Opinião

Extensão e profundidade da cognição no agravo de instrumento

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27 de maio de 2022, 19h23

Uma breve pesquisa jurisprudencial sobre Agravo de Instrumento no Tribunal de Justiça de Goiás, onde advogo, revelará ao pesquisador uma noção conceitual curiosa sobre a cognição no tipo de recurso, o que pode surpreender muitos estudiosos sobre o tema.

De acordo com a jurisprudência consolidada do TJ-GO — consolidada porque reproduzida em praticamente todos os julgamentos de Agravo de Instrumento , o AI seria um recurso secundum eventum litis, o que significa, nos dizeres das decisões, que é "hábil tão somente a ensejar o exame do acerto ou desacerto do que foi decidido pelo juízo singular, não cabendo, de outro lado, ao juízo ad quem antecipar-se na apreciação de matéria ainda não submetida ao crivo daquele, sob pena de suprimir um grau de jurisdição" [1].

Esse conceito revela, em verdade, uma concepção sobre a cognição no Agravo de Instrumento, o que me levou ao estudo da matéria com o objetivo de verificar 1) se o Agravo é recurso secundum eventum litis, e em que medida isso se daria, e 2) qual a efetiva extensão e profundidade da cognição no Agravo de Instrumento, o que implica a análise de quais matérias de fato e/ou de direito podem ser devolvidas ao juízo ad quem.

Agravo de instrumento secundum eventum litis?
O primeiro objetivo deste artigo é lançar luzes sobre a imprecisão conceitual da referência ao Agravo de Instrumento como recurso secundum eventum litis. É que o conceito de secundum eventum litis não tem absolutamente qualquer relação com aspectos da extensão e da profundidade da cognição no Agravo de Instrumento. A referência a secundum eventum litis, nesse contexto, portanto, é claramente equivocada.

Secundum eventum litis é normalmente traduzido por "segundo o resultado do processo", e pode até fazer referência a recursos, desde que diga respeito a uma hipótese de cabimento que somente permite a interposição do recurso se o resultado da decisão for aquele pré-determinado pela legislação. Exemplo disso é o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança de competência originária de Tribunal, o qual é cabível quando a decisão for denegatória (artigo 102, II, "b" da Constituição Federal). Isso significa que o Recurso Ordinário, nessa hipótese, é um recurso secundum eventum litis porque seu cabimento depende do resultado da decisão: se a decisão for denegatória, o recurso será cabível; se a decisão for concessiva da segurança, o recurso não será cabível [2].

O secundum eventum litis também é bastante estudado no tópico da coisa julgada nas ações coletivas, tendo em vista que no chamado microssistema do processo coletivo a coisa julgada material só se forma, em regra, se a demanda for julgada procedente, ou seja "segundo o resultado do processo". Por isso é muito comum encontrar na doutrina sobre processo coletivo a referência à "coisa julgada secundum eventum litis".

Daí porque é necessário cuidado ao se referir ao Agravo de Instrumento como recurso secundum eventum litis, porque boa parte de suas hipóteses de cabimento não dependem de um resultado específico da decisão agravada. O caput do artigo 1.015 do Código de Processo Civil, quando diz que "cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre (…)", não deixa dúvidas de que o cabimento do Agravo de Instrumento depende da matéria tratada na decisão, e não do resultado específico do pronunciamento judicial, embora alguns incisos, se bem analisados, indiquem a necessidade de um determinado resultado para que o Agravo seja cabível.

Cabe, por exemplo, Agravo de Instrumento quando a decisão versar sobre tutela provisória (artigo 1.015, I, CPC), independentemente se a decisão concede, modifica ou revoga a tutela. Da mesma forma, a decisão sobre redistribuição do ônus da prova, independentemente do resultado, será impugnável pela via do Agravo de Instrumento (artigo 1.015, XI, CPC).

Por outro lado, as hipóteses previstas nos incisos III, V e VIII do artigo 1.015 indicam um resultado específico para que seja cabível o Agravo de Instrumento, de modo que nesses casos seria possível falar em recurso secundum eventum litis. No inciso III exige-se a rejeição da alegação de convenção de arbitragem [3], no inciso V exige-se a rejeição do pedido de gratuidade ou acolhimento do seu pedido de revogação, e no inciso VIII exige-se a rejeição ao pedido de limitação do litisconsórcio. A rigor não cabe Agravo de Instrumento contra decisão que acolhe pedido de gratuidade ou rejeita o pedido de revogação, bem como não cabe Agravo de Instrumento contra decisão que acolhe pedido de limitação do litisconsórcio, a não ser que se defenda uma interpretação extensiva dessas hipóteses de cabimento.

Assim, se não é possível rejeitar totalmente a noção de que o Agravo de Instrumento é um recurso secundum eventum litis, porque, como visto acima, ele pode o ser, ao menos é preciso não confundir a noção conceitual de secundum eventum litis com a extensão e profundidade da cognição no Agravo de Instrumento.

Extensão e profundidade da cognição no agravo de instrumento
Conforme visto acima, não basta a conclusão de que o Agravo de Instrumento pode ser secundum eventum litis para que os problemas tenham sido solucionados, na medida em que o Tribunal de Justiça de Goiás utiliza a expressão secundum eventum litis em uma acepção que parece se referir à extensão e à profundidade do efeito devolutivo, o que significa, ao fim e ao cabo, estabelecer limites à cognição no Agravo de Instrumento.

De fato, o recurso de Agravo de Instrumento — como, aliás, quase todas as outras espécies recursais, com a ressalva dos Embargos de Declaração —  devolve ao juízo ad quem o exame da matéria decidida a fim de que o Tribunal diga se a decisão foi acertada e deve ser mantida, ou se a decisão contém equívocos e deve ser reformada ou cassada, ou ainda se a decisão é parcialmente acertada, hipótese em que poderá haver reforma parcial da decisão. Até aqui, nada além do óbvio.

É evidente que a matéria devolvida ao Tribunal deverá ser aquela que foi objeto da decisão interlocutória recorrida. Seja uma decisão que trate da concessão de uma tutela provisória, desconsideração da personalidade jurídica redistribuição do ônus da prova, etc., o Agravo irá se limitar a impugnar o conteúdo dessas decisões e o Tribunal irá se limitar a reexaminar a matéria nos limites daquilo que o juízo a quo decidiu, sem ir além do que foi decidido e do que foi objeto de conhecimento.

Mas existem hipóteses em que o Tribunal pode ir além do que foi decidido e além do que foi objeto de conhecimento.

Em primeiro lugar, o efeito devolutivo do Agravo de Instrumento utiliza-se, por empréstimo, do artigo 1.013 do Código de Processo Civil, que dispõe sobre o efeito devolutivo do recurso de Apelação [4]. É certo que a matéria devolvida será aquela objeto de decisão [5], porém o Tribunal poderá conhecer de matérias cognoscíveis de ofício que não foram examinadas pelo juízo a quo, tais como questões atinentes à admissibilidade do próprio processo (legitimidade das partes, interesse de agir, etc) [6], o que aliás consta expressamente no artigo 485, §3º do Código de Processo Civil.

Isso significa que o Tribunal pode, por exemplo, extinguir o processo sem resolução de mérito em Agravo de Instrumento interposto pelo próprio autor contra decisão que indeferiu tutela provisória, caso se verifique que o autor carece de interesse processual, ou que é parte ilegítima [7]. O Tribunal, aliás, pode fazer isso até mesmo de ofício, desde que, é claro, dê às partes a oportunidade para que se manifestem sobre a questão.

A qualquer tempo, portanto, o Tribunal pode, em Agravo de Instrumento, de ofício ou mediante provocação, pela profundidade do efeito devolutivo, conhecer das matérias de ordem pública (ou cognoscíveis de ofício). Essas matérias podem ser suscitadas tanto pelo agravante quanto pelo agravado, como podem ser conhecidas de ofício, e caberá ao Tribunal decidir a matéria, ainda que a decisão agravada não contenha capítulo explícito sobre a questão. Assim, em mais um exemplo, se um Agravo de Instrumento é interposto contra decisão que verse sobre a redistribuição do ônus da prova, é possível que a demanda seja extinta sem resolução de mérito no julgamento do Agravo, sem que o juízo a quo tenha se pronunciado sobre a matéria. Nisso não há qualquer supressão de instância que macule de nulidade a decisão do Tribunal ad quem.

Além dessas hipóteses, não se pode excluir a possibilidade de que a parte que interpõe o Agravo de Instrumento suscite matérias de fato e de direito não apreciadas pelo juízo a quo. Embora isso deva ser uma exceção, justamente para não se incorrer em supressão de instância, há uma hipótese clara em que se admite ao agravante impugnar uma decisão com alegações de fato e de direito que não foram apreciadas pelo juízo a quo: o Agravo de Instrumento interposto pelo réu contra a decisão que concede tutela provisória antes da citação.

Se a parte ré não foi ouvida antes da prolação de decisão que concede a tutela provisória, não é possível limitar a cognição no Agravo de Instrumento apenas aos elementos apresentados pelo autor na sua petição inicial e o eventual não preenchimento dos requisitos sob essa limitada perspectiva, sob pena de forçar o réu a argumentar contra o preenchimento dos requisitos para a concessão da tutela utilizando-se apenas dos elementos de prova apresentados pelo próprio autor, sem direito a acrescentar as suas próprias provas. O réu terá direito a apresentar ao Tribunal a sua versão dos fatos e as suas provas, e com base nelas rebater os argumentos do autor e da decisão agravada acerca da presença dos requisitos para a concessão da tutela provisória.

Não admitir essa ampliação cognitiva nessa hipótese específica significaria violar o direito ao contraditório e ampla defesa do réu, ainda que seja possível e lícito apenas pleitear a revogação da tutela provisória perante o juízo a quo. O Código de Processo Civil admite expressamente o recurso contra decisão prolatada antes da citação (artigo 1.003, §2º, CPC), e já é consolidado o entendimento de que pedidos de reconsideração não interrompem o prazo para o recurso principal, de modo que o réu estaria se colocando em situação de risco processual caso formulasse apenas o pedido de revogação da tutela provisória sem interpor o Agravo, tendo em vista que se o juízo a quo não acolha o pedido de revogação muito provavelmente já não haveria prazo para a interposição do Agravo de Instrumento. Ademais, o Agravo de Instrumento possui efeito regressivo (artigo 1.018, §1º, CPC), de modo que a sua interposição já implica possibilitar ao juízo a quo reconsiderar-se da decisão recorrida, o que sugere, ainda mais uma vez, que a atitude processual mais correta é interpor o Agravo de Instrumento com a ampliação cognitiva do objeto da decisão.

Além dessa hipótese, em que me parece clara a possibilidade de ampliação cognitiva no Agravo de Instrumento, é possível vislumbrar essa mesma possibilidade em qualquer caso em que tal ampliação seja necessária para preservar o direito ao contraditório e ampla defesa do recorrente. Até mesmo pelo princípio (ou dever) de dialeticidade, o agravante deve impugnar especificadamente os fundamentos da decisão agravada, o que muitas vezes impõe a apresentação de fundamentos novos que não foram apresentados anteriormente. Se isso for feito dentro dos limites da razoabilidade, não razão para que o Tribunal ad quem não analise os fundamentos apresentados, sob pena de se limitar ao agravante apenas a reprodução pura e simples de fundamentos de fato e de direito que foram apresentados ao juízo a quo.

Enfim, o Agravo de Instrumento pode sim devolver ao Tribunal matérias de fato e de direito que não foram objeto de análise do juízo a quo. A admissão da ampliação cognitiva no Agravo de Instrumento deverá ser feita caso a caso, a depender da preservação do direito ao contraditório e ampla defesa daquele que interpõe o Agravo.

Conclusão
O Agravo de Instrumento pode ser recurso secundum eventum litis nas hipóteses em que só é admissível a sua interposição a depender do resultado da decisão interlocutória, porém isso nada diz sobre a extensão e profundidade da cognição judicial na decisão do recurso.

Admite-se, no Agravo de Instrumento, que o Tribunal ad quem aprecie matérias de fato e de direito que não foram apreciadas pelo juízo a quo sem que isso configure supressão de instância, notadamente as questões cognoscíveis de ofício que dizem respeito à admissibilidade do processo (artigo 485, §3º, CPC), e nos casos em que o não conhecimento de matérias de fato e direito pelo Tribunal signifique uma violação ao contraditório e ampla defesa do agravante, como no caso do réu que interpõe Agravo de Instrumento contra decisão que concede tutela provisória.


[1] TJ-GO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Agravos -> Agravo de Instrumento 5473656-30.2021.8.09.0177, relator desembargador (a). DESEMBARGADOR ALAN SEBASTIÃO DE SENA CONCEIÇÃO, 5ª Câmara Cível, julgado em 01/04/2022, DJe  de 01/04/2022.

[2] Nesse sentido: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. V. 3. 18ª ed. Salvador: JusPodvim. 2021. P. 384.

[3] Seu acolhimento, como implica a extinção do processo sem resolução de mérito, é desafiada por Apelação.

[4] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. V. 3. 18ª ed. Salvador: JusPodvim. 2021. P. 313.

[5] MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. V.5. 15ª ed. Rio de Janeiro: Gen. 2010. P. 496.

[6] DIDIER JR., Ibidem. P. 313.

[7] Aqui se faz a ressalva de que há posições na doutrina que entendem que essa decisão não seria válida por piorar a situação do recorrente, o que implica reformatio in pejus.

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