Opinião

A eficácia temporal da coisa julgada nos Temas nº 881 e 885

Autores

  • Paulo Mendes

    é pós-doutor em Direito pela UFBA doutor e mestre em Direito pela UFRGS professor na graduação pós-graduação mestrado e doutorado do IDP–Brasília vice-presidente da Associação Brasiliense de Processo Civil (ABPC) membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte Nordeste de Professores de Processo (Annep) procurador da Fazenda Nacional e coordenador-geral da Atuação da PGFN no STF.

  • Tiago do Vale

    é procurador da Fazenda Nacional coordenador substituto da atuação da PGFN no STF e ex-assessor para assuntos tributários de ministro do STF.

26 de maio de 2022, 21h22

Poderia o Supremo Tribunal Federal, anos após a edição de um precedente em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade, proferir nova decisão para modular os efeitos que já vinham sendo produzidos pelos referidos julgados? Estaria tal postura em harmonia com o ideal de segurança jurídica?

Iniciou-se no dia 6 de maio último, em sessão plenária virtual, o esperado julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, dos limites temporais da coisa julgada em matéria tributária, considerados os pronunciamentos de inconstitucionalidade/constitucionalidade proferidos pelo Pleno da Corte Suprema, em atenção aos recursos extraordinários nº 949.297 e nº 955.227, alusivos, respectivamente, aos Temas nº 881 e 885 da sistemática de repercussão geral.

Num primeiro momento — ausente o encerramento do julgamento, em razão do pedido de vista formalizado pelo ministro Alexandre de Moraes — os ministros Edson Fachin, relator do Tema nº 881, e Luís Roberto Barroso, relator do Tema nº 885, adotaram ópticas coincidentes segundo as quais as decisões do STF em controle concentrado e difuso de constitucionalidade — neste último caso desde que posteriores ao instituto da repercussão geral — interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado, consideradas relações jurídicas tributárias de trato continuado, quando os comandos decisórios sejam opostos, observadas as regras constitucionais da irretroatividade, da anterioridade anual e nonagesimal, atento à espécie tributária em jogo. No ponto, foram acompanhados pelos ministros Dias Toffoli e Rosa Weber, tendo o ministro Gilmar Mendes inaugurado divergência no sentido de ampliar o espectro dos pronunciamentos do Supremo aptos a ensejarem a cessação dos efeitos da coisa julgada formada anteriormente em sentido diverso às decisões da corte.

O enfoque até aqui alcançado, além de potencializar a unidade do Direito e a força normativa da Constituição, obstando a coexistência de ordenamentos jurídicos paralelos e contemporâneos, prestigia, conforme se observa dos votos proclamados a essa altura, a materialização do princípio da igualdade em matéria tributária e a livre concorrência, presente os efeitos danosos que surgem da vantagem competitiva em favor de contribuintes que se beneficiaram de casuísmos, considerado o momento em que formada a coisa a julgado em seu favor.

Nada obstante a determinação da corte de que sejam observados os pronunciamentos do Plenário do STF quanto ao juízo sobre a constitucionalidade dos tributos, fazendo cessar os efeitos prospectivos da coisa julgada pretérita formalizada em sentido diverso, os relatores propuseram a modulação dos efeitos da decisão, a partir da publicação da ata de julgamento dos paradigmas em questão. Este é o ponto que se busca levar ao debate neste estudo.

Verificamos dois problemas na referida proposta de modulação: 1. há "confiança justificada" a exigir proteção por meio da modulação de efeitos?; 2. é possível que sejam calibrados efeitos de precedentes anteriormente proferidos?

Não se diga que se trata de uma grande inovação no cenário jurídico o reconhecimento da cessação dos efeitos da coisa julgada, nas relações jurídicas de trato continuado, diante de precedente do STF em sentido contrário. A doutrina, como muito bem retratada nos votos proferidos, desde longa data, dedica-se ao tema, considerando referida cessação de efeitos como uma decorrência natural da dogmática da coisa julgada que disciplina relações jurídicas de trato continuado (vide ampla revisão bibliográfica em: OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Coisa julgada e precedente: limites temporais e as relações jurídicas de trato continuado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015). Para citar apenas dois expoentes da doutrina nacional, Teori Albino Zavascki, já em 2001, escreveu seu conhecido livro "Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional", e Luiz Guilherme Marinoni, ainda em 2008, escrevera seu "Coisa julgada inconstitucional".

Em paralelo, a PGFN, desde 2011, possui um parecer público e vinculante (Parecer PGFN/CRJ nº 492/2011), assinado pelo então ministro da Fazenda, que orienta a Administração Tributária a respeitar os precedentes do STF, em especial o seu efeito de fazer cessar prospectivamente a eficácia da coisa julgada nas relações jurídicas de trato continuado. Ou seja, há mais de dez anos, a Administração Tributária Federal já possui orientação vinculante no sentido de não serem cobrados tributos de contribuintes que possuem coisas julgadas desfavoráveis, quando do advento de decisão do STF no sentido da inconstitucionalidade da exação. Da mesma forma, orienta os contribuintes a retomarem os pagamentos, caso a decisão do STF tenha sido pela constitucionalidade da tributação.

Nihil novi sub sole.

O tema também não é novo sequer na jurisprudência do STF. É possível citar dois temas de repercussão geral que trataram do assunto. Inicialmente, o Tema nº 494 (RE 596.663/RJ), no qual constou da sua ementa: "A força vinculativa das sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado atua rebus sic stantibus: sua eficácia permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos adotados para o juízo de certeza estabelecido pelo provimento sentencial". Em seguida, o STF foi ainda mais preciso no Tema nº 733 de repercussão geral (RE 730.462/SP), que, diante de decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo, exigiu ação rescisória para desconstituir coisas julgadas passadas, mas ressalvou expressamente a cessão da eficácia quanto a fatos geradores futuros: "… ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto sobre relações jurídicas de trato continuado". Para uma visão atualizada da tese e dos seus reflexos na jurisprudência do STJ e do STF, vide: SEEFELDER FILHO, Claudio Xavier. Jurisdição constitucional e a eficácia temporal da coisa julgada nas relações jurídico-tributárias de trato continuado. Belo Horizonte, Fórum, 2022.

Não nos parece, portanto, estar presente a referida "quebra de paradigma" ou "confiança justificada" tão propaladas pela doutrina como requisitos para a modulação de efeitos. No particular, doutrina e jurisprudência são bem rigorosas para autorizar a eficácia ex nunc dos precedentes, exigindo efetiva demonstração da necessidade de se concretizar "o princípio da proteção à confiança (que se consubstancia na dimensão subjetiva da segurança jurídica)" (ALVIM, Teresa Arruda. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019, p. 15).

Diante de tais circunstâncias, denota-se que a ratificação pela Suprema Corte de uma vetusta construção dogmática sobre os limites temporais da coisa julgada não preenche o requisito fundamental da necessidade de proteção da confiança justificada. Na verdade, implementada a modulação, teremos justamente as consequências que se pretendem evitar, que será o tratamento anti-isonômico e nocivo à livre concorrência em relação a contribuintes específicos, que, por exemplo, foram desonerados da carga tributária em razão da coisa julgada, mesmo após o precedente do STF, quando todos os seus concorrentes foram obrigados ao adimplemento.

Quanto ao segundo problema apresentado, é preciso ter presente o caráter gerencial que os paradigmas alusivos aos Temas nº 881 e 885 exercem sobre as decisões pretéritas da corte quanto à constitucionalidade dos tributos. A premissa revela a importância de se levar em conta segurança jurídica, ante a modulação de efeitos adotada pelos relatores.

A proposta de modulação revisita precedentes antigos para customizar seus efeitos anos após a sua edição. Os jurisdicionados, que já conheciam o pronunciamento da Suprema Corte e já se comportavam de acordo com tal orientação, deparam-se com um novo comando que limita a eficácia das referidas decisões em relação às coisas julgadas que existiam em sentido diverso da conclusão do STF.

Modular os efeitos de precedentes editados no passado e que, há muito, vêm orientando a sociedade sobre o conteúdo normativo da nossa Constituição parece colidir com o princípio da segurança jurídica. A modulação de efeitos dos precedentes é uma técnica virtuosa, que costuma ser utilizada contemporaneamente à sua edição e sempre que se estiver diante de situação de efetiva confiança justificada que exija proteção (como nas situações de mudança de entendimento do Poder Judiciário ou mesmo de uma decisão que abale significativamente justas expectativas da sociedade sobre o conteúdo do Direito em vigor). O que os votos proferidos propõem é a calibragem de precedentes antigos, muitos dos quais já receberam, inclusive, juízos específicos sobre a modulação de seus efeitos.

É importante, portanto, que o Supremo Tribunal Federal reconheça, ao final do julgamento dos Temas nº 881 e 885 de repercussão geral, que os seus precedentes, seja em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade, impactam significativamente a ordem jurídica, fazendo cessar, automática e prospectivamente, a eficácia da coisa julgada tributária formada nas relações jurídicas de trato continuado, sem a modulação de efeitos inicialmente proposta. Além de não estar presente a confiança justificada que pode dar ensejo à modulação, é de se refletir sobre a possibilidade de calibrar o alcance de precedentes antigos, que já são de amplo conhecimento dos jurisdicionados e vêm produzindo regularmente seus efeitos.

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