Opinião

Sobre a extensão das peças processuais na prática civil

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28 de maio de 2022, 6h05

Tenho visto nas mídias sociais muitas opiniões e aconselhamentos para os advogados escreverem pouco em suas petições. São perfis identificados como de juízes, promotores, professores e até advogados, todos eles que, nas horas vagas (ou não) não hesitam em demonstrar seus talentos como twitteiros, facebooker, instragramers ou tiktokers.

Autênticos ou não esses perfis, o assunto é atual e merece reflexão.

Há muitas opiniões, algumas até oficiais, como a do Projeto Petição 10, Sentença 10, lançado por alguns tribunais, para cuja adesão os foi disponibilizado até um modelinho de petição, como cortesia aos advogados. Em outros casos, as sugestões nascem de supostas experiências com petições longas, confusas, difíceis de ler. E aí tem de tudo: juiz que tuíta recado a advogado pedindo que façam petições expondo apenas os fatos, em cinco laudas; advogado tuiteiro que angaria seguidores com piadas e maldizeres a respeito da advocacia; professor de língua portuguesa no Instagram usando a máxima de que o advogado conta os fatos e o juiz entrega o direito; até curso de recurso especial em cinco laudas como fórmula a quem deseja superar os óbices ao acesso ao Superior Tribunal de Justiça.

O que mais intriga e causa perplexidade são as críticas e as sugestões vindas de advogados e juízes. Logo eles, os que lidam com os processos judiciais diariamente! Logo aqueles que deveriam saber, melhor que ninguém, que uma tal proposta de limitação de texto não é bem-vinda ou palpável!

Por isso, este texto está centrado nas atividades de estar em juízo na qualidade de advogados das partes e de julgador, pois é preciso que se compreenda — ou que se lembre — que o exercício da advocacia se dá de modo bem diferente de como se exerce a magistratura.

Veja-se a questão pelo lado técnico-jurídico; deixe-se de lado o humor da moda dos blogueiros jurídicos ou descontentamento com a quantidade de trabalho que a profissão dá a alguns; tenha-se como referência a realidade do processo civil e a opinião deverá ser bem diferente.

Primeiro, é necessário entender que o advogado que ajuíza a ação possui o ônus de expor os fatos da causa e de desenvolver os fundamentos jurídicos para convencer o juiz a atender o seu pedido. O juiz, por outro lado, possui o dever de resolver o caso com fundamentos suficientes, seja para acolher ou para negar o pedido. Embora se valham dos mesmos métodos e técnicas, o advogado possui um ônus argumentativo; o juiz, um dever de fundamentação adequada, e daí já se vê uma marcante diferença.

A atividade de persuadir é diferente da de fundamentar, ainda que no processo judicial as duas tenham em comum a argumentação jurídica.

O advogado do autor precisa apresentar o maior número de fundamentos possíveis e coerentes, pois se um deles não for acolhido, haverá outro para submeter ao juiz. Se o autor desenvolve apenas um argumento e o pedido é rejeitado, não haverá chance para expor novos fundamentos naquele mesmo processo. Se existir outra causa de pedir não posta na inicial, o máximo que talvez o ele possa fazer é ajuizar outra ação, se houver tempo, mas isso é algo nada produtivo, eficaz ou econômico.

Tome-se como exemplo o clássico caso de pedido de anulação de ato jurídico pelos fundamentos de incapacidade do agente, pela ilicitude do objeto e pela inobservância da forma prevista na lei. O advogado, para melhor defender o direito do autor e, claro, para aumentar as chances de vitória na demanda, alegará os três vícios, fundamentando cada um deles, ainda que tenha convicção de que apenas um bastaria. De outro lado, para decidir pela nulidade do ato, o juiz precisa acolher apenas um argumento. Se o juiz se convencer a respeito da incapacidade do agente, à sentença de procedência bastará este fundamente. Não haverá necessidade, ou mesmo utilidade, na apreciação das demais causas de nulidade do ato.

Observe-se que aqui o advogado precisa desenvolver sua petição de modo diferente de como o juiz escreve sua sentença. Provavelmente, a inicial será mais extensa do que a sentença, e isso é uma necessidade do próprio processo civil.

É o processo civil, tal como disposto na legislação ou interpretado nas obras jurídica e na jurisprudência dos tribunais, que revela que o famoso brocardo "Dá-me os fatos que eu te darei o direito" pode não passar de romantismo jurídico. Não é rara situação em que a confiança nessa máxima jurídica se volta contra o advogado que a utiliza. Pior: aquele juiz que vai às redes sociais recomendar ao advogado que exponha apenas os fatos, em peça singela e diminuta, é o mesmo que indefere a petição inicial por inépcia e extingue o processo por ausência de exposição dos fundamentos jurídica.

A verdade é que não há uma tal permissão para o autor expor apenas os fatos em sua petição inicial. Muito pelo contrário: para a regularidade da petição inicial, os fatos devem estar acompanhados da demonstração de uma repercussão jurídica que mereça proteção ou qualquer outra espécie de tutela jurisdicional. O autor precisa apresentar os fatos e uma consequência desses fatos no direito. Senão, a petição será considerada inepta, a merecer, no melhor dos cenários, emenda, ou, no pior, indeferimento.

Ultrapassadas as formalidades necessárias à elaboração da petição inicial, há ainda que se observar os encargos que recaem sobre o réu, a começar pelo conhecido ônus da impugnação específica. O réu precisa rebater todos os fatos alegados na inicial pelo autor. Caso não o faça, será considerado verdadeiro aquilo que não for refutado expressamente ou que não decorrer logicamente da defesa em sua integralidade.

A defesa precisa ser específica. O réu tem o ônus de negar cada um dos argumentos de fatos alegados pelo autor, pois, como regra, não é possível defesa por negativa geral.

Além disso, a defesa do réu deve ser completa. O réu deve atender ao princípio da eventualidade e alegar, de uma só vez, na contestação, todas as defesas que conseguir apresentar contra o autor, sob pena de preclusão, exceto quanto às hipóteses de direito ou fato superveniente e matérias de ordem pública.

Veja-se que o advogado das partes não pode deixar tratar dos fatos da causa. E essa exposição aparecerá por escrito, em suas petições. Do contrário, haverá consequências processuais, as quais podem levar à derrota no processo. O juiz, entretanto, não está obrigado a considerar todos os fatos da causa. Desde que sua decisão esteja devidamente justificada e coerente, poderá a decisão se apoiar apenas nos fatos relevantes e comprovados nos autos.

Em algumas situações, aliás, o juiz não está nem mesmo obrigado a expor os fatos  embora tenha que considerá-los, claro. É o que acontece, por exemplo, nos juizados especiais. A lei considera suficiente que a sentença contenha o "breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência" e permite a substituição do acórdão da turma recursal pela súmula do julgamento, quando a sentença for mantida "pelos próprios fundamentos".

Nas fases posteriores à decisão, o tema fica mais áspero para os advogados e deles é exigido o cumprimento de mais requisitos para a escrita de suas petições. De outra banda, os deveres do julgador, quanto ao ato de decidir, aqui se atenuam, o que acontece não exatamente por obra da legislação, mas pelo "fenômeno" que os processualistas chamam de jurisprudência defensiva.

O campo recursal sempre foi muito minado de características, princípios, ônus e deveres, dos quais sempre se avistou uma causa de inadmissibilidade. E como no nosso sistema o processo se desenvolve predominante mediante a escrita, é na petição do advogado que o cumprimento desses encargos irá aparecer.

Pense-se, para começar, no efeito devolutivo dos recursos. O exemplo figurado anteriormente ilustrará bem a problemática: imagine-se que o juiz tenha julgado procedente o pedido do autor, considerando a incapacidade do agente. O réu irá recorrer e no seu recurso provavelmente irá repetir a tese já apresentada na contestação ou em outras peças. Ao réu cabe demonstrar, para convencer os membros do tribunal, que a sentença contém erro de julgamento e, para isso, precisará escrever novamente a tese de defesa.

Aqui todo cuidado é pouco, porque o réu não utilizará o chamado fundamento per relationem, técnica atualmente adotada e defendida vigorosamente por alguns julgadores. Não, não, não! A ausência de fundamento do recurso levará à inadmissão por irregularidade formal. E é perigoso até mesmo repetir as razões de outra peça e o tribunal considerar violado o princípio da dialeticidade, como ocorre no Tribunal Regional da 1ª Região, embora a jurisprudência do STJ esteja firmada em sentido contrário, admitindo essa repetição, desde que coerente com a impugnação da decisão.

E, se o recurso for dirigido aos tribunais superiores, o campo é ainda mais instável, pois a jurisprudência tem agregado, a cada dia, requisitos de admissibilidade aos recursos excepcionais, até mesmo naquelas hipóteses em que o Código diz que prevalece a liberdade das formas e a primazia da resolução do mérito.

Com todo o respeito aos autores dos cursos online que pretendem ensinar os advogados a fazerem recurso especial com cinco fundamentos e apenas cinco páginas, parece que essa redução nem sempre é possível — ou quase nunca será, para ser bem realista.

Lembre-se que os recursos especial e extraordinário possuem requisitos formais específicos, a começar pela demonstração do cabimento, e este, diferentemente do que ocorre nos recursos ordinários, obedece a uma espécie de tipo complexo. É que, se da sentença cabe apelação — simples assim —, do acórdão não cabe recurso especial ou extraordinário, pura e simplesmente. É preciso que o acórdão tenha sido proferido nas circunstâncias específicas dos artigos 105, III, e 102, III, da Constituição Federal. Na petição recursal, o recorrente deverá expor o fato e o direito, demonstrar o cabimento e expor as razões do pedido de reforma ou de invalidação da decisão recorrida. E, para o recurso extraordinário, ainda é preciso um capítulo próprio para demonstrar a repercussão geral.

E mais: se o recurso for o especial com fundamento no dissídio jurisprudencial, o famoso REsp pela alínea "c", a parte ainda terá que fazer o cotejo analítico da decisão recorrida e dos paradigmas apresentados. Isso significa que a parte necessita escrever o seu recurso e comparar o acórdão recorrido com outros acórdãos de tribunais que tenham decidido, de modo diferente, casos fática e juridicamente iguais. E é o STJ mesmo que, em seus reiterados julgamentos, esclarece que a parte deverá "[…] proceder ao cotejo analítico entre os arestos confrontados e transcrever os trechos dos acórdãos que configurem o dissídio jurisprudencial, sendo insuficiente, para tanto, a mera transcrição de ementas".

E não vale transcrever apenas as ementas, apesar de essa ser a técnica adotada pelos tribunais para proferir suas decisões, apesar de isso constituir flagrante violação ao dever de fundamentação previsto no §1º do artigo 489 do CPC. Sobre isso, aliás, vale a leitura de Levando os padrões decisórios a sério, do professor Alexandre Freitas Câmara.

Os recursos excepcionais possuem sistema de admissibilidade desdobrado. São interpostos perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida e a este compete o juízo de admissibilidade. Não admitido o recurso, a parte deverá interpor agravo ao STJ/STF ou agravo interno para o próprio tribunal, conforme o caso.

Pois a decisão que inadmite o recurso precisa ser impugnada especificamente, ponto a ponto, vale dizer, sob pena de não conhecimento do agravo. Assim é a jurisprudência dos tribunais superiores, a qual, deve-se reconhecer, faz sentido, pois, havendo mais de um fundamento, a hipótese é de decisão subjetivamente complexa e deve a parte remover todos os obstáculos apresentados pelo tribunal para ver o seu recurso apreciado.

A questão é que a parte precisará desenvolver seus fundamentos em petição escrita. Se a inadmissão ocorreu por um fundamento apenas, sem complexidade, talvez uma página seja suficiente ao agravo. Entretanto, dependendo do número de fundamentos e da complexidade da causa, um par de folhas pode não ser suficiente.

Veja-se que é necessário analisar as coisas pelo lado de dentro do mundo real do processo judicial. Será em cada caso concreto, em cada petição que se definirá se um parágrafo é necessário ao singelo pedido de prioridade de tramitação, uma página para a especificação e justificação das provas que a parte pretende produzir, cinco páginas para uma petição inicial de reparação de danos ao consumidor ou algumas mais para um recurso especial pelas alíneas "a" e "c".

Fica, por fim, o meu registro e uma explicação àqueles que pensam contrário: aqui não se defende o uso de petições extensas, como se isso fosse um padrão de uma advocacia requintada; aqui não se afirma que o advogado deva escrever dissertações, com dezenas de obras de referência, rebuscadas menções a brocardos em latim e vinte páginas de transcrição para pedir uma tutela antecipada. Não é esse o ponto!

A problemática está nas críticas, muitas vezes deselegante, ácidas e gratuitas, especialmente aquelas feitas por quem não conhece a realidade do processo ou por quem objetiva apenas reduzir acervo processual à custa da qualidade do trabalho do advogado, e com prejuízo ao direito da parte. Parece que se quer resolver o grande problema da relação número de juízes x quantidade de processo com diminuição do tempo de leitura e padronização de peças, algo na linha do que Lênio Streck denominou "Justiça 'self-service', fast food e UberEatsJus" [1].

Preocupam a massificação da desinformação na sociedade conectada e as tentativas de desestímulo ao exercício sério da advocacia, feitas por advogados ou por quem se diz praticar a advocacia em mídias sociais de grande alcance.

Quanto ao sofrimento ao ler uma peça mal escrita, o problema também não se resolve diminuindo a quantidade de texto. Se a peça é ruim ou confusa, o problema possivelmente está na formação de quem escreveu. A vida do leitor pode ficar difícil para entender uma frase e não será a menor quantidade de páginas que fará o texto inteligível. Para isso, o remédio é qualificação.

E, claro, a solução ao problema da escrita além do necessário também é ter bom senso e confiança: bom senso de quem escreve e de quem lê; confiança de que às partes bastará expor os fatos e que o juiz aplicará, corretamente, o direito.


[1] Distopia: os algoritmos e o fim dos advogados: kill all the lawyers! ConJur, disponível em "shorturl.at/vxS38".

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