Opinião

Para um ordenamento jurídico complexo, não espere soluções simples

Autores

  • Eduardo Muniz M. Cavalcanti

    é advogado procurador do Distrito Federal mestre em Direito Público com ênfase em Direito Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) doutorando em Direito ex-procurador da Fazenda Nacional ex-procurador do Estado de Minas Gerais e sócio da Bento Muniz Advocacia.

  • Tatiana Zuconi

    é advogada na Bento Muniz Advocacia pós-graduada em direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/DF.

23 de maio de 2022, 7h07

Em recente artigo publicado na "Revista de Direito Tributário Atual" (RDT), André Freire [1] analisa as especificidades da modulação de efeitos em repercussão geral no âmbito do direito tributário tomando como referência o papel do sobreprincípio da segurança jurídica, contrapondo-o à inegável contradição interna dos efeitos ex nunc em um sistema jurisdicional e de controle de constitucionalidade essencialmente retroativo.

A sistematização da modulação de efeitos em julgamentos tributários é hoje um dos assuntos que mais gera preocupação no mundo acadêmico, surpreendido com o que a ausência de dialeticidade instaurada pelos julgamentos de temas de repercussão geral de forma virtual estabeleceu no sistema de jurisdição constitucional, em especial na casuística modulação de efeitos realizada sem critérios técnicos ou maior grau de preocupação com a motivação lógica passível de gerar certo tipo de autocontenção ou autolimitação judicial.

Não é nosso propósito neste breve texto questionar as modulações de efeitos já fixadas pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos de repercussão geral, com aumento exponencial na pandemia do Covid-19. Trata-se de linhas reflexivas, preocupadas e com uma dose forte de consternação, tal qual muitos já o fizeram, com a ausência de sistematização das regras para modulação de efeitos do julgado e os efeitos nocivos trazidos, não somente ao universo jurídico, mas à própria estabilidade macroeconômica, haja vista a segurança jurídica constituir uma verdadeira viga de sustentação.

Veja-se o recente exemplo do julgamento dos embargos de declaração no RE n° 1.063.187, Tema 962, do Supremo Tribunal Federal em 27/09/2021. Nesta oportunidade, a Corte pronunciou a tese da inconstitucionalidade da incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores relativos à taxa Selic recebidos em razão da repetição do indébito tributário.

O acórdão do referido julgado foi publicado no dia 16/12/2021 e os embargos de declaração com pedido de modulação de efeitos foram protocolizados pela União (Fazenda Nacional) apenas em 07/02/2022, haja vista a suspensão dos prazos processuais pela Portaria STF GDG n° 69/2021. Somente agora, no dia 29/04/2021, o STF, por unanimidade de votos, acolheu os embargos de declaração e modulou a decisão embargada que passou a gerar efeitos ex nunc, a partir da data da publicação da ata do julgamento do mérito, no dia 30/9/2021.

A correspondente modulação apontou a preservação da inconstitucionalidade normativa — qual seja, incidência de IRPJ e CSLL sobre a taxa Selic, para: a) ações ajuizadas até 17/09/2021 (data no início do julgamento do mérito); b) os fatos geradores anteriores a 30/09/2021 em relação aos quais não tenha havido o pagamento do IRPJ ou da CSLL a que se refere a tese de repercussão geral.

A primeira crítica ao assunto, como dito, refere-se ao aspecto cronológico. A modulação sobreveio apenas sete meses depois do julgamento de mérito. Nesse "meio tempo", no dia 15/12/2021, a Receita Federal publicou a Solução de Consulta n° 183/2021, “desconhecendo” o julgamento de mérito do tema e a tese assentada, tendo declarado expressamente que sobre a taxa Selic devem ocorrer a incidência do IRPJ e da CSLL.

Para todos os efeitos, portanto, os contribuintes não poderiam deixar de recolher os tributos, provocando-os a buscarem manifestação judicial em ações próprias, mesmo após o julgamento pelo STF. Aqui o segundo ponto de crítica: as circunstâncias jurídicas levaram os contribuintes a procurarem proteção judicial, com a pretensão de afastar a exigência do IRPJ e da CSLL sobre eventos que não se ajustavam ao fato gerador desses tributos, mas ficaram num "limbo". O Supremo está aplicando a velha máxima "dormientibus non succurrit jus" — o direito não socorre aos que dormem —, às avessas.

Não sobram apenas censuras. O voto do ministro relator, Ministro Dias Toffoli, acolhido à unanimidade pelos demais pares, evidencia a preocupação da Corte em afastar a possibilidade de autuação do Fisco Federal para formalizar a cobrança de tributo com base em disposições cuja constitucionalidade já foi reconhecida pela Corte Suprema.

A alínea "b" da modulação de efeitos deixa claro que se não é possível para o contribuinte repetir o que já recolheu de forma indevida, também para o Fisco não é possível exigir tributo inconstitucional. Importante a preocupação em deixar claro o efeito inverso, para o Fisco, da prospectividade de sua decisão. Nesse ponto, um único aspecto chamou a atenção: o relator menciona em seu voto o entendimento proferido pelo ministro Roberto Barroso no julgamento dos Embargos de Declaração opostos na ADI 4.411. Esse voto, todavia, sequer está formalizado, haja vista a suspensão do julgamento em 12/04/2022, o que compromete, de pronto, a cognoscibilidade da fundamentação externada.

De toda forma, nada mais razoável para a harmonia do sistema do que afastar a possibilidade de cobrança pelo Fisco de um tributo reconhecidamente inconstitucional, ainda que a decisão tenha previsão de efeitos ex nunc. A contradição interna do sistema seria tamanha acaso possibilitada a convivência entre a impossibilidade de repetição do indébito pelo contribuinte, e a possibilidade de lançamento de ofício, pelo Fisco, que tenderia à descredibilidade do sistema tributário como um todo, com nefastos efeitos para a própria arrecadação.

Colocando em termos, com a finalidade ousada de alcançar um didatismo pragmático, com a pretensão de conferir maior grau de objetividade ao julgamento, o cenário pode ser assim desenhado: 1) contribuintes que não recolheram IRPJ e CSLL sobre a taxa Selic na repetição de indébito tributário decorrente de decisão judicial transitada em julgado, mesmo que para fatos geradores anteriores a 30/09/2021, não poderão sofrer a exigência desses tributos pelo Fisco Federal, e aqui nos parece que estão contemplados até mesmo débitos já inscritos em DAU; 2) os contribuintes que ajuizaram ação até 17/09/2021, não só não mais terão que recolher os tributos, como também poderão repetir os recolhimentos realizados nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação.

Para os contribuintes que estão compensando agora os créditos da chamada "tese do século" ou para aqueles que já compensaram, mas não recolheram os tributos, a incidência do IRPJ e da CSLL sobre a Selic está afastada, enquanto para aqueles que já promoveram o recolhimento desses tributos, se ajuizaram ação antes do dia 17/09 com o objetivo de afastar a incidência, poderão repetir os valores recolhidos.

A modulação de efeitos das decisões pelo Supremo tem provocado "distorções" sistêmicas, especialmente por atentar contra os sobreprincípios da isonomia e da segurança jurídica, e, ainda, vem exigindo dos contribuintes, no já complexo sistema normativo-tributário, a difícil compreensão do seu conteúdo e alcance. Como diria um amigo Procurador da Fazenda Nacional, para um ordenamento jurídico complexo não espere soluções simples.

Autores

  • é mestre em Direito pela UFPE, procurador do Distrito Federal, advogado e sócio do escritório Bento Muniz Advocacia. Foi procurador da Fazenda Nacional.

  • é advogada na Bento Muniz Advocacia, pós-graduada em direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/DF.

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