Opinião

A Lei Maria da Penha 15 anos depois...

Autor

  • Sara Gama Sampaio

    é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia mestranda em Segurança Pública Justiça e Cidadania pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) especialista em Ciências Criminais pela Universidade Estadual da Bahia (Uneb) membra colaboradora do Comitê Gestor do Cadastro Nacional de Violência Doméstica e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

1 de março de 2022, 14h13

Desafiamos todas as pessoas que nos leem a nos contar sua história de vida, caso nela possa afirmar que em nenhum momento dessa existência tenha vivenciado, conhecido, presenciado, lido matérias, assistido a noticiários, ouvido dizer sobre ao menos uma mulher que sofreu algum tipo de violência.

Esse desafio foi lançado já faz algum tempo e ainda não foi vencido. Isso porque, infelizmente, asseguramos que a grande maioria desses leitores terá a infeliz lembrança de algum fato desse jaez ocorrido, inclusive, dentro de um círculo relativamente próximo, inserido na realidade de um país que é considerado o quinto no mundo em número de agressões às mulheres. Segundo os dados do "Anuário Brasileiro de Segurança Pública", publicado em 15 de julho de 2021, na pandemia, uma a cada quatro mulheres maiores de 16 anos revelou ter sido vítima de algum tipo de violência, o que perfaz cerca de 17 milhões de mulheres no Brasil.

Ainda de acordo com a mesma fonte, foram 666 feminicídios contabilizados no primeiro semestre de 2021, justamente no ano em que comemoramos o aniversário de 15 anos da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). A referida norma se revelou um verdadeiro marco civilizatório na vida das mulheres brasileiras. Trouxe à lume agressões que permeiam incontáveis lares e relacionamentos, independentemente de idade, etnia, raça, condição cultural, orientação sexual ou extrato social dos envolvidos.

Assim, podemos afiançar que muitos irão se recordar de brigas envolvendo casais, em público ou no recôndito das casas, ofensas, gritos, empurrões, importunações sexuais, tapas, chutes, feminicídios… Porque a realidade mostra que cenas assim são vistas em qualquer lugar do país e que essas notícias povoam diariamente a pauta de imprensa, mídia e redes sociais.

O fato é que o status secundário que se atribui à mulher retira delas qualquer poder para mudar a realidade de humilhações e de violência a que são cotidianamente submetidas. Se ninguém vê nada de anormal em uma mulher apanhar do companheiro, sofrer importunação sexual de estranhos nos transportes públicos, ser estuprada em razão de ter se vestido "convidativamente" na balada, se entendemos ser normal o fato de que 86% das brasileiras sofram algum tipo de assédio em espaços urbanos, ninguém vê razão para modificar essa realidade.

Para o antropólogo americano especialista em masculinidade na Universidade Brown, nos Estados Unidos, Mattew Gutman: "É muito comum o uso de termos como genes, hormônios ou hereditariedade para explicar ou desculpar o comportamento humano. Enquanto pensarmos que comportamentos masculinos como agressividade ou apetite sexual são biológicos, perderemos o foco das questões sociais e culturais que precisam ser resolvidas. Não podemos aceitar o mau comportamento masculino".

Por outro lado, ainda hoje, características negativas como inabilidade, falta de inteligência, superficialidade, consumismo, futilidade e interesse financeiro são prontamente atribuídas às mulheres, que são constantemente alvos de piadas e de discriminações, até mesmo nos meios culturais, literários e midiáticos.

O que se propaga sobre a figura feminina é uma descrição que persiste ora na mulher frágil, sempre em busca de um homem para protegê-la, ora na mulher sensual e ardilosa, pronta para satisfazer o apetite sexual masculino em troca de algum benefício.

Destaque-se que, mesmo passados 15 anos desde que a Lei Maria da Penha endossou os conceitos humanistas relacionados à mulher e abriu caminho para outras normas específicas que se ajustassem a essa percepção, os direitos fundamentais femininos ainda seguem claudicantes, porém, ainda que lentamente, tendemos à mudança.

Em setembro de 2016, a conhecida modelo e empresária Luiza Brunet, em uma entrevista concedida para a jornalista Patrícia Zidan (Revista Cláudia, setembro/2016, p. 86) afirmou que "não esperava ser agredida pelo homem que eu amava". As páginas seguintes revelam a epopeia de uma mulher que, a despeito da fama e da beleza, como qualquer outra mulher, viu-se assustada e ferida por dentro e por fora, apresentando na face a marca deixada por um olho roxo e o corpo machucado com quatro costelas quebradas.

Naquela ocasião, em que a Lei Maria da Penha já havia alcançado uma década, Luiza narrou a saga que a conduziu ao Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista, levando consigo sentimentos como surpresa, decepção e autoestima abalada. Nessa entrevista, ao ser perguntada sobre qual o conselho que daria para outras mulheres que passaram pelo mesmo problema, após enxugar uma lágrima, Luiza respondeu, sem titubeios: "Olha, eu ainda estou superando. Você também pode. Tem que prestar atenção no limite que você suporta e se tocar: é hora de parar. Não importa sua idade nem se tem condições físicas e financeiras. Seja durona para encarar a perda de um amor, de um casamento. A partir desse momento, não permita que a agressão se repita. Se tiver crianças, peça para ficar por um tempo na casa de alguém. Toda mulher tem um familiar, uma amiga. Faça qualquer coisa. Você só não pode entrar em depressão, porque romper com a violência requer prontidão. E não dá para transferir para terceiros. É com você. Se não tiver emprego, profissão, arrume algo para sobreviver. Há mil formas, mesmo sem diploma. Melhor sair viva em tempo de recuperar a autoestima. Eu fiz isso. Sei que tenho uma situação estruturada, posso pagar um advogado. Mas existem justiça gratuita, defensores pagos pelo Estado e abrigos públicos para um socorro emergencial. Violência não é só furar um olho. Você não merece ser chamada de feia, gorda ou ouvir que a sua comida é uma merda. Também não merece socos, chutes… a morte. Reagir será bom para você e seus filhos. Agora, pare de chorar, culpar o parceiro, o mundo. A Justiça está aí para punir o agressor. A você cabe enfrentar e partir para outra".

Passados mais de cinco anos, podemos dizer que estamos assistindo a uma nova dinâmica nascida no âmago da sociedade, que começa a dar vislumbres de que buscamos a tomada de nossos direitos sob um patamar mais igualitário, oportunizando a criação de uma coletividade na qual a subjugação feminina possa ser extirpada. Sim, estamos despertando.

Percebemos a existência de movimentos, agrupamentos, corpos sociais, reuniões, debates comunitários, que, pouco a pouco, agregam-se em prol desse objetivo, formando um celeiro fértil de ideias e soluções. Essa consciência grupal se estende a cada dia, impulsionando um amadurecimento da sociedade e seu caminhar em busca de uma democracia cada vez mais sólida, na qual o papel da mulher seja exercido na mesma linearidade dos homens. Nessa senda, é inegável que estamos traçando um caminho que faça o contraponto diante das mórbidas estatísticas que nos são apresentadas.

Em recente conversa mantida com Luiza Brunet [1], que agora, além de modelo e empresária, tornou-se também uma ativista pela causa das mulheres e causas humanitárias, ela revelou: "Quando eu decidi fazer a denúncia em 2016, fui até o Ministério Público de São Paulo, onde fui muito bem acolhida e amparada pelo sistema de Justiça. Eu tive sorte que nem todas as mulheres têm, mas é possível. Eu acho muito importante que a mulher tome essa iniciativa de fazer a denúncia quando ela se sente agredida ou violentada de alguma forma, principalmente se a agressão é física. Hoje em dia também tem a agressão psicológica, considerada uma agressão importante, e a importunação sexual. Enfim, eu acho que a gente tem muitos ganhos. A gente sabe que a Lei Maria da Penha é uma lei superimportante e a gente tem que usá-la a nosso favor. O processo é muito doloroso, difícil. O meu demorou quatro anos e meio para que o meu agressor fosse condenado pela Lei Maria da Penha e isso dá uma chancela muito grande para nós mulheres, que somos vítimas desse sistema, somos vítimas desses homens agressores. É um conforto saber que mulheres têm sido abençoadas com esse reconhecimento das agressões sofridas e elas conseguem se reerguer, recuperar sua autoestima e seguir sua vida. Eu acho que a mulher não deve nunca, jamais, desistir de fazer a denúncia por nenhum motivo(…) Ela deve buscar a Justiça, porque a justiça não vem à porta dela, e ela tem que ter paciência porque realmente a Justiça é muito lenta…".

O diálogo foi contundente. Luiza narra um acolhimento que não é uniforme para todas as mulheres. Fala da lentidão dos processos, mas também revela o seu regozijo com os avanços que já foram alcançados.

Ela nos leva a refletir: diante dessa prática, como podemos proteger as cidadãs brasileiras? Polícia, Judiciário, Ministério Público, cada um no seu papel, envidam hercúleos esforços que, entretanto, não têm se mostrado suficientes. Precisamos de união, precisamos de parcerias, poderes unidos e coesos na busca de soluções que se voltem para aniquilar tanta agressividade que se comete contra as mulheres.

Urge que tomemos providências firmes e eficazes contra essa violência que se revela uma verdadeira tragédia para a nação. Assim, se por um lado assistimos a uma população mais ávida de respeito, segurança e dignidade, por outro lado nos deparamos com uma crescente violência que se volta contra as mulheres, o que nos faz refletir sobre o que devemos fazer no intuito de não mais aceitar tantas mortes e agressões.

Os sábios dizeres de Bobbio continuam sempre atuais quando afirma que "não será inútil lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem começa afirmando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo".

Depois de 15 anos, sigamos avante!!!

 

Referência bibliográfica
SAMPAIO, Sara Gama. "Quem protege nossas vidas?" A percepção das mulheres em situação de violência doméstica sobre a atuação do sistema de justiça e segurança pública — comarca de Salvador/BA. 17 de fevereiro de 2017.


[1] Entrevista concedida por Luiza Brunet via aplicativo WhatsApp a Sara Gama Sampaio em 23 de fevereiro de 2022.

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  • é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, mestranda em Segurança Pública, Justiça e Cidadania pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialista em Ciências Criminais pela Universidade Estadual da Bahia (Uneb), membra colaboradora do Comitê Gestor do Cadastro Nacional de Violência Doméstica e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

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