Opinião

Limites da responsabilidade objetiva de empresas na "lei anticorrupção"

Autores

  • Joana Siqueira

    é advogada sócia de Madruga BTW mestre em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e pós-graduada em Direito do Estado e da Regulação pela FGV/RJ.

  • Renata Politanski

    é associada de Maeda Ayres e Sarubbi Advogados LL.M Candidate pela Columbia Law School mestranda em Direito Público pós-graduada em Direito Administrativo e especialista em compliance pela Escola de Direito de São Paulo da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e bacharel em Direito pela PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) de São Paulo.

22 de maio de 2022, 11h18

Neste artigo propomos identificar a existência de limitadores à responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas no âmbito da "lei anticorrupção" ("LAC"), buscando responder à seguinte pergunta: "configura ato lesivo, nos termos da LAC, empresa que paga vantagens indevidas a agente público nos casos de concussão (artigo 316 do CP), isto é, quando o representante da empresa atende à exigência realizada pelo agente público?"

Como demonstraremos a seguir, admitir que um pagamento indevido ocorrido no contexto do crime de concussão configura um "ato lesivo" nos parece inconsistente [1], especialmente se considerados os pressupostos de responsabilização e propósitos estabelecidos pela norma [2].

Pressupostos da responsabilidade da pessoa jurídica
Para que haja configuração de um "ato lesivo", nos termos da LAC, é preciso que sejam verificados os seguintes pressupostos:

1) Adequação da conduta do particular [3] às hipóteses típicas previstas no artigo 5º da LAC;

2) A conduta do particular atenta contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro ou contra princípios da administração pública ou contra compromissos internacionais assumidos pelo Brasil; e

3) A conduta foi cometida em benefício ou interesse da empresa.

A verificação dos pressupostos acima — que são cumulativos  não deve ser feita à revelia dos propósitos da norma e de sua natureza sancionatória, sob o risco de chegar-se a conclusões inconsistentes e, por isso, indesejadas.  

A esse respeito vale ressaltar que LAC visa a "responsabilização […] de pessoas jurídicas por atos contra Administração Pública nacional e estrangeira" (artigo 1º), buscando "suprir lacuna existente no sistema jurídico pátrio (…) pertinente[s] à ausência de meios específicos para atingir o patrimônio das pessoas jurídicas" e, assim, "coibir, prevenir e a combater atos ilícitos", em especial "atos de corrupção e fraudes em licitações e contratos administrativos" [4].

A norma, portanto, não está preocupada em responsabilizar condutas ilícitas atribuídas aos agentes públicos, tampouco nos parece coerente admitir, considerando a natureza sancionatória da LAC, que seu objetivo englobe sancionar empresas vítimas de atos ilícitos perpetrados por funcionários públicos.

Tendo isso em vista, passemos à análise da verificação dos pressupostos acima nos casos em que o pagamento indevido decorre do crime de concussão pelo agente público.

Verificação dos pressupostos de responsabilização
Nos casos em que os pagamentos indevidos resultam do atendimento de exigências realizadas pelos agentes públicos está-se diante da hipótese de concussão, crime previsto no artigo 316 do CP.

Nesta hipótese, o particular será vítima do crime praticado pelo agente público, ainda que tenha realizado o pagamento da vantagem indevida, pois, diante das circunstâncias, não age de forma "livre e voluntária", mas realiza o pagamento "obrigado" pelas exigências do funcionário público [5].

É em razão de tal fundamento que, havendo exigência do agente público, o pagamento da vantagem indevida, pelo particular, não configura ato de corrupção.

Portanto, configurada a concussão, de um lado, o sujeito responsável pela ofensa ao bem jurídico tutelado será o agente público e, de outro, será vítima o particular.

Pelo reconhecimento do fato de que o pagamento indevido decorreu de crime cometido pelo agente público (concussão)  e em relação ao qual o particular é vítima  é que, a nosso ver, não se trata a hipótese em debate de qualquer das condutas estabelecidas no artigo 5º da LAC, ainda que estejamos diante de um ato que represente "[…] dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público".    

No mesmo sentido, não configuram a conduta descrita no artigo 5º, I, da LAC pagamentos indevidos que ocorram quando o representante da empresa tenha sido coagido, por violência ou grave ameaça, a realizar o pagamento da vantagem indevida [6] ou mesmo quando realiza o pagamento da vantagem em erro, isto é, quando o pagamento é realizado sem que o particular saiba que se trata efetivamente de uma vantagem indevida [7].

Admitir o contrário seria reconhecer, a um só tempo, que um ato praticado pela vítima de um crime perpetrado pelo agente público tem o condão de tornar a empresa que representa  igualmente vítima — em infratora.

Entendemos que tampouco estaria configurado, nos casos de concussão, o pressuposto de responsabilização da LAC que determina, para configuração de um "ato lesivo", que a conduta ofenda o patrimônio público nacional ou estrangeiro ou aos princípios da administração pública.

Na concussão, tutela-se a moralidade e a probidade da administração pública  inclusive sob o aspecto patrimonial (erário) , assim como o patrimônio do particular e sua liberdade individual.

Portanto, nas hipóteses de concussão, ainda que haja o pagamento indevido, é o agente público quem viola o bem jurídico tutelado. É a conduta de tal agente público (e não o ato do particular) que, ao menos em tese, pode lesionar o patrimônio público ou os princípios da administração pública.

Vale reiterar: os pagamentos indevidos, no contexto de concussão, não representam atos típicos ou antijurídicos, para fins configuração do crime de corrupção.

Portanto, cremos ser impossível a configuração de "ato lesivo" quando a conduta capaz de lesionar o patrimônio ou os princípios da administração pública é atribuída exclusivamente ao agente público, mormente nos casos em que o particular é vítima de tal conduta.

Vale destacar que inexiste, na LAC  ou em nosso ordenamento jurídico , dispositivo que preveja obrigação da empresa de garantir a probidade da atuação dos agentes públicos com que se relaciona. Também em razão disso, impossível que se impute à pessoa jurídica responsabilidade por ato cometido pelo agente público.

Por fim, quanto ao pressuposto relativo à demonstração de "benefício ou interesse da empresa", seria possível admitir que, nos casos de concussão, o pagamento da vantagem indevida finde-se por assegurar benefício ou interesse da empresa, ainda que lícito ou legítimo.

Não raro, o pagamento indevido, em tais hipóteses, objetiva exatamente evitar o achaque, a retaliação ou a obstrução de direitos legítimos do particular ou da empresa que representa.  

Não vemos óbice, dessa forma, à configuração de tal pressuposto, conquanto não seja capaz de configurar, por si só, um "ato lesivo" nos termos da norma, tendo em vista que os requisitos estabelecidos na LAC têm natureza cumulativa.

Em síntese, "o pagamento da vantagem indevida", na hipótese de concussão, não configura a conduta prevista no artigo 5º, I, da LAC, tampouco é capaz de preencher o requisito estabelecido na norma relativo à ofensa, pelo particular, do patrimônio público ou aos princípios da administração pública, razão pela qual não se está diante de um "ato lesivo" nos termos da LAC.

Conclusão
Nos casos de concussão, o pagamento de vantagem indevida por particulares não é capaz de preencher todos os pressupostos exigidos pela LAC para configuração de um ato lesivo.

Entendimento diverso é inconsistente com os propósitos da norma, posto que sujeita as empresas à responsabilização por ilícitos cometidos tão somente pelo agente público e em relação aos quais fora vítima.


[1] Adotamos o critério proposto por Neil MacCormick segundo o qual a consistência "é satisfeita pela não-contradição. Um grupo de proposições é mutuamente consistente se cada uma puder ser, sem contradição, afirmada em conjunto com cada uma das outras e com a conjunção de todas as outras". Cf. CCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito; [tradução de Conrado Hubner Mendes]. Rio de Janeiro: Ed. Elevier, 2008, p. 248.

[2] De acordo com o artigo1º e artigo 3º, §1º, da LAC, a responsabilização da pessoa jurídica será objetiva e independente da responsabilização individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito. Isso não significa dizer, contudo, que análise de responsabilidade de uma empresa, no âmbito da LAC, deva ser realizada de forma absolutamente dissociada da verificação da atuação dos sujeitos naturais que efetivamente praticaram a conduta tida como reprovável (o "ato lesivo", para adotar a expressão da LAC). Isso porque, sendo a personalidade jurídica uma ficção legal, é impossível a uma empresa que concretize um ato qualquer (seja ele lícito ou ilícito) sem que tenha havido uma conduta (ação ou omissão) prévia de pessoa natural a ela relacionada. A teor da norma e de seus propósitos, o indivíduo em relação ao qual deve recair a análise da conduta deve ser um sujeito particular, jamais um agente público.

[3] Cf. exposição de motivos da LAC.

[4] Este argumento está registrado na sentença e é atribuído a Rodrigo Chemim em: Mãos Limpas e Lava Jato: a corrupção se olha no espelho. 2. ed. Porto Alegre: CDG, 20 1 8. pp. 25/26. Cf. sentença p. 113.

[5]  Portanto, quando vítima do crime de extorsão (artigo 158 do CP). Por exemplo quando um diretor que, ao ser surpreendido por um funcionário público que lhe aponta arma de fogo, realiza o pagamento da vantagem indevida exigida pelo funcionário público.

[6] Isto é, quando vítima do crime de estelionato (artigo 171 do CP). Exemplificativamente, quando o representante da empresa quita multa que, posteriormente, veio a se saber falsa.

Autores

  • é advogada sócia de Madruga BTW, mestre em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e pós-graduada em Direito do Estado e da Regulação pela FGV/RJ.

  • é associada de Maeda, Ayres e Sarubbi Advogados, LL.M Candidate pela Columbia Law School, mestranda em Direito Público, pós-graduada em Direito Administrativo e especialista em compliance pela Escola de Direito de São Paulo da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e bacharel em Direito pela PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) de São Paulo.

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