Opinião

A responsabilização dos provedores de conteúdo e o RE 1.037.396/SP

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17 de maio de 2022, 7h02

Em São Paulo, um juiz determina que um grande portal de vendas restabeleça o acesso de um vendedor cadastrado no site, sob pena de multa diária. O comerciante havia sido bloqueado após o provedor de conteúdo receber notificações que davam conta da violação da marca de terceiros.

A pouco mais de mil quilômetros dali, um juiz brasiliense condena outro portal de vendas por permitir a veiculação de anúncio que continha fotografia do autor sem sua autorização. A publicidade havia sido inserida por um vendedor credenciado ao site, que apenas serviu de local de exposição.

Ambos os casos são reais e, em comum, tratam de portais (concorrentes) de marketplace, uma espécie de shopping center virtual que agrega anúncios veiculados por milhares de vendedores, de pequeno, médio ou grande porte. É o sistema de vendas que passou a permitir que, nos últimos anos, passássemos a poder comprar, num mesmo site, de itens de higiene pessoal a maquinário industrial, com prazos de entrega de pouquíssimos dias, ou, mesmo, de algumas horas.

O tratamento conferido à questão da responsabilidade por conteúdo veiculado por parceiros, em cada um dos casos, por outro lado, é oposto e sintetiza a severa divergência jurisprudencial existente nos diversos tribunais brasileiros. No primeiro exemplo, o portal de marketplace foi penalizado por exercer o controle do conteúdo veiculado por terceiro, enquanto, no segundo exemplo, seu concorrente foi condenado justamente por deixar de realizar aquele controle proativo.

Divergências sobre aplicação do Marco Civil da Internet
A atuação errática do Poder Judiciário sobre o tema parece criar uma zona de incerteza, em que, qualquer que fosse a conduta adotada pelo portal de marketplace, estar-se-ia sujeito a ser responsabilizado. A Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, teve o objetivo de lançar luz sobre essas áreas de penumbra, mas, passados oito anos, remanescem, ainda, desconhecimento sobre a operação de marketplace, por parte de alguns, e divergências teóricas por parte de outros.

O artigo 19 daquela lei [1] utiliza fórmula curiosa e pouco usual ao justificar-se antes de enunciar o comando legal: "com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura (…)". Não era para menos. O texto que viria depois pretendia encerrar acalorado debate doutrinário sobre a conduta esperada dos provedores de conteúdo e a extensão da responsabilidade deles diante de violações cometidas pelos respectivos usuários.

Nesse sentido, o Marco Civil da Internet, expressamente, adotou como fórmula a exigência de "ordem judicial específica" para que fosse exigível a remoção de conteúdo pelo provedor. Apenas o descumprimento daquela ordem judicial seria capaz de atrair a responsabilidade civil do provedor.

O regramento nacional está em linha com o que dispõem, por exemplo, a Section 230 do Communications Decency Act, dos Estados Unidos, e os parágrafos 8º a 11 da Lei dos Serviços à Distância, da Alemanha [2]. É, de fato, o modelo que melhor assegurar(ia) a liberdade de expressão e impedir (ia) a censura, tal qual prometido pela redação do artigo 19.

Parte respeitável da doutrina nacional e internacional, àquela altura, defendia a política de notice and take down [3]. Neste modelo, o simples envio de notificação extrajudicial pelo ofendido já geraria, para o provedor, a obrigação de suprimir o conteúdo ilícito, sob pena de ser responsabilizado civilmente.

Já a corrente que, por fim, foi prestigiada pelo Marco Civil da Internet alertava sobre os riscos do chamado chilling effect (efeito resfriador), consistente no bloqueio excessivo de conteúdo pelos provedores, diante do temor pela responsabilização.

Ainda que a discussão sobre a responsabilidade dos portais intermediadores de vendas parecesse resolvida após a edição do Marco Civil da Internet, persiste, ainda hoje, considerável divergência jurisprudencial. Isso é potencializado pela natureza da relação jurídica, que leva uma mesma empresa a ser demandada em todos os tribunais do país [4].

Nos exemplos que introduziram o presente artigo, identifica-se a adoção literal do disposto no Marco Civil da Internet pelo juiz paulista, enquanto, no Distrito Federal, conferiu-se interpretação ainda mais rigorosa que o método notice and take down, uma vez que, naquele caso concreto, sequer havia sido enviada notificação extrajudicial para o provedor de conteúdo.

Da constitucionalidade do artigo 19
A divergência teórica sobre o tema  latente após a edição do Marco Civil da Internet  ganhou fôlego com o reconhecimento de repercussão geral à questão discutida no Recurso Extraordinário n° 1.037.396/SP. Aquele recurso foi interposto pelo Facebook contra decisão pela qual havia sido condenado ao pagamento de indenização por danos morais em razão da criação de perfil falso que usava dados da autora.

A decisão impugnada, além de responsabilizar o provedor de conteúdo antes mesmo da prolação de decisão mandamental, pressupõe a realização de fiscalização proativa dos conteúdos postados. O julgamento do recurso extraordinário em repercussão geral  que já foi incluído na sessão de julgamento do dia 24 de junho de 2022  irá, então, apreciar a constitucionalidade do artigo 19, do Marco Civil da Internet.

Do ponto de vista dos provedores de conteúdo, a perspectiva com aquele julgamento é ambígua. Por um lado, o dispositivo legal sob análise, limitador de sua responsabilidade, goza, atualmente, de presunção de constitucionalidade, que pode vir a ser afastada por acórdão proferido em repercussão geral.

Por outro lado, apesar do Marco Civil da Internet encontrar-se em plena vigência, ao menos em relação à limitação da responsabilização dos provedores de conteúdo, ela vem sendo sistematicamente negada por diversos tribunais nacionais.

O julgamento do recurso extraordinário trará uma nova oportunidade de se conferir segurança jurídica às relações na internet, seja ratificando a constitucionalidade do artigo 19, do Marco Civil da Internet, ou limitando seu campo de incidência.

Neste sentido, há, em sede doutrinária, quem defenda tratamento diferenciado para diferentes tipos de violações, como já ocorre com os conteúdos de natureza sexual (artigo 21). Mesmo Anderson Schreiber [5], notável defensor da inconstitucionalidade do artigo 19, reconhece que o chamado efeito resfriador possui especial impacto sobre os conteúdos que violem direitos autorais, diante da dificuldade de realização de monitoramento eficaz e razoável pelas plataformas digitais.

Do ímpacto da decisão do STF
No caso específico das provedoras de marketplace, em caso de regresso ao modelo de notice and takedown, pode-se esperar intensa reformulação no mercado de ecommerce, com a diminuição no grande número de atores que integram este ambiente nos dias de hoje.

No âmbito das redes sociais, a veiculação de postagens abusivas costuma estar atrelada ao discurso de ódio ou propagação de fake news, podendo ser identificada pela análise intrínseca da própria publicação.

Já as plataformas de marketplace veem-se desafiadas pelas violações de marcas e patentes, que, por sua natureza, são de difícil monitoramento e fiscalização, já que, para isso, demandariam análise técnica rebuscada do produto anunciado.

Por exemplo, a tecnologia aplicada para a simples veiculação de anúncio de uma cadeira ou de um pulverizador agrícola é a mesma, mas o mecanismo para identificação dos requisitos de proteção das patentes (novidade, inventividade e aplicação industrial) seria distinto.

Com certa facilidade, poder-se-ia projetar dois efeitos imediatos e indesejados do controle prévio de anúncios pelas plataformas de marketplace: a redução do espectro de produtos comercializados e a eliminação de pequenos vendedores.

Naturalmente, alguns mercados apresentam níveis de competitividade e de litigiosidade maiores que outros. Seria, então, para as plataformas de vendas, mais interessante engajar-se em mercados que possibilitem uma fiscalização mais facilitada.

Por sua vez, os grandes vendedores e fabricantes, por meio da prática de supernotificação, seriam capazes, simplesmente, de eliminar os pequenos players que representassem uma concorrência inconveniente.

Na perspectiva do notice and take down, os pequenos anunciantes veem-se em posição de vulnerabilidade. As naturais dificuldades de apuração pelas plataformas de marketplace tendem a resultar na exclusão automática do conteúdo, quando solicitado por grandes fornecedores. Decerto, as plataformas não possuem qualquer estímulo para resistir à pretensão dos agentes de mercado que podem gerar numerosas e custosas demandas com pedidos indenizatórios.

Portanto, o julgamento do recurso, com repercussão geral, promete representar um passo importante na regulamentação do uso da internet. O Marco Civil da Internet, editado em 2014, conferiu contornos objetivos à responsabilidade civil no ambiente virtual, mas sua capacidade de pacificar o dissenso existente em sedes doutrinária e jurisprudencial foi relativa.

O Superior Tribunal de Justiça, nos últimos anos, deu importante contribuição para o tema, ratificando em diversos julgados a necessidade de notificação judicial para exclusão de conteúdo pelo provedor de conteúdo. Mas a prolação de decisão com efeito vinculante pelo STF, finalmente, trará previsibilidade para os usuários, plataformas e comerciantes que atuam online.


[1] Artigo 19, da Lei 12.965/2014: "Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário".

[2] Dias, Daniel. Algumas questões relevantes para o atual debate sobre a (in) constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/363020/a-in-constitucionalidade-do-art-19-do-marco-civil-da-internet>.

[3] Tepedino, Gustavo [et al]. Fundamentos do Direito Civil: volume 4  Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

[4] RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO COMINATÓRIA E INDENIZATÓRIA. PRETENSÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS DERIVADOS DA PRÁTICA DE CONCORRÊNCIA DESLEAL. DIREITO MARCÁRIO E DIREITO AUTORAL. COMPETÊNCIA. FACULDADE DO AUTOR DE OPTAR PELO FORO DE SEU DOMICÍLIO. PRECEDENTES. (STJ; Resp n° 1.400.785/RS; Terceira Turma; relatora Nancy Andrighi; Julgado em 08/11/2016)

[5] SCHREIBER, Anderson. Marco Civil da Internet: Avanço ou Retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira. Direito e Internet III: Marco Civil da Internet — tomo II. São Paulo: Quartier Latin, p. 277-305, 2015. No mesmo sentido, QUEIROZ, João Quinelato de. Responsabilidade civil na Rede: danos e liberdade à luz do marco civil da internet. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019.

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