Opinião

A formação das comissões de PAD na Lei nº 8.112 e a violação ao princípio

Autor

  • Guilherme Gomes França

    é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Processual Civil pela Escola Superior de Advocacia (ESA) pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG com formação complementar em Direito Administrativo pela FGV-RJ e advogado especializado em agentes públicos em Curitiba (PR).

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5 de março de 2022, 6h33

Quase todas as pessoas que comentam ou são provocadas a comentar a respeito dos servidores públicos, por qualquer razão, acabam por citar, em algum momento, determinados privilégios que esses possuem, como as "jornadas reduzidas" em alguns órgãos da administração pública, as "remunerações altas" para os padrões do país e talvez o mais desejado pela maioria dos trabalhadores: a chamada "estabilidade".

Essa garantia, de fato, está prevista no artigo 41 da Constituição Federal de 1988, aos servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público, após completados três anos de efetivo exercício do cargo. Contudo, embora muitos possam pensar o contrário, existem exceções que permitem a perda do cargo pelos servidores, mesmo aqueles que já são estáveis na carreira.

Isso porque o próprio artigo 41 da Constituição afirma, em seu parágrafo primeiro, que o servidor público poderá perder o seu cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado, mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa ou mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.

Ainda, como visto, uma das possibilidades para que o servidor perca o seu cargo é a imposição da pena de demissão no âmbito de processo administrativo em que lhe seja assegurada a defesa. Esse processo administrativo, chamado de Processo Administrativo Disciplinar (PAD), que no âmbito federal é regulado pela Lei 8.112/90, é conduzido por uma Comissão, comumente chamada de "comissão processante" ou "comissão disciplinar", composta por outros três servidores, designados pela autoridade administrativa competente.

De outro lado, quanto ao princípio do juiz natural, este foi trazido pela Constituição Federal de 1988 nos incisos XXXVII e LIII de seu artigo 5º, os quais dispõem que "não haverá juízo ou tribunal de exceção" e "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente", respectivamente.

A doutrina tradicional subdivide o princípio do juiz natural em alguns planos ou dimensões, que visam resguardar, cada uma delas, distintas garantias endoprocessuais. Contudo, é importante destacar que cada autor formula classificações, planos e dimensões com maior ou menor grau de divergência em sua nomenclatura ou finalidade.

A título de exemplo, o autor Jorge de Figueiredo Dias subdivide o princípio nos planos da fonte, da referência temporal e da competência [1]. A autora Clara Maria Roman Borges, por sua vez, separa-os em planos da fonte, do tempo e da taxatividade [2]. Dentre outras definições, inclusive do direito comparado, este autor entende que a formulação mais clara e objetiva foi aquela realizada pelo jurista Romeu Felipe Bacellar Filho, a qual se transcreve:

"[…] Quanto ao plano da referência temporal, garante-se que ninguém possa ser processado ou julgado por órgão instituído após a ocorrência do fato. Em outros termos, o juiz natural é a autoridade com competência abstratamente predeterminada por lei. Estabelece a proibição dos juízos ou tribunais ex post facto criados especialmente para a resolução de um caso em concreto. O plano da referência temporal liga-se à predeterminação da competência não somente do órgão, mas do agente público a que é cometida a função. A anterioridade da previsão da competência tem por fim evitar a escolha de uma autoridade por motivos subjetivos ou relacionados ao fato em concreto" [3].

É crucial esclarecer que a violação ao princípio do juiz natural aqui analisada refere-se apenas ao plano da referência temporal deste princípio, nos moldes da formulação apresentada acima, ou seja, no que tange à sua finalidade de proibir que um julgamento seja realizado por um órgão constituído depois que os fatos já ocorreram (ex post facto), a fim de evitar uma designação premeditada e tendenciosa dos julgadores para o caso concreto.

A comissão constituída para conduzir os trabalhos no âmbito do PAD, mediante portaria emitida pela autoridade competente, por vezes também chamada de "comissão processante" ou "comissão disciplinar", possui uma enorme responsabilidade, não sendo nenhum exagero dizer que é ela quem definirá o destino do servidor acusado.

Isso porque o artigo 168 da Lei 8.112/90, que dentre outras finalidades, regula o PAD no âmbito federal, dispõe expressamente que o julgamento a ser proferido pela autoridade competente deverá acatar o relatório final elaborado pela comissão, salvo quando contrário às provas dos autos. Por essa razão, em quase todos os casos, a pena aplicada ao servidor é aquela sugerida pela comissão disciplinar em seu relatório.

O problema visceral, contudo, reside no fato de que o caput do artigo 149 da Lei 8.112/90, ao afirmar que o processo disciplinar será conduzido por uma comissão composta por três servidores estáveis, aduz que seus membros, após conhecidos os fatos praticados pelo acusado, serão "designados pela autoridade competente".

Portanto, a Lei 8.112/90, aparentemente, deixa de observar a imprescindível norma trazida pela Constituição Federal e analisada anteriormente, qual seja, o princípio do juiz natural. Ressalta-se, aliás, que referida interpretação tem espaço na doutrina e até mesmo no histórico de decisões do Supremo Tribunal Federal [4].

Assim, para que a tese central seja melhor compreendida, é crucial exemplificar uma situação na qual a autoridade competente para instaurar o processo administrativo disciplinar seja o reitor de uma instituição pública de ensino. Em determinado momento, surge a notícia de que supostas irregularidades foram praticadas por um professor, que coincidentemente possui um antigo e sério desafeto com o reitor, que, por sua vez, será obrigado (artigo 143 da Lei 8.112/90) a instaurar um processo administrativo disciplinar para averiguar os fatos.

No exemplo acima, portanto, de modo que a comissão processante será composta por membros escolhidos "a dedo" pelo reitor da instituição, esse poderá simplesmente indicar os integrantes que lhe convém, inclusive outros professores que possuem igualmente um desafeto com o acusado, motivo pelo qual poderão fazer valer seus interesses pessoais, impondo a pena de demissão ao acusado, caso assim desejem. Eis a seriedade do problema ora analisado.

Portanto, conclui-se que o princípio do juiz natural, que também possui natureza de norma constitucional, é notadamente violado pelo artigo 149 da Lei 8.112/90 e sua metodologia para a criação de comissões disciplinares, fazendo com que essas comissões possam ser facilmente manipuladas pela autoridade competente, que detém a discricionariedade para eleger os membros que irão conduzir os trabalhos, abrindo uma ampla margem para a imparcialidade e para o direcionamento pessoal da decisão.

Inclusive, além do princípio do juiz natural em sua referência temporal, o simples fato de uma autoridade poder escolher de forma discricionária os julgadores de um processo específico já demonstra uma lógica processual praticamente nitidamente imparcial. Salvo melhor juízo, em nenhum outro processo acusatório submetido à ampla defesa e ao contraditório existe essa escolha arbitrária do julgador, sobretudo em momento posterior ao conhecimento do fato e do acusado.

Por essa razão, a Lei 8.112/90, mesmo no caso em que seja cumprida formalmente, não possui o condão de tornar o julgamento do processo disciplinar materialmente imparcial e adequado, uma vez que peca no momento mais crucial: o da composição dos julgadores, de forma que todos os atos processuais podem conter uma falsa e aparente imparcialidade, quando na verdade, para a comissão e para a autoridade julgadora, a decisão desfavorável ao acusado já está tomada há tempos.

Portanto, se com a análise dos argumentos trazidos até aqui, entenda-se que ainda não se pode afirmar taxativamente que o artigo 149 da Lei 8.112/90 é inconstitucional por violar o princípio do juiz natural, expresso nos incisos XXXVII e LIII do artigo 5º da Constituição Federal, ao menos é incontestável a obrigação dos juristas de suscitar o conflito aparente entre essas normas e o direito da sociedade de obter uma lei mais segura a esse respeito.

Esse direito existe sobretudo diante da relevância prática do tema. Não se trata de uma violação à lei que resulta apenas em elucubrações acadêmicas. Para saber os efeitos desastrosos dessa provável inconstitucionalidade, basta conversar com o servidor demitido do serviço público, após décadas de trabalho, e que tenha sido julgado por colegas (e desafetos) escolhidos de maneira discricionária e por uma autoridade arbitrária.

Sendo assim, a conclusão razoável é de que a legislação atual, sobretudo a redação do artigo 149 da Lei Federal n° 8.112, formulada na década de 1990, precisa e deve ser urgentemente renovada ou complementada, acompanhando os diversos avanços processuais visando um processo mais justo e eficiente que tivemos nos últimos anos, a exemplo de algumas normas trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015.

Por fim, uma proposta legislativa razoável deveria caminhar no sentido de tornar obrigatória aos órgãos públicos a criação de comissões disciplinares permanentes e compostas por membros titulares, os quais devem receber a capacitação jurídica mínima, que poderia ser fornecida, no âmbito federal, por procuradores federais ligados à Advocacia-Geral da União (AGU), por exemplo.

O fato é que sem uma completa reformulação do atual sistema citado acima, ao servidor público restará torcer para não ser investigado em um processo administrativo disciplinar ou ao menos possuir boas amizades profissionais, o que aumentaria as chances de ser julgado por uma comissão que lhe seja favorável. Um cenário trágico real e trágico.


[1] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1974, p. 322-323.

[2] O Incidente de Deslocamento de Competência e o Princípio do Juiz Natural. Raízes Jurídicas, Curitiba, v.4, nº 1, jan./jun. 2008, p. 115 apud BACELLAR FILHO, 2013, p. 397.

[3] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2013 p. 398-399.

[4] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.423.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 177313-9. REL. MIN. CELSO DE MELLO, julgado em 23/04/1996 e publicado no DJ em 17/05/1996. Disponível em:https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/744176/agregno-agravo-de-instrumento-ai-agr-177313-mg. Acesso em: 19 de janeiro de 2022.

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  • é advogado em Curitiba, pós-graduando em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Advocacia (ESA), em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e formação complementar em Direito Administrativo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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