Opinião

O artigo 21, §4º, da Lei de Improbidade Administrativa à luz da Constituição

Autor

  • Thadeu Augimeri de Goes Lima

    é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

20 de maio de 2022, 7h07

Dentre as alterações processuais promovidas pela Lei 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), chama atenção a que restou encampada no novo §4º do artigo 21 da LIA, o qual determina a transposição in utilibus pro reo da absolvição proferida em processo criminal e confirmada por decisão colegiada para a ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa que discuta os mesmos fatos, havendo comunicação com todos os fundamentos previstos no artigo 386 do CPP.

Essa transposição, como o próprio dispositivo preconiza, impede o trâmite da ação de improbidade, já proposta ou eventualmente ainda a ser ajuizada, que verse sobre aquele idêntico substrato fático.

Entendemos que o artigo 21, §4º, da LIA instituiu um pressuposto processual negativo ou extrínseco específico para a ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, que, como tal e sob a perspectiva da cognição judicial, consiste em uma objeção processual, devendo ser conhecido de ofício, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, e impondo a extinção do processo sem resolução de mérito, bem como podendo autorizar o ajuizamento de ação rescisória  com fulcro no artigo 966, inciso V, do CPC e visando ao juízo rescindente do decisum de procedência [1]  se, conquanto presentes os seus requisitos, deixar de ser reconhecido enquanto tramitar a ação de improbidade.

Destaca-se que, diferentemente do que ocorre no regime comum de influência da decisão criminal absolutória sobre a esfera extrapenal, ditado sobretudo pelos artigos 65 e 66 do CPP, c/c o artigo 935 do CC, o artigo 21, §4º, da LIA não exige o trânsito em julgado da absolvição penal nem a restringe à peremptória negação da existência do fato ou da sua autoria.

Outrossim, o artigo 37, §4º, da CF/1988 — que disciplina a cumulação sancionatória relativamente aos atos de improbidade administrativa, dispondo que eles "importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível"  não obsta que o legislador infraconstitucional crie uma sistemática de efeitos das decisões penais de mérito, notadamente as absolutórias, sobre as ações de responsabilização por atos de improbidade administrativa [2].

Contudo, uma exegese rasa do artigo 21, §4º, da LIA pode sim, eventualmente, afrontar o referido comando constitucional, além das garantias do acesso à justiça, do devido processo legal e do contraditório, insculpidas no artigo 5º, incisos XXXV, LIV e LV, da Lei Maior, das quais, conforme cediço entendimento doutrinário, deriva também um direito fundamental à prova.

Passemos então a algumas observações voltadas a uma cautelosa e constitucionalmente adequada interpretação da novel disposição normativa.

Primeiramente, frise-se que ela exige dois requisitos cumulativos:

1) a absolvição criminal por qualquer dos fundamentos arrolados no artigo 386 do CPP; e

2) a confirmação da absolvição por órgão jurisdicional colegiado, o que pressupõe a impugnação da decisão absolutória e o reexame do caso penal, no mérito, em grau recursal.

Como requisitos cumulativos que são, e face à excepcionalidade desse novo pressuposto processual negativo ou extrínseco para a ação de improbidade, a falta de qualquer deles exclui a sua incidência e permite a livre tramitação de tal demanda.

Ademais, diante do primeiro requisito, é de se concluir que a absolvição sumária em vista da declaração da extinção da punibilidade do agente, na forma do artigo 397, inciso IV, do CPP, não opera efeitos em relação à ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, o que, aliás, conforma-se perfeitamente à tradicional previsão do artigo 67, inciso II, do CPP.

De outro lado, também é de se concluir que a absolvição sumária fulcrada em algum dos demais incisos do artigo 397 do CPP  existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato (inciso I), existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade (inciso II) e reconhecimento de que o fato narrado evidentemente não constitui crime (inciso III)  é equiparável à absolvição tout court fulcrada, respectivamente, nos incisos VI e III do artigo 386 do CPP, pois tratam exatamente dos mesmos fundamentos de improcedência da acusação criminal, variando tão somente o momento procedimental em que são reconhecidos, de modo que o artigo 21, §4º, da LIA comporta interpretação extensiva para abarcá-la.

Por fim, ainda que fundado em hipótese que encontre correspondência no artigo 386 do CPP, o arquivamento de investigação criminal ou de peças informativas criminais não satisfaz o requisito em apreço, uma vez que a decisão judicial que acolhe a promoção do Ministério Público não pode ser equiparada à sentença absolutória. Com efeito, o arquivamento, sob a égide do artigo 28 do CPP  na redação original, ainda vigente por força de medida cautelar concedida pelo ministro Luiz Fux na ADIn 6.305/DF, ajuizada perante o STF, em decisão monocrática proferida em 22.01.2020 , consiste em um ato administrativo decisório complexo e eventualmente composto que envolve o Parquet e o Poder Judiciário, este em exercício de função atípica ou anômala de fiscal da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública [3]Assim, guarda-se coerência com a tradicional previsão do artigo 67, inciso I, do CPP.

Já diante do segundo requisito do artigo 21, §4º, da LIA, é de se concluir que, quando houver a condenação criminal em uma instância e a absolvição somente em outra, isto é, quando houver reforma, e não confirmação, do teor da decisão, ou quando o decisum absolutório ficar irrecorrido, não dando azo à sua reapreciação e eventual corroboração colegiada, afasta-se a aplicação da norma em tela, restando, entretanto, a possibilidade de incidência do regime "clássico" de influência da decisão criminal absolutória sobre a esfera extrapenal (artigos 65 e 66 do CPP, c/c o artigo 935 do CC).

Alerte-se que, ainda que presentes ambos os requisitos acima indicados, e conforme adiantamos, uma exegese rasa do novo regramento pode sim, eventualmente, afrontar o artigo 37, §4º, bem como o artigo 5º, incisos XXXV, LIV e LV, todos da CF/1988. Destarte, merecem melhor análise as consequências sobre a ação de improbidade administrativa ensejadas pelas hipóteses absolutórias previstas no artigo 386 do CPP.

A nosso juízo, é compatível com a Constituição a transposição in utilibus pro reo da absolvição penal confirmada por decisão colegiada  mesmo que não transitada em julgado, repita-se  quando se trate de negação peremptória da existência do fato ou da sua autoria, nos moldes do artigo 386, incisos I e IV, do CPP.

Isso porque, para haver cumulação sancionatória, é necessário um juízo afirmativo acerca da existência do fato e da sua autoria. E o decreto absolutório em comento, que exige cognição aprofundada e um elevado modelo de constatação ou standard probatório, acaba por concluir que o próprio fato imputado não aconteceu ou que o acusado não teve vinculação alguma com ele.

Ademais, é típica do RE e do REsp a vedação do reexame de fatos e provas (v. Súmula 279 do STF e Súmula 7 do STJ), de modo que, salvo questionamento de erro na valoração do acervo probatório, excepcionalmente admitido pela jurisprudência do STJ na via recursal especial, aquela conclusão sobre a inexistência do fato ou o afastamento da sua autoria seria impassível de reforma após o julgamento colegiado corroborador da absolvição, o que justifica sua extensão desde logo à ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, antes até do trânsito em julgado do decisum penal de improcedência.

De igual forma, reputamos também compatível com a CF/1988 a transposição in utilibus pro reo da absolvição penal confirmada por decisão colegiada quando se trate do reconhecimento de excludentes de tipicidade, ilicitude e culpabilidade previstas nos artigos 20, 21, 22, 23, 26 e 28, §1º, todos do CP, ex vi do artigo 386, inciso VI, do CPP.

Embora na esfera criminal o erro sobre os elementos do tipo e as descriminantes putativas (artigo 20, caput e §1º, do CP) operem no escalão da tipicidade, ao passo que a inimputabilidade (artigos 26, caput, e 28, §1º, do CP), o erro sobre a ilicitude do fato (artigo 21 do CP), a coação moral irresistível e a obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal (artigo 22 do CP) operam no escalão da culpabilidade, seus efeitos na seara da responsabilização por ato de improbidade administrativa serão exatamente os mesmos: a exclusão do dolo na conduta, que, de acordo com o artigo 1º, §§2º e 3º, da LIA, caracteriza-se como a vontade livre e consciente qualificada pelo escopo de obter um resultado sabidamente ilícito. Isto é, o dolo do ato de improbidade é o dolus malus, já impregnado de componentes valorativos que, na ótica do Direito Penal, agregam-se no último dos escalões do conceito analítico de delito.

Ao seu turno, as causas de justificação ou excludentes de ilicitude – estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito (artigo 23 do CP)  tornam a conduta legitimada perante o ordenamento jurídico como um todo e, como tal, impassível de sancionamento, nas esferas penal e extrapenal.

Em suma, nos casos acima, conquanto existente o fato e positivada a sua autoria, não se configura juridicamente nem uma infração penal nem um ato de improbidade administrativa, de modo que novamente não se viola a regra constitucional da cumulação sancionatória.

No que tange à transposição in utilibus pro reo da absolvição penal confirmada por decisão colegiada quando se trate de reconhecimento da atipicidade do fato, nos moldes do artigo 386, inciso III, do CPP, entendemos que necessita receber interpretação conforme o artigo 37, §4º, da CF/1988, somente havendo compatibilidade com este se presentes, de novo, dois requisitos cumulativos:

1) verificar-se a justaposição conceitual entre o tipo penal e o tipo ímprobo no caso concreto, ainda que ausente a correspondência textual entre ambos; e

2) negar-se a existência de elemento do primeiro também exigido pelo segundo.

Vejamos dois exemplos para melhor aclarar:

Exemplo 1: Servidor público é acusado pela prática do crime de dano contra o patrimônio da entidade pública na qual exerce suas funções (artigo 163, parágrafo único, inciso III, do CP) e, quanto ao mesmo fato, responde por ato de improbidade administrativa lesivo ao erário enquadrado no artigo 10, caput, da LIA. Sobrevém absolvição penal, confirmada por decisão colegiada, por atipicidade do fato, ante a negativa do dolo na conduta. Esta poderá ser transposta in utilibus pro reo e impedir o prosseguimento da ação de improbidade, pois se verifica a justaposição conceitual entre o tipo penal e o tipo ímprobo no caso concreto, embora ausente a correspondência textual entre ambos, e se negou a existência de elemento do primeiro também exigido pelo segundo.

Exemplo 2: Agente político é acusado pela prática do delito de ordenação de despesa não autorizada (artigo 359-D do CP) e, quanto ao mesmo fato, responde por ato de improbidade administrativa lesivo ao erário enquadrado no artigo 10, inciso IX, da LIA. Sobrevém absolvição criminal, confirmada por decisão colegiada, por atipicidade do fato, ante a constatação de que a despesa questionada encontrava sim supedâneo legal. Esta poderá ser transposta in utilibus pro reo e impedir o prosseguimento da ação de improbidade, pois se verifica a justaposição conceitual entre o tipo penal e o tipo ímprobo no caso concreto, com correspondência textual entre ambos, e se negou a existência de elemento do primeiro também exigido pelo segundo.

Faltantes esses requisitos, parece-nos que a pura e simples transposição in utilibus da absolvição penal fundada na atipicidade do fato para fins de "trancamento" da ação de improbidade violará o citado artigo 37, §4º, da CF/1988, especialmente porque existem condutas que são consideradas criminosas mas que não são consideradas atos ímprobos, assim como existem muitas mais condutas que são consideradas atos ímprobos mas que não são consideradas criminosas.

Finalmente, precisa receber interpretação conforme o artigo 37, §4º, c/c o artigo 5º, incisos XXXV, LIV e LV, da CF/1988 a transposição in utilibus pro reo da absolvição penal confirmada por decisão colegiada quando se trate de reconhecimento da carência ou insuficiência probatória, na linha do artigo 386, incisos II, V e VII, do CPP.

Com efeito, tolher-se desde logo o trâmite da ação de improbidade em tais situações, sem oportunizar ao autor a possibilidade de complementar o acervo probatório e produzir no bojo daquela a (s) prova (s) considerada (s) faltante (s) e determinante (s) da absolvição criminal, desde que isso se mostre fática e processualmente viável —  verbi gratia, se o demandante já dispuser daquela (s) prova (s) ou puder obtê-la (s) e enquanto não proferida sentença na ação de improbidade — , soa afrontoso não só à regra da cumulação sancionatória como também às garantias do acesso à justiça, do devido processo legal e do contraditório e ao direito fundamental à prova que delas se extrai.

Assim, pensamos que apenas haverá compatibilidade constitucional da transposição in utilibus da absolvição penal fundada na carência ou insuficiência probatória para o efeito de "trancar" a ação de improbidade se presentes, outra vez, dois requisitos cumulativos:

1) identidade total entre o acervo probatório produzido no processo criminal e o acervo probatório produzido ou em vias de o ser na ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa; e

2) inviabilidade fática ou processual de produção, na ação de improbidade, da (s) prova (s) considerada (s) faltante (s) e determinante (s) da improcedência da acusação penal.

Essas são, como dito antes, nossas observações voltadas a uma cautelosa e constitucionalmente adequada interpretação do artigo 21, §4º, da LIA.


[1] O réu carecerá do interesse de agir na ação rescisória se a pretensão sancionadora deduzida em face dele na antecedente ação de improbidade tiver sido julgada improcedente.

[2] Nesse sentido, v. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Comentários ao art. 21. In: GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO, Rogério. Comentários à nova Lei de Improbidade Administrativa: Lei 8.429/1992, com as alterações da Lei 14.230/2021 [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. nº 4.2.

[3] V. LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Consequências sistemáticas da nova disciplina do arquivamento da investigação criminal no artigo 28 do Código de Processo Penal. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, v. 7, nº 5, p. 2253-2284. nº 1.

Autores

  • é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

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