualmente, esses recursos oriundos do orçamento geral da União, são considerados uma das principais fontes de receita para realização das campanhas eleitorais após a proibição de doações de pessoas jurídicas. Contudo, após muita polêmica em torno dos valores, o Governo sancionou a lei com valor previsto para o fundo eleitoral R$ 4,96 bilhões para eleições de 2022.

Mesmo com a previsão de emenda parlamentar e de emenda de bancada, o sistema normativo assegura considerável controle do processo legislativo pelo Governo a partir da reserva de iniciativa legislativa para matérias de relevo, inclusive com vedação de emendas parlamentares que impliquem aumento de despesas, bem como o próprio trancamento da pauta por medidas provisórias pendentes de apreciação, afora outros instrumentos e fatores relacionados à dimensão político-relacional.

Com efeito, embora tradicionalmente entendido como de caráter discricionário, a execução do orçamento público demanda uma renovada reflexão, em especial com a promulgação das Emendas nº 86/2015 e 100/2019, que traz ao debate a sistemática do orçamento impositivo, mas, sobretudo, porque a discricionariedade alcança somente as despesas de caráter não obrigatório, decorrentes da ordem constitucional e infraconstitucional estabelecida.

As chamadas despesas obrigatórias, de inclusão impositiva na LOA, como as despesas das áreas da saúde e educação, deixam assente o caráter mandatório de considerável parcela da execução do orçamento público, o que reforça a crescente restrição àquela corrente ideia de discricionariedade executiva da peça orçamentária.

A ampliação do chamado orçamento impositivo pode, a partir da redução da discricionariedade do Governo na execução da peça orçamentária, ampliar de alguma forma a qualificada defesa dos interesses públicos e na promoção dos direitos fundamentais [5].

De fato, essa nova sistemática de obrigatoriedade de execução das programações decorrentes de emendas parlamentares individuais e de bancada, tem o potencial de alterar a correlação de forças sobre a definição de políticas públicas [6], de forma a realinhar e reequilibrar um modelo de mais efetiva atuação do Poder Legislativo, com todos os pontos positivos e negativos daí resultantes. Ainda que em um percentual reduzido (1,2% e 1,0% da RCL), esse novo cenário tem o potencial de influir na prática da gestão pública, ao estabelecer o dever de execução da lei orçamentária e a necessidade de justificativa administrativa no caso de eventuais impedimentos.

Em síntese, não se está aqui a defender propriamente o aumento de força dos Parlamentos a partir da sistemática das emendas parlamentares impositivas individuais e de bancada em matéria de orçamento público, mas sim o efetivo potencial de incremento qualitativo na participação da sociedade acerca da definição do orçamento público, de forma a garantir a execução das suas programações, com maior transparência na gestão do gasto público e o acompanhamento da sua execução.

Inegavelmente, a partir desse cenário, o Legislativo assumiu um papel relevante na execução das finanças públicas, ao tornar impositivo parte do orçamento público. Ainda que não se possa olvidar as diversas críticas endereçadas à sistemática das emendas parlamentares impositivas, em especial sobre a qualidade e relevância dos projetos apresentados, e mais firmemente à própria relação de inadequada reprodução de dependência de determinadas bases eleitorais, o fato é que também é possível vislumbrar um potente instrumento de democratização do orçamento público [7], a ser cada vez mais qualificado a partir do aumento da participação popular e controle social do gasto público.

 


[1] Artigo 2° A Lei do Orçamento conterá a discriminação da receita e despesa de forma a evidenciar a política econômica financeira e o programa de trabalho do Governo, obedecidos os princípios de unidade universalidade e anualidade.

[2] BRASIL. CONSULTORIA DE ORÇAMENTO E FISCALIZAÇÃO FINANCEIRA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Nota Técnica nº 01 de maio de 2013. Orçamento Impositivo. p. 6. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2013/nt10.pdf

[4] Artigo 12 […]

XXVII – Fundo Especial de Financiamento de Campanha, financiado com recursos da reserva prevista no inciso II do §4º do artigo 13, no valor correspondente a 25% (vinte e cinco por cento) da soma das dotações para a Justiça Eleitoral para exercício de 2021 e as constantes do Projeto de Lei Orçamentária para 2022, acrescentado do valor previsto no inciso I do artigo 16-C da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997; Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14194.htm

[5] Sobre o tema, ver: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Administração Pública democrática e a efetivação dos direitos fundamentais. Anais do Congresso Nacional do CONPEDI, Brasília, p. 6802-6821, 2008. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/gustavo_justino_de_oliveira.pdf

[6] Sobre o tema, ver: BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002; COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 138, abr./jun. 1998. p. 39-48; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; CATARINO, João Ricardo. Políticas públicas, mínimo existencial, reserva do possível e limites orçamentários: uma análise a partir da jurisprudência dos tribunais no Brasil. In: GOMES, Marcus Livio; ALVES, Raquel de Andrade Vieira; ARABI, AbhnerYoussif Mota (Coord.). Direito financeiro e jurisdição constitucional. Curitiba: Juruá, 2016. p. 115-144.

[7] Sobre o tema, ver: BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002; COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 138, abr./jun. 1998. p. 39-48; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; CATARINO, João Ricardo. Políticas públicas, mínimo existencial, reserva do possível e limites orçamentários: uma análise a partir da jurisprudência dos tribunais no Brasil. In: GOMES, Marcus Livio; ALVES, Raquel de Andrade Vieira; ARABI, AbhnerYoussif Mota (Coord.). Direito financeiro e jurisdição constitucional. Curitiba: Juruá, 2016. p. 115-144.

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