Opinião

Duplo reflexo da Cide-Remessas em nível internacional e interno

Autor

  • Raquel de Andrade Vieira Alves

    é doutoranda em Direito Financeiro pela USP mestre em finanças públicas tributação e desenvolvimento pela Uerj ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal autora do livro Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem coordenadora do grupo de pesquisa Formação de Precedentes nos Tribunais Superiores (vinculado à Comissão de Tribunais Superiores da OAB-DF) procuradora-geral adjunta de assuntos tributários da OAB-DF e advogada.

26 de maio de 2022, 16h03

Retirado mais uma vez da pauta de julgamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal, o RE nº 928.943-RG, inicialmente inserido no calendário da sessão de 18/5/2022, segue sem data definida para apreciação pela corte. Apesar disso, a ideia deste artigo é explorar outros desdobramentos relativos à chamada Cide-Remessas (ou "Cide-Royalties"), que vão além da desvirtuação de seu perfil constitucional, cuja apreciação deve ser feita pelo STF em momento oportuno.

Para compreender os diversos cenários em que o tema se descortina é preciso um breve resgate do histórico-legislativo que serve de pano de fundo ao perfil atual da exação.

Nesse sentido, destaca-se que o imposto de renda retido na fonte sobre importâncias remetidas ao exterior a título de royalties de qualquer natureza originalmente incidia à uma alíquota de 25%. Foi editada a Medida Provisória n° 2.062-60/00, cujo artigo 3º, §2º, previu a redução dessa alíquota ao patamar de 15%, na hipótese de instituição da contribuição de intervenção no domínio econômico sobre as importâncias pagas.

Enquanto não instituída a referida contribuição, a alíquota do imposto de renda retido na fonte sobre os pagamentos a título de royalties seria mantida a 25%, sendo reduzida para 15% a partir da instituição da "Cide-Royalties".

Um mês depois, foi editada a Lei nº 10.168/00, que instituiu a então "Cide-Royalties" sobre importâncias remetidas a residentes ou domiciliados no exterior, a título de remuneração de licenças de uso e outros contratos de transferência de tecnologia, à uma alíquota de 10%, sem menção à vinculação à redução da alíquota do imposto de renda para 15%. Referida contribuição custearia o estímulo ao desenvolvimento tecnológico brasileiro, por meio do "Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação".

Em seguida, veio a MP nº 2.062-63/01, que vinculou expressamente a redução da alíquota do imposto de renda sobre as importâncias remetidas ao exterior à instituição da "Cide-Royalties" pela Lei n° 10.168/00, sendo reeditada diversas vezes até a MP nº 2.159-70/01.

Até então, a base de incidência do imposto de renda retido na fonte era mais ampla do que a da "Cide-Royalties", visto que abrangia também serviços técnicos e de assistência administrativa, bem como os royalties de qualquer natureza.

O governo federal editou Lei nº 10.332/01 para da mesma forma alargar a base de incidência da "Cide-Royalties", nela incluindo os contratos que tivessem por objeto serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes, a serem prestados por residentes ou domiciliados no exterior, bem como o pagamento de royalties a qualquer título, mesmo que não envolvessem transferência de tecnologia. Por isso, a exação converteu-se posteriormente na "Cide-Remessas", nomenclatura que preferimos adotar.

A base de incidência da Cide-Remessas passou a coincidir com a do Imposto de Renda retido na fonte, nas operações de remessa ao exterior, levando a Receita Federal a exigir a referida contribuição em caso de serviços técnicos e administrativos, sem conexão alguma com contratos de conteúdo tecnológico. Necessário esclarecer, nesse aspecto, que nem todo serviço técnico possui conteúdo tecnológico, assim como nem todos os royalties designam direitos de natureza tecnológica, como é o caso do pagamento de royalties por direitos autorais.

Na prática, esses pagamentos ao exterior a título de serviços técnicos e administrativos têm sido equiparados pela Receita Federal aos royalties, se enquadrando, portanto, na regra do artigo 12 dos tratados internacionais contra a dupla tributação, que permite a tributação da renda também pelo Estado da fonte, desde que limitada a um percentual, em regra, de 15%, ao invés de serem inseridos no artigo 7° que prevê a tributação apenas no Estado da residência.

Com isso, mesmo não se qualificando como royalties, os serviços técnicos e de assistência administrativa são a eles equiparados, para fins de atrair a incidência do artigo 12 dos tratados e permitir a tributação no Brasil. Como se não bastasse, todas as remessas ao exterior enquadradas como royalties, estando ou não vinculadas a contratos de transferência de tecnologia, tem sofrido a incidência da Cide-Remessas.

Pelo que se pode ver, a instituição da Cide-Remessas, à alíquota de 10%, bem como o alargamento de sua base de cálculo para além dos negócios de conteúdo exclusivamente tecnológico, atingindo também a prestação de serviços técnicos e administrativos, fez com que ela curiosamente passasse a incidir sobre a mesma base de cálculo do imposto de renda retido na fonte.

Em contrapartida, a redução da alíquota do imposto de renda retido na fonte incidente sobre esses mesmos pagamentos, ao patamar de 15%, fez parecer que o Estado brasileiro estaria cumprindo fielmente as disposições constantes nos tratados contra bitributação celebrados com outros países. Porém, na prática, a arrecadação federal foi mantida no patamar de 25% sobre as remessas ao exterior, se somadas as alíquotas da Cide-Remessas e do imposto de renda retido na fonte. Ou seja, a operação continua sendo onerada por tributos, no país, no patamar de 25%.

Para cumprir a finalidade de incentivar o desenvolvimento tecnológico brasileiro a Cide-Remessas deveria incidir justamente sobre o detentor da tecnologia residente no exterior, não só pela coerência entre a finalidade e a parte onerada, como pelo próprio princípio da capacidade contributiva; e ainda, se limitar aos pagamentos feitos em função de contratos que envolvam transferência de tecnologia.

Só que o sujeito passivo da Cide-Remessas é aquele que celebra contratos com domiciliados no exterior, ou seja, quem importa a tecnologia ou nem isso, posto que nem todos os contratos cujos pagamentos são tributados pela Cide envolvem transferência de tecnologia.

Logo, o que se tem é uma contribuição interventiva cuja base de cálculo e o sujeito passivo não correspondem à finalidade declarada na lei. E, portanto, não respeita o seu perfil constitucional, para além de outras questões afetas à necessidade e ao tipo de atividade estatal que pode dar azo a uma legítima intervenção no domínio econômico, cuja análise deve ser feita pelo STF, no julgamento do RE 928.943, sob a sistemática da repercussão geral.

Para além das inconstitucionalidades que podem ser suscitadas em relação à Cide-Remessas, na linha do que os professores Sacha Calmon Navarro Coelho e André Mendes Moreira [1] lecionam, a Cide-Royalties acabou se transformando em um verdadeiro adicional de imposto sobre a renda do residente no exterior, ficando o remetente no Brasil como substituto tributário [2].

Nesse ponto, fica claro que a Cide-Remessas foi instituída pela União com dois nítidos propósitos: (1) esquivar-se das regras dos tratados contra dupla tributação firmados pelo Brasil; e (2) evitar que os recursos arrecadados com a contribuição interventiva fossem repassados ao Fundo de Participação dos estados e municípios, nos moldes do que ocorre com o imposto de renda, que tem hoje 50% de sua arrecadação partilhada, por determinação expressa do artigo 159, I, da Constituição Federal.

Por isso, quando os tratados internacionais para evitar a dupla tributação da renda assinados pelo Brasil fazem referência a "imposto federal sobre a renda" ou somente "imposto sobre a renda", acreditamos que não abrangem somente os impostos, mas se referem à tributação incidente sobre a renda ou o capital e, portanto, a todas espécies tributárias que incidam sobre essas bases, incluindo as contribuições [3].

A língua padrão dos tratados internacionais contra a dupla tributação é comumente o inglês, e refere-se a "taxes" (taxes on income and on capital, na tradução para a língua portuguesa) para se referir aos tributos incidentes sobre a renda e o capital. Em geral, na cláusula referente ao alcance dos tratados, a redação é bem ampla e abarca todos os tributos sobre a renda ou sobre o capital existentes, bem como aqueles de natureza idêntica ou similar que entrarem em vigor posteriormente à assinatura da Convenção e que venham a acrescer os atuais ou a substituí-los, conforme expressamente determina o parágrafo 4º, do artigo 2º, da Convenção Modelo da OCDE.

O Brasil segue esse modelo e não fez reservas à aplicação específica do dispositivo. Em razão disso, entendemos que descabe aqui proceder à tradução de "taxes" como impostos, ao invés de "tributos", a fim de afastar a possibilidade de aplicação dos tratados internacionais contra a dupla tributação da renda às contribuições de natureza similar ao imposto de renda que gravem as remessas ao exterior, na forma da Lei nº 10.168/00, como é o caso da Cide-Remessas.

Essa, no entanto, não é a interpretação que a Receita Federal tem feito, que se limita à CSLL, conforme, inclusive, positivado pelo artigo 11 da Lei n° 13.202/15.

Embora o contexto internacional não esteja sob apreciação do STF, é certo que o debate doutrinário precisa ser feito, especialmente diante de debates similares que têm ocorrido no âmbito de alguns países em relação à aplicabilidade dos tratados internacionais contra a dupla tributação às contribuições, como é caso recente do Conselho de Estado francês, levado a analisar a abrangência do Tratado Brasil-França em relação às contribuições para a seguridade social em ambos os Estados [4].

Essas sucessivas alterações legislativas que culminaram com o alargamento da base de cálculo da Cide-Royalties, transformando-a na Cide-Remessas, em contrapartida da redução da alíquota do imposto de renda, caracterizam um drible às disposições dos tratados, através da manipulação da legislação doméstica pelo Brasil. É a típica forma de legislação abusiva, editada por um dos Estados contratantes, que infringe a finalidade dos tratados contra a bitributação, embora não contrarie o seu texto expressamente. Tem sido denominada doutrinariamente como treaty dodging ou treaty circumvention [5].

Já no contexto interno brasileiro, verifica-se que o artigo 149 da Constituição Federal tem servido como uma verdadeira autorização para o estabelecimento de qualquer contribuição que intervenha na economia ou que possua uma finalidade social, abrindo um amplo leque de possibilidades para a instituição de contribuições com base nesse dispositivo, já que as do artigo 195 devem necessariamente ser destinadas ao custeio da seguridade social e possuem alguns parâmetros mínimos previstos no próprio texto constitucional.

Assim, a contribuição de intervenção no domínio econômico tem representado um dos principais instrumentos de desvirtuação da natureza das contribuições, com intuito exclusivamente arrecadatório, o que acaba por violar não só o espírito dos tratados internacionais celebrados pelo Brasil como o pacto federativo, a nível interno.

Se esse duplo reflexo da Cide-Remessas a nível interno e internacional não está sob apreciação da Corte — e muito provavelmente continuará dessa forma, seja pelo viés infraconstitucional do tema, seja pela dificuldade de se levar o impacto federativo das contribuições à apreciação do STF —, é certo que a sua jurisprudência ao longo de anos tem chancelado os abusos cometidos pelo legislador na instituição de contribuições interventivas, o que só reforça a necessidade de inserir o debate acadêmico e doutrinário acerca do controle judicial das contribuições em um contexto maior de atenção.


[1] COELHO, Sacha Calmon Navarro e MOREIRA, André Mendes. Inconstitucionalidades da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico Incidente sobre Remessas ao Exterior – Cide Royalties. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 89. Editora Dialética. São Paulo: fev/2003. p. 71/84.

[2] Aqui se poderia caracterizar uma verdadeira hipótese de responsabilidade tributária, por substituição, às pessoas jurídicas que efetuam os pagamentos, nos termos do art. 121, do CTN, pois, o contribuinte da Cide-Remessas seria, na verdade, o titular dos recebimentos no exterior.

[3] ALVES, Raquel de Andrade Vieira; OLIVEIRA, Gustavo da Gama Vital de. "As Cide-Royalties e os Tratados Internacionais contra a Bitributação", Revista de Direito Internacional Econômico e Tributário da Universidade Católica de Brasília, V. 10, nº 1, p. 78 – 124, 2015.

[4] SIROTHEAU, Maria Fernanda. Corte Superior francesa decide controvérsia sobre tratado com o Brasil Conselho de Estado francês analisou se a CSLL estaria abrangida pelos tratados contra a bitributação. Jota. 12 de maio de 2022.

[5] KLAUS, Vogel. Double Tax Treaties and Their Interpretation, 4 Int'l Tax & Bus. Law. 1 (1986). p. 83/85.

Autores

  • é doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal, autora do livro "Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017), cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem e advogada.

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