Opinião

PL nº 3.825/2019: a tardia regulação de moedas eletrônicas

Autor

  • Flávia Sant'anna Benites

    é sócia do escritório Ernesto Borges Advogados especializada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e pós-graduada em Direito Público pela Escola de Direito do Ministério Público.

25 de maio de 2022, 12h04

No dia último dia 26 de abril, o Senado aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 3.825/2019, que visa regulamentar as operações envolvendo criptomoedas no Brasil. De autoria do senador Flávio Arns e de relatoria do também senador Irajá Abreu, o PL, que ainda deve passar pela Câmara dos Deputados e sanção presidencial, representa o início de uma nova era no país ao que diz respeito as chamadas moedas eletrônicas, mercado com grande perspectiva de crescimento neste ano [1].

Consoante a justificação apresentada pelo gabinete do Senador Flávio Arns, o projeto visa especialmente regulamentar as Exchanges, pessoas jurídicas que oferecem serviços referentes a operações realizadas com criptoativos em plataforma eletrônica, inclusive intermediação, negociação ou custódia [2]. Atualmente existem 35 exchanges no Brasil, empresas que, por estarem a margem do sistema financeiro regular, se beneficiam com a facilidade de movimentação financeira, o anonimato de compradores e vendedores e a não submissão a jurisdição de países e bancos centrais. De acordo com a autoridade tais benesses permitem práticas perniciosas, como lavagem de dinheiro e o financiamento ao tráfico de drogas.

Destaca-se que o PL nº 3.825/2019 tramitou em conjunto com os Projetos de Lei nº 3.949/2019, do Senador Styvenson Valentim, e nº 4.207/2020, da Senadora Soraya Thronicke, bem como possui como apense o PL nº 2.303/2015 do deputado Aureo Ribeiro. Assim, é possível inferir a abrangência e esforços direcionados à espécie normativa, da qual destacam-se sete pontos essenciais para seu entendimento.

De pronto, o PL já finaliza uma extensa discussão dentro do âmbito nacional acerca do que seria de fato um criptoativo. Ao longo dos anos foi possível classificar as criptomoedas tanto como ativo financeiro, segundo o posicionamento da Receita Federal do Brasil [3], como quanto "não ativo financeiro", vide Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN da Comissão de Valores Mobiliários. Ademais, o Superior Tribunal de Justiça entende que operação financeira envolvendo criptomoeda é negócio jurídico de transmissão de um bem móvel [4]. Não agradando nem a gregos, nem a troianos, o Projeto de Lei define de modo claro que criptoativo é [5]:

"A representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e/ou de tecnologia de registro distribuído, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a bens ou serviços, e que não constitui moeda de curso legal;".

Nota-se, entretanto, uma maior convergência com posições externadas anteriormente pelo Banco Central em consonância com Lei nº 12.865/2013, de modo que as criptomoedas são, pacificamente, moedas eletrônicas. O destaque ao Banco Central decorre ainda da mudança de competência para atuar na regulação, supervisão e fiscalização do mercado de criptoativos, que passa da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) para o Bacen. Com o PL, a CVM fiscalizaria apenas quando as operações de criptoativos se revestirem de característica de valor mobiliário, mediante sua oferta pública que gere direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros [6].

Em conformidade com parâmetros estabelecidos pelo Banco Central do Brasil, e observando os princípios constitucionais [7]  da ordem econômica nacional, o PL prevê as diretrizes que devem nortear o mercado de criptoativos, a saber:

"I – solidez e eficiência das operações realizadas nas plataformas eletrônicas; II – promoção da competitividade entre os operadores de criptoativos; III – confiabilidade e qualidade dos serviços, bem como excelência no atendimento às necessidades dos clientes; IV – segurança da informação, em especial proteção de ativos e de dados pessoais; V – transparência e acesso a informações claras e completas sobre as condições de prestação de serviços; VI – adoção de boas práticas de governança e gestão de riscos; e VII – estímulo à inovação e à diversidade das tecnologias.

É notório o enfoque dado tanto aos direitos consumeristas quanto a necessidade de transparência e acesso à informação [8], pilares da política pública contemporânea, e que podem ser observados em outros diplomas, tendo a exemplo a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011). Na mesma toada, o setor de criptoativos passa a ser submetido às medidas de prevenção e combate de lavagem de dinheiro  regida pela Lei nº 9.613/1998  e demais ilícitos, destacando-se a inclusão do crime de "Gestão fraudulenta de Exchange de criptoativos" ao artigo 4º da Lei nº 7.492/1986, responsável por definir os crimes contra o sistema financeiro nacional.

Ademais, frente ao descontrole na abertura de Exchanges, o Projeto de Lei propõe um rígido processo de autorização para funcionamento de tais pessoas jurídicas, devendo os pedidos de abertura ser acompanhado por: justificativa fundamentada, documentos que identifiquem os componentes do grupo econômico, bem como detentores de participação, além da comprovação de origem e movimentação financeira doas recursos utilizados no empreendimento e declaração de idoneidade [9]. Observa-se que a necessidade de aprovação perante o Bacen faz com que o sistema cripto transmita maior credibilidade e segurança ao sistema financeiro nacional e aos consumidores, que também são resguardados pelo artigo 8º do diploma citado, com disposições como a necessária separação patrimonial da Exchange e dos clientes.

Preocupando-se em preencher um perigoso vazio regulamentar do sistema jurídico nacional, o Projeto de Lei nº 3.825/2019 inova ao estabelecer condições e regras para o mercado de criptomoedas. Em nível mundial as operações de moedas eletrônicas carecem da regulamentação e fiscalização de governos, permitindo um espaço perigoso e à margem da legislação. Se devidamente aprovado em todas as fases do processo legislativo, o PL abrirá importantes precedentes e novas discussões, tendo a exemplo, a famigerada tributação de criptomoedas.


[1] Mercado de criptomoedas alcança novo status em 2021 e ganha outros desafios para 2022. Laelya Longo, Valor Investe, O Globo, São Paulo. 2022. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/cripto/noticia/2022/01/17/mercado-de-criptomoedas-alcanca-novo-status-em-2021-e-ganha-outros-desafios-para-2022.ghtml

[2] Artigo 2º, inciso III, PL 3.825/2019

[3] ANDRADE, Mariana Dionísio de. Tratamento jurídico das criptomoedas: a dinâmica dos bitcoins e o crime de lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, p. 45-59, dez. 2017. Disponível em: https://www.publicacoesacadeicas.uniceub.br/RBPP/article/view/4897/3645

[4] RECURSO ESPECIAL nº 1.696.214  SP. RELATOR: MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE. DTE JULGAMENTO: 09/10/2018

[5] Artigo 2º, inciso II, Projeto de Lei nº 3.825/2019.

[6] Artigo 7º, Projeto de Lei nº 3.825/2019, em conformidade com a Lei nº 6.385/1976.

[7] Artigo 170, caput, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

[8] Artigo 10º, Projeto de Lei nº 3.825/2019.

[9] Artigo 5º, incisos I a V, Projeto de Lei nº 3.825/2019.

Autores

  • é sócia do escritório Ernesto Borges Advogados, especializada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e pós-graduada em Direito Público pela Escola de Direito do Ministério Público.

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