Opinião

A greve política no direito brasileiro: uma breve aproximação

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19 de maio de 2022, 6h04

Questão controvertida no âmbito da Seção de Dissídios Coletivos (SDC) do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a constitucionalidade da denominada "greve política" segue suscitando debates e reflexões no ambiente acadêmico. Em recente seminário realizado no curso de Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios, promovido por importante instituição de ensino da nossa Capital da República (Iesb), o tema foi novamente enfrentado, proporcionando um interessante e rico debate entre os participantes.

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Ministro do TST Douglas Alencar Rorigues

Como se sabe, a greve, como típico fato social, encerra o momento maior de crise nas relações entre trabalhadores e empregadores. Reconhecida como direito fundamental após longa e lenta evolução histórica, a greve é elemento constitutivo dos postulados fundamentais da liberdade sindical e do direito de negociação coletiva, representando um importante instrumento de ação dos trabalhadores. Seu propósito legítimo, portanto, corresponde à revisão das condições de trabalho, que se devem manter equilibradas em direitos e obrigações, evitando-se iniquidades e assegurando-se a justa retribuição pelo trabalho prestado.

Nas relações de trato sucessivo, são naturais e mesmo necessárias as revisões periódicas do conteúdo dessas obrigações, como forma de preservar o equilíbrio essencial à sua própria manutenção. Ao trabalho prestado segue-se o dever da quitação salarial respectiva, mas o equilíbrio da relação "capital-trabalho" não se exaure nessa simples equação objetiva, na medida em que os processos econômicos inflacionários e as oscilações econômicas mais amplas, conjunturais ou estruturais, geram desajustes expressivos, obrigando empresas a revisar os conteúdos dos contratos firmados com fornecedores, consumidores e trabalhadores, em muitos momentos como condição para a própria sobrevivência da atividade empresarial.

A alternativa à ausência de recomposição voluntária das obrigações contratuais, em cenários de retração econômica ou insucesso circunstancial da empresa, seria a renegociação judicializada, no contexto do processo estrutural regulado pela Lei 11.101/2005.

No caso dos contratos de trabalho, particularmente, a negociação coletiva, compreendida como direito fundamental dos trabalhadores (CF, artigo 7º., XXVI), cumpre o relevante propósito de harmonizar os interesses de trabalhadores e empregadores, permitindo tanto a revisão dos contratos "in pejus" aos trabalhadores, quanto à ampliação de conquistas, em tempos de retração ou expansão da atividade econômica, no exercício legítimo da autonomia negocial coletiva, assegurada constitucionalmente aos atores sociais. Conduzidas as negociações coletivas com transparência, responsabilidade e boa-fé, trabalhadores e empregadores podem alcançar e preservar seus legítimos interesses, evitando-se os danos ligados ao encerramento das atividades empresariais, ao desemprego e agravamento da crise social.

Portanto, nesse cenário complexo de defesa dos valores sociais no mundo do trabalho, a greve representa importante meio de pressão voltado à construção de novas condições de trabalho e consequente melhoria da condição social dos trabalhadores. Desde a sua origem, a paralisação coletiva e temporária do trabalho conecta-se a esse objetivo de correção de injustiças e iniquidades decorrentes das condições em que o trabalho é prestado, voltando-se contra empresa ou grupos de empresas que integram segmentos econômicos determinados.

No âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ainda não foi editada convenção internacional voltada à disciplina do direito de greve. Referências indiretas ou implícitas, resultantes do princípio da liberdade sindical, são identificadas em preceitos de algumas de suas Convenções.

É preciso reconhecer, porém, que o direito de greve compõe o conjunto de medidas inerentes à ação sindical — certamente a mais expressiva delas —, que se deve desenvolver de forma livre e responsável, sem ingerências de quaisquer espécies, públicas ou privadas.

Apesar da ausência de convenção especificamente voltada à regulação do direito de greve, no âmbito do Comitê de Liberdade Sindical da OIT registram-se diversas decisões a respeito do seu exercício. Cabe recordar que esse Comitê, criada em 1951 pelo Conselho de Administração da OIT, possui competência para examinar as alegações de transgressão aos princípios da liberdade sindical e do direito de negociação coletiva, em contextos nacionais específicos, propondo medidas entendidas cabíveis ao Conselho de Administração da OIT. Suas decisões, portanto, porque extraídas dos princípios fundamentais da liberdade sindical e da negociação coletiva, representam fonte valiosa de estudo e pesquisa.

No direito brasileiro, o tratamento da greve seguiu o mesmo processo histórico-evolutivo observado em outros países: inicialmente compreendida como fato típico ou um autêntico delito, previsto no Código Penal de 1940 (artigo 201), passou a ser tolerada nas "atividades acessórias", com restrições, em 1946 (Decreto 9.070), sendo, finalmente, reconhecida e proclamada como direito ainda no ano de 1946, embora com eficácia limitada (CF de 1946, artigo 158).

Nada obstante, apesar de incorporada à ordem constitucional, as restrições de ordem cultural e política à greve impediram a edição da norma regulamentadora prenunciada pelo legislador constituinte de 1946, o que fez projetada por longos anos a vigência do Decreto 9.070, de 1946.

Apenas em 1964, já no contexto do regime de exceção que se implantou, sobreveio a Lei 4.330, que regulamentou o direito de greve em termos mais abertos, ou menos restritivos, que o antigo Decreto 9.070, de 1946. Logo em 1967, no entanto, com a Carta Política do referido regime, estabeleceu-se no § 7º do artigo 157, que "Não será permitida a greve nos serviços púbicos e atividades essenciais, definidas em lei". Ainda em 1969, com o Decreto-Lei 898, previu-se a punição para aqueles que transgredissem o artigo 157, § 7º, da CF de 1967, bem assim para as greves com finalidades ou motivações políticas ou que fizessem "propagandas subversivas ou que se mostrassem solidárias com uma dessas causas.

Apesar dessas restrições normativas, a greve, como fato social, acabou rompendo as amarras impostas pelo direito e pela política, consolidando-se a partir de 1978, nos movimentos sindicais do ABC paulista, como principal instrumento de luta e reivindicação dos trabalhadores. Em 1978, aliás, foram registradas 118 paralisações de trabalhadores, o que levou o Estado a editar novos atos normativos, entre eles o Decreto-lei 1.632, de agosto daquele ano, vedando a greve nos serviços públicos e nas atividades essenciais de interesse da segurança nacional. Ainda no mesmo ano, sobreveio a Lei 6.620, responsável por definir os crimes contra a segurança nacional, fixando as respectivas sanções. Nesse último diploma, conceituou-se como crime a conduta que impedisse ou dificultasse o funcionamento de serviços essenciais administrados pelo Estado ou que fosse objeto de concessão, autorização ou permissão (artigo 27).

A respeito da greve política, cabe recordar que a Lei 4.330/64 dispunha, em seu artigo 22, III, que seria declarada ilegal as paralisações coletivas de trabalhadores que, entre outras hipóteses de ordem formal ou circunstancial, fossem deflagradas "(…) por motivos políticos, partidários, religiosos, sociais, de apoio ou solidariedade, sem quaisquer reivindicações que interessem, direta ou legitimamente, à categoria profissional".

Com o advento da Constituição de 1988, proclamou-se amplamente o reconhecimento do direito de greve, reservando-se aos trabalhadores a definição da oportunidade de seu exercício e dos interesses que deveriam ser tutelados. Foram ainda resguardadas as atividades essenciais, em relação às quais afirmado o dever de preservação mínima das atividades destinadas a atender os interesses comunitários, nos termos de lei a ser editada, bem assim foi fixada a responsabilidade por eventuais danos causados no contexto dos movimentos paredistas (artigo 9º, I e II).

Do confronto analítico entre o texto do art. 22, III, da Lei 4.330/64 com o artigo 9º da CF de 1988 parece irrecusável a conclusão de que não foram lançadas ressalvas ou limites materiais para o exercício do direito de greve, estando os trabalhadores absolutamente libertos para deflagrar greves pelas mais variadas razões que considerem relevantes, estejam elas ou não ligadas direta ou indiretamente a seus vínculos jurídicos funcionais. Seriam eles, portanto, titulares do direito irrestrito de definir quando e por quais razões deveriam promover a paralisação do trabalho, sem que seus respectivos empregadores pudessem se opor ou resistir, embora sejam os destinatários diretos das consequências econômicas desses movimentos.

Em 1989, com o advento da Lei 7.783, o exercício do direito de greve foi regulamentado, além de definidas as atividades essenciais.

As greves com pautas essencialmente políticas, no entanto, seguem sendo deflagradas, o que tem levado o TST a decidir reiteradamente pela abusividade desses movimentos, com isso desonerando o empregador do pagamento dos salários e demais vantagens aos trabalhadores grevistas.

O fundamento central dessas decisões — que não são tomadas à unanimidade, frise-se — reside na circunstância de que as greves são dirigidas contra o Poder Público e com objetivos direcionados à proteção de interesses que não podem ser atendidos pelo empregador. Em outras palavras, o exercício do direito de greve, nessas circunstâncias, estaria sendo exercido à margem de sua finalidade própria.

Os julgadores que não subscrevem essa linha decisória e formam a corrente minoritária ponderam, em rigorosa síntese, que a Constituição não vedou a greve para defesa de interesses não diretamente vinculados aos contratos de trabalho, mas que guardam algum vínculo remoto com esses negócios jurídicos.

Assim, por exemplo, greves contras as Reformas Trabalhista e Previdenciária seriam casos típicos de greves políticas legítimas, em face das repercussões que podem produzir nas condições de trabalho.

Parece certo, então, que o foco da greve política estaria vinculado ao próprio exercício da cidadania por parte dos trabalhadores, o que, longe de receber qualquer censura, haveria de ser aplaudido e estimulado, por ampliar os canais de expressão da cidadania.

Nesse quadro complexo, a resposta para a questão delicada da admissão constitucional da greve política parece reclamar um olhar abrangente da nossa ordem constitucional, inclusive porque os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa não podem, ou não devem, ser lidos e compreendidos de forma absolutamente antagônica, lançando seus respectivos protagonistas ao palco social como autênticos opositores.

De forma breve e objetiva, pode-se afirmar que nossa Carta Política está estruturada em nove Títulos, precedidos do Preâmbulo e secundados pelo Ato das Disposições Transitórias.

No Título II, consta o rol de Direitos e Garantias Fundamentais, que está dividido em 5 capítulos. A par de reconhecer no Capítulo I os direitos e deveres individuais e coletivos, entre os quais a liberdade de expressão do pensamento, os direitos de associação e de reunião pacífica e sem armas, no Capítulo II, ainda do Título II, constam os direitos sociais, nos quais situados aqueles ligados ao mundo do trabalho, entre eles a greve.

Ainda nesse mesmo Capítulo II, definiu-se a organização sindical e estabeleceu-se a vocação dos sindicatos, declarados libertos de quaisquer amarras estatais, para a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas. A referência aos interesses da categoria deve ser remarcada, pois a expressão "categoria" tem sentido sociológico próprio, recebendo clara conceituação nos §§ do artigo 511 da CLT.

Parece irrecusável, por isso, a conclusão de que a atuação dos sindicatos está ou deve estar, como sempre esteve desde a sua origem, conectada aos interesses das categorias profissionais e econômicas que representam, nessa dinâmica própria de reacomodação de interesses decorrentes dos contratos de trabalho firmados em seus âmbitos de representação.

É preciso reconhecer, então, a existência de um espaço institucional próprio para as organizações sindicais, que está diretamente vinculado à melhoria da condição de vida ou de trabalho de seus representados, dentro do qual será lícito usar a greve como meio pacífico para a resolução de eventuais conflitos de interesses.

Não se nega, por óbvio, que as entidades sindicais possam, eventualmente, com base em seus estatutos ou decisões assembleares, abraçar pautas outras, diversas ou mais abrangentes, não apenas voltadas ao universo das relações de trabalho, mas ligadas à revisão do cenário jurídico ou da política econômica, com reflexos nas condições de vida de seus representados.

Nesses casos, porém, o uso da greve não parece adequado, pois estaria sendo exercitado contra quem não se pode defender e que sofre os efeitos que decorrem da paralisação das atividades, conforme a jurisprudência reiterada do TST. Essa realidade contraria inclusive um dos princípios mais fundamentais do direito, qual seja, o de não causar danos ou lesar alguém ("neminem laedere"). E o uso abusivo de um direito, verificado quando exercido fora dos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, configura ato ilícito, suscetível de gerar o dever de reparação (CC, artigo 187), como, aliás, expressamente prevê a própria Lei de Greve (artigo 15 da Lei 7.783/89).

No modelo constitucional brasileiro, a ordem econômica e a ordem social estão estruturadas e são diretamente dependentes da livre iniciativa, figurando o Estado como agente subsidiário, apenas autorizado a atuar no campo econômico em casos excepcionais previstos na Constituição ou vinculados à segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (artigo 173). O fato de o Estado ser o principal gestor de programas e políticas públicas ligados à realização de direitos sociais de cunho "prestacional" não significa que a proteção à atividade empresarial possa ser relegada, inclusive porque traduz expressão do próprio direito fundamental da livre iniciativa.

Portanto, se o sucesso da atividade econômica é essencial para que o empregador possa honrar suas obrigações, inclusive e especialmente as trabalhistas, a greve política, por si só, encerra contradição insuperável com o interesse dos próprios trabalhadores. Arrefecer a atividade empresarial e gerar prejuízos ou perda de receitas às empresas em razão de greves políticas significa gerar prejuízos aos próprios trabalhadores, portanto. E a preocupação com a melhor proteção à atividade econômica está posta de modo expresso nas recentes Leis 11.101/2005, 13.874/2019 e 14.112/2020.

As lutas por democracia em sentido amplo, os embates contra reformas legislativas pontuais, contra medidas de política econômica ou pela realização do projeto civilizatório inscrito na Carta Política, pouco importa, não podem se apropriar do instrumento das greves.

Nem mesmo o caso da Reforma Trabalhista, alvo das recentes Leis 13.429 e 13.467, ambas de 2017, e invocada por alguns como caso típico de greve política legítima, parece justificável. Afinal, se o empregador não possui poder decisório no processo político, a paralisação de suas atividades por iniciativa coletiva dos trabalhadores mostra-se inefetiva e apenas geradora de prejuízos econômicos, com danos aos interesses dos próprios grevistas, como já assinalado.

Ainda que indesejado, o risco de retrocessos eventuais em razão das opções produzidas na arena congressual não legitima a greve política, como se os impactos resultantes dessas paralisações sobre o ambiente de produção e geração de riquezas fossem, por si sós, capazes de alterar os rumos das deliberações políticas tomadas em fóruns diversos.

A ação sindical contra inovações legislativas trabalhistas reputadas prejudiciais podem ser questionadas na própria arena parlamentar ou, sucessivamente, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), por uma das vias adequadas ao controle concentrado de constitucionalidade. Ainda, tais inovações, se efetivadas, podem ser debatidas junto aos próprios empregadores, mas no contexto das negociações coletivas, como se tem observado, por exemplo, no caso das horas de percurso, que foram legalmente suprimidas, mas que seguem preservadas em muitas convenções e acordos coletivos de trabalho, nos moldes da própria Constituição (artigo 7º, XXVI).

No já referido Título II da Constituição de 1988 foram disciplinados os direitos políticos, estabelecendo-se que a soberania será exercitada pelo voto periódico, secreto, obrigatório e universal ou ainda, de forma direta, pelo plebiscito, referendo ou iniciativa legislativa popular (artigo 14).

Não há previsão de greve política como instrumento legítimo de articulação e defesa de interesses trabalhistas perante as instâncias políticas decisórias. Ainda que os sindicatos sejam espaços institucionais importantes de discussão e reflexão da agenda política nacional, a greve, com seu sentido histórico e sua vocação própria, não pode ser apropriada como instrumento de luta para além das balizas da Constituição.

Quadros de grave crise e de grande comoção nacional, que afetem toda a sociedade, não se confundem com a greve em seu sentido clássico, adequado ao ambiente "capital-trabalho", sendo absolutamente salutar que a cidadania se manifeste sobre os temas relevantes da agenda nacional, mas sem que se possa afirmar o dever empresarial de pagar salários e vantagens durante essas ausências voluntárias ao trabalho (CF, artigo 5º, II c/c o artigo 473 da CLT), salvo ato patronal voluntário ou negociação coletiva nesse sentido (CF, artigo 7º., XXVI).

A eventual crise de representatividade do sistema político não torna legítimo o desvio da rota democrática, transformando sindicatos em partidos políticos ou juízes em legisladores. Que as articulações políticas ocorram, livremente, como é saudável ao processo democrático, mas em espaços e momentos compatíveis com os interesses coletivos, sem danos a terceiros ou à toda a sociedade.

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