Observatório Constitucional

Instrução probatória e funções da audiência pública na jurisdição do STF

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5 de março de 2022, 10h13

A questão em debate
Para que servem as audiências públicas? Mais precisamente, quais as diferentes funções que são desempenhadas por esse instrumento processual hoje na prática deliberativa de nossa Suprema Corte?

A resposta a essa indagação passa por algumas importantes questões de base, desde a compreensão do STF enquanto Corte de Precedentes, o maior refinamento da prática jurídica a partir da inerente reconstrução dialogal dos sentidos possíveis da norma constitucional no processo de interpretação — e aplicação — do Direito Constitucional[1], e o caminho concretamente percorrido pelas audiências públicas nas últimas duas décadas pelo Supremo.

Mas isso não é tudo: faz-se necessário desconstruir alguns mitos há muito difundidos, como o de que o controle principal de constitucionalidade (ou "concentrado") seria imune à riqueza do mundo factual — e, nessa dimensão, objetivo e abstrato —, ou mesmo que a deliberação sobre questões constitucionais com repercussão geral reconhecida em recurso extraordinário não abriria oportunidade para eventuais aprofundamentos de índole instrutória.

Como bem percebido pela doutrina mais contemporânea do Processo Constitucional, os fatos constitucionais são relevantes não apenas ao pensarmos nas prognoses legislativas para realização do controle de constitucionalidade, isso é, os fatos pressupostos pelo Legislativo para concretizar a Constituição por meio das leis e demais atos normativos[2], mas também e em especial para a importância dos fatos no e para o diálogo constitucional, se fazendo presentes em todas as fases do percurso interpretativo (raciocínios probatório, decisório e justificatório)[3].

Com isso em mente, cabe buscar sistematizar as principais funções desempenhadas pelas audiências públicas.

Funções das audiências
Em uma rápida revisão da literatura constitucional e processual sobre o tema, verificamos que são ao menos quatro as funções que podem ser atribuídas às audiências públicas.

A primeira, de natureza informativa e instrutória do processo constitucional, voltada para a coleta de dados, informações técnicas e experiências acerca dos fatos legislativos subjacentes ao problema constitucional posto. A segunda, atribui-lhe a abertura para a participação popular, com a consequente pluralização do debate constitucional. A terceira, associada e derivada dessa última, diz respeito ao papel instrumental de incremento da legitimidade da interpretação constitucional, com enriquecimento do pedigree democrático do resultado da atividade da Corte. A quarta, por fim, também ligada ao jogo democrático, aponta para um papel de fórmula processual para veiculação do embate entre diversos grupos de interesse, entendidos aqui como possível espaço para lobby de grupos sociais que veem na corte uma arena decisória para se discutir políticas públicas[4].

Como é sabido, os tribunais em geral — e as cortes constitucionais, em particular — são apreendidas no marco do estado e da democracia constitucionais como instituições deliberativas, em que, para além de uma visão estrita e restrita de última palavra, o Poder Judiciário compartilha com o Legislativo a função e responsabilidade no processo de criação (reconstrução) do direito.

A sistematização acima revela um processo em que a Corte migra do cenário normativo de práticas processuais dialógicas restritas à função de coleta e explanação dos dados e argumentos, para o cenário normativo institucional dialógico, cuja função é de contestação e debate das perspectivas argumentativas colocadas como premissas para a solução da controvérsia constitucional. Mais do que se valer do uso de instrumentos dialógicos, aponta-se hoje para a necessidade de o Tribunal ser em essência deliberativo, em todos os momentos do seu processo decisório.

E essa passagem fica clara ao observar alguns momentos-chave da história da audiência pública no Supremo Tribunal Federal, não obstante a persistência residual com o perfil mais formal e retórico desse instrumento[5].

Exemplos da modificação
Quanto ao caráter instrutório da audiência pública, é importante ressaltar o avanço da consideração desta função e de sua específica regulamentação normativa. Como adiantado, por muito tempo teve-se a premissa de que em especial no controle principal de constitucionalidade, haveria pouca relevância aos fatos como elementos necessários para a atividade interpretativa. O ponto, inclusive, forneceu o substrato normativo para o entendimento inicial adotado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido da incompatibilidade de instrução probatória nas ações de controle concentrado[6].

Essa premissa, no entanto, foi refutada, a partir da previsão específica das audiências públicas e seus objetivos instrutórios nas Leis nº 9.868/99 (artigo 9º, §1º e artigo 20, §1º) e nº 9.882/99 (artigo 6º, §1º). Colocou-se em evidência que o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e atos normativos não se encerra em mero juízo abstrato de compatibilidade, mas antes depende da verificação dos fatos, a fim de que se possa construir interpretação constitucional adequada, que forneça resposta aderente e responsiva à realidade social e às circunstâncias que conformam o problema jurídico-constitucional em análise.

Trata-se aqui do chamado papel informativo das cortes constitucionais no espaço público. De forma mais específica, ele consiste justamente na promoção do esclarecimento de fatos, a documentação de eventos e a sua valoração, de modo a produzir um relato oficial sobre o quadro fático subjacente ao problema constitucional posto, como, inclusive, afirmado pelo ministro Luís Roberto Barroso, na convocação da audiência pública na ADPF 708. No mesmo sentido, os despachos convocatórios das audiências públicas na ADO 59, ADI 6.590, ADPF 635 e no HC 165.704.

Com efeito, o que se apreende é que o Supremo Tribunal Federal referendou a função instrutória e informativa para as audiências públicas, não obstante o destaque e relevância dada à função democrática dessa fórmula procedimental, de abertura da Corte aos atores sociais ou de ouvida de especialistas[7].

Respostas do tribunal
Como apontado por Marinoni, é preciso pensar no desenvolvimento de uma teoria da prova que alcance o controle de constitucionalidade e o ambiente das cortes constitucionais, e aqui as audiências públicas têm muito a oferecer em termos de engenharia institucional adequada para tal fim.[8]

Nesse sentido, inclusive, o Tribunal está atento às críticas e aberto às experimentações institucionais, adotando novas metodologias no desenho procedimental das audiências públicas, com potencial de oferecer resultados positivos e com um ganho a cada nova experiência.

Como exemplo de práticas inovadoras da Corte, pode-se identificar: (i) a adoção do espaço dialogal ou deliberativo para a interação dos participantes entre si ou entre os ministros e participantes, (ii) a delimitação de temas e questões de modo a evitar sobreposição argumentativa dos participantes, ou mesmo (iii) a formulação de questões prévias que devem ser respondidas como requisito para a atuação, em que a Corte indica à sociedade civil as questões em que entende particularmente relevante o aprofundamento do debate sobre alguns fatos constitucionais específicos (e.g. ADI 5.527, ADPF 403, ADPF 442, ADO 59, ADPF 635 e HC 165.704).

Como se percebe cada vez mais, a metodologia de organização da audiência — e, no final das contas, a preocupação com um devido processo constitucional — importa para a real compreensão da audiência como arena de absorção mais transparente e deliberativa sobre os fatos constitucionais relevantes para o processo decisório, e não só enquanto espaço de abertura dialógica formal do Supremo Tribunal Federal.

Dessa forma, a conclusão é simples: o papel da corte como instituição deliberativa no marco da democracia constitucional exige postura ativa e altiva na fase de coleta de informações e instrutória. Isso significa competir à Corte dialogar diretamente com seus interlocutores e fomentar, de forma consciente, a realização de audiências públicas em suas multifacetadas funções, em especial a probatório. Os resultados alcançados com as experiências institucionais do último ano mostraram a performance deliberativa e o ganho cognitivo necessário para a construção da interpretação adequada e aderente ao mundo factual dos complexos problemas constitucionais.


[1] V. SILVA, Virgílio Afonso da. Pauta, público, princípios e precedentes: condicionantes e consequências da prática deliberativa do STF. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, Brasília, v. 1, n. 1, p. 22-56, jan./jun.2021. pp 40-43

[2] V. MENDES, Gilmar Ferreira. Anotações acerca da apreciação e revisão de fatos e prognoses legislativos perante a Corte Constitucional alemã e o Supremo Tribunal Federal. In: Horbach, Carlos Bastide et al. (Org.). Direito constitucional, Estado de Direito e Democracia. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 254: “Aferição dos fatos legislativos constitui parte essencial do chamado controle de constitucionalidade, de modo que a verificação desses fatos se relaciona intimamente com a própria competência do Tribunal”.

[3] Nesse sentido, ver o seminal e profundo Capítulo VIII do livro Processo Constitucional e Democracia, de Marinoni, intitulado “Os fatos na Corte: a importância da busca da verdade no Estado Constitucional, especialmente para um diálogo válido, digno e possível” In: Marinoni, Luiz Guilherme. Processo constitucional e democracia. São Paulo: RT, 2021, p. 685-812.

[4] Guimarães, Lívia Gil. A participação social no STF: repensando o papel das audiências públicas. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, n. 01, 2020, p. 236-271.

[5] Silva, Virgílio Afonso da. Pauta, público, princípios e precedentes: condicionantes e consequências da prática deliberativa do STF. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, Brasília, v. 1, n. 1, p.22-56, jan./jun.2021. pp 40-43.

[6] ADI 1372, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, j. 14.12.1995, DJ 01.4.2009.

[7] V. Godoy, Miguel Gualano de. Devolver a constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2017. Em especial, o Capítulo III da obra, “Práticas Dialógicas jurisdicional e político-democráticas: limites e possibilidade” (p. 181-224), com aprofundada análise empírica e crítica de todas as audiências públicas realizadas pelo STF desde a pioneira audiência convocada pelo Min. Ayres Britto em 2007 na ADI 3.510 (Lei de Biossegurança) até a ADPF 186 (Cotas).

[8] Marinoni, Luiz Guilherme. Processo constitucional e democracia. São Paulo: RT, 2021, p. 685-686.

Autores

  • é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, professora na pós-graduação do IDP e do Mackenzie/Brasília, pesquisadora do Núcleo de Direito Processual Comparado do PPGD-UFPR e assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal.

  • é advogado, doutorando e mestre em Direito pela UFPR, professor na UnB e pesquisador do Núcleo de Direito Processual Comparado do PPGD-UFPR.

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