Opinião

STJ e limites do controle judicial sobre Acordo de Não Persecução Cível

Autores

  • Luiz Manoel Gomes Junior

    é advogado doutor e mestre em Direito pela PUC-SP professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG) de mestrado da Universidade Paranaense (Unipar) dos cursos de pós-graduação da PUC-SP e da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso (Fesmp-MT).

  • Diogo de Araujo Lima

    é mestre em Direito Processual Civil e Cidadania na Unipar (Universidade Paranaense) especialista em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) promotor de Justiça coordenador do Grupo Especializado na Proteção do Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (Gepatria) — Regional de Umuarama.

  • Rogerio Favreto

    é desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ex-procurador-geral do município de Porto Alegre e secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.

25 de maio de 2022, 14h01

Dentre as estruturas clássicas de resolução de conflitos e técnicas alternativas de solução de disputas sociais, encontram-se a autotutela, a autocomposição e a heterocomposição.

A autotutela é considerada o meio mais primitivo de solução de conflitos. Por intermédio dela, resolvia-se a querela com as próprias mãos. Conforme Maurício Godinho Delgado, "a autotutela ocorre quando o próprio sujeito busca afirmar, unilateralmente, seu interesse, impondo-o (e impondo-se) à parte contestante e à própria comunidade que o cerca".[1] Exemplo clássico é o direito de greve, previsto no art. 9º da CRFB/88 e regulamentado pela Lei nº 7.783/1989.

Na autocomposição, por sua vez, a solução é construída pelas próprias partes envolvidas no litígio, com ou sem a intervenção de terceiros, mas, independentemente disso, sem o uso da força.

Já na heterocomposição, a decisão sobre o conflito é entregue a uma terceira pessoa, que estabelece, de forma imperativa, a solução do caso concreto. A heterocomposição pode ocorrer de duas formas: a arbitral, quando as partes escolhem um terceiro de sua confiança para decidir a causa; e a jurisdicional, quando uma das partes, valendo-se do direito de ação, provoca o Poder Judiciário, em busca de uma decisão imperativa, dotada de poder coercitivo e em caráter definitivo.

No caso da autocomposição, as partes estão autovinculadas às convenções pelo livre acordo de vontades, enquanto que na heterocomposição, juízes e árbitros estão adstritos ao ordenamento jurídico (heterovinculação), submetendo-se às normas jurídicas — sejam legisladas ou pactuadas (contratos e convenções).[2]

A partir dessas premissas, denota-se que o Acordo de Não Persecução Civil (ANPC) enquadra-se sob a forma de autocomposição. Por intermédio dele, em troca do não ajuizamento da demanda (se celebrado extrajudicialmente), ou da resolução do mérito da demanda (se já ajuizada), as partes negociam a aplicação de uma ou de algumas das sanções da Lei nº 8.429/92 (LIA), conforme a gravidade das condutas.

No modelo de consensualidade, um dos seus pressupostos é a solução negociada pelas próprias partes. Com efeito, o protagonismo processual, até então centralizado na figura do juiz, desloca-se para os atores envolvidos no conflito[3]. Quem define as sanções cabíveis (entre aquelas, por certo, com previsão constitucional e legal), a forma, o modo com que serão aplicadas e outros aspectos vinculados à operacionalização do acordo são as próprias partes, por meio de uma negociação regrada, a partir de normas constitucionais e infraconstitucionais.

O ajuste, porém, deve submeter-se ao controle judicial, que, sob a ótica de Fernando da Fonseca Gajardoni, pode se dar sob duas perspectivas distintas.[4] A primeira, de cariz mais formal, afere a regularidade da avença, perquirindo, por exemplo, se o agente é capaz, o objeto lícito, a forma prescrita ou não defesa em lei, se houve previsão de reparação de dano, enfim, se o negócio preenche os requisitos formais de validade. E a segunda, de caráter material, em que o magistrado controla o "próprio conteúdo da convenção, observando as diretrizes estabelecidas no artigo 17-B, § 2º, para homologar ou não o acordo […]".[5]

Esta última linha reflexiva foi a encampada pelo STJ no último dia 9.3.2022, ao julgar os Embargos de Divergência em Agravo no REsp nº 102.585/RS, de relatoria do ministro Gurgel de Faria. Na oportunidade, a Corte homologou acordo firmado pelo MP-RS e uma pessoa jurídica prestadora de serviços de colegas de resíduos sólidos no município de Pelotas, que, entre outras sanções, havia sido proibida de contratar com o Poder Público pelo prazo de cinco anos. Pelo ajuste, a empresa assumiu o compromisso de pagar, em substituição à condenação de proibição de contratar com o Poder Público, uma multa civil de R$ 2,5 milhões.

No bojo do acórdão, especialmente do voto-vogal do minisro Herman Benjamin, veio à tona a questão do papel do Poder Judiciário frente aos acordos celebrados no curso das Ações de Improbidade. Concluiu-se, na oportunidade, que a melhor interpretação é a que submete ao controle judicial não apenas os requisitos formais, mas também o próprio conteúdo do acordo, a fim de verificar "se a avença atende as expectativas da coletividade à luz de particularidades subjetivas e objetivas da causa, bem como do princípio constitucional da razoável duração do processo, inclusive na fase satisfativa (artigos 5º, LXXVIII, da CF e 4º do CPC)". Para o vogal, a própria inteligência do artigo 17-B, § 2º, da LIA aponta "[…] no sentido de que o acordo (sic: o seu conteúdo) deverá considerar 'a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso'".

O exame do atendimento ao interesse público autorizador da homologação da convenção considerou que: i) se tratava de ato na modalidade culposa de improbidade administrativa, de menor gravidade (artigo 10 da LIA); ii) o dano ao erário não foi de maior extensão; iii) a reparação está preservada, já tendo, inclusive, sido cumprida; iv) primariedade; v) a compromissária e sua subsidiária "prestam serviços essenciais de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos atendendo, diretamente, a cerca de 2,7 milhões de pessoas, nos estados de Santa Catarina e de São Paulo, possuindo, ainda, o único aterro sanitário hábil a receber resíduos sólidos urbanos provenientes do município de Florianópolis e sua região", de modo que a proibição de contratar com o Poder Público acarreta não só prejuízo a ela, mas também às municipalidades que são por si atendidas; vi) o valor da multa civil será revertido integralmente para obras de micro e macro drenagem em área elencada como obra prioritária no município de Pelotas, em virtude de cheias que ocorrem em períodos de chuva na região; e vii) a empresa de saneamento local, o Município de Pelotas, PGJ do MP-RS e o MPF aquiesceram com os termos do acordo.

O posicionamento parece refletir a melhor exegese sobre a matéria. É inegável que o Estado-Juiz não pode ficar alheio ao controle que lhe é pertinente, afinal, como leciona Fernando Gajardoni "[…] o Poder Judiciário não é um mero carimbador de acordo”,[6] do contrário, sequer haveria necessidade de homologação.

De fato, a ampliação dos espaços de consensos não pode ser confundida com uma discricionariedade absoluta por parte do Parquet. É fundamental que, por ocasião do exercício do juízo de conveniência e oportunidade que lhe cabe, o representante ministerial não perca de vista as diretrizes essenciais que justificam a consensualidade em matéria de improbidade administrativa: o atendimento às expectativas da coletividade e a defesa do patrimônio público. Acordos infundados e desarrazoados, decerto, comportam correção e podem ser objeto de intervenção do Poder Judiciário.

O exercício do controle judicial, contudo, exige prudência. O juiz, ao analisar a avença, não pode intervir na proposição do ajuste, tampouco substituir seu conteúdo. Não lhe é dado interferir no mérito do ato jurídico ou no conteúdo de suas cláusulas. O aprofundamento na análise dos requisitos formais e, de maneira excepcional, dos materiais do ANPC, se não exercido com cautela, pode eventualmente desvirtuar a natureza do ajuste enquanto negócio jurídico, repercutindo na liberdade e autonomia da vontade das partes, bases do modelo autocompositivo e da novel proposta de justiça negociada introduzida no Direito Sancionador brasileiro.

Partindo dessa premissa, em caso de divergência do juiz em relação aos termos do acordo, caber-lhe-á devolvê-lo às partes para adequação, nos moldes do artigo 28-A do CPP, aplicado por analogia, cujo §5º prescreve: "Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor".

Ao receber os autos para readequação da proposta de acordo, em respeito à independência funcional do membro do Ministério Público que o celebrou, fica-lhe assegurado avaliar as justificativas da não homologação judicial e tomar as "[…] providências adequadas ao caso concreto, promovendo a rediscussão do Acordo ou insurgindo-se contra a decisão, impugnando-a pelos meios cabíveis, de forma isolada ou conjunta com o celebrante". (artigo 56 da Orientação nº 10 do MPF)

Esse raciocínio, por certo, não exclui do escrutínio judicial aquelas situações de patente desproporcionalidade, cujo exame não escapa ao juízo homologatório, inclusive pelo prisma da legalidade (em sentido lato sensu).

De toda sorte, por igual, nessas hipóteses, o controle deve ficar adstrito aos casos manifestamente desproporcionais e teratológicos, sob pena de retornar ao vetusto modelo de solução de conflitos em matéria de improbidade administrativa e retroceder no significativo avanço que representou a Lei nº 14.230/21 em termos de regulamentação do ANPC.


[1] DELGADO, Mauricio Godinho. Arbitragem, mediação e comissão de conciliação prévia no direito do trabalho brasileiro. Revista LTr, v. 66, n. 6, jun. 2002, São Paulo, p. 664.

[2] CAMBI, Eduardo; SOBREIRO NETO, Armando Antonio. Improbidade administrativa eleitoral: notas sobre o acordo de não persecução cível celebrado pelo Ministério Público. Artigo inédito. 2020.

[3] CABRAL, Rodrigo Ferreira Leite. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 251.

[4] GAJARDONI, 2021, op.cit., p. 388.

[5] GAJARDONI, 2021, ibidem.

[6] GAJARDONI, Luiz Fernando et al. (orgs.). Comentários à Lei de Improbidade Administrativa. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 373.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG) e da Universidade Paraense.

  • é mestrando em Direito Processual Civil e Cidadania na Universidade Paranaense (Unipar-PR), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), promotor de Justiça, coordenador do Grupo Especializado na Proteção do Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (Gepatria) – Regional de Umuarama.

  • é desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, mestre em Direito pela PUC-RS, especialista em Direito Político pela Unisinos (RS). Ex-Procurador do município de Porto Alegre. Ex-Secretário Nacional de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.

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