Opinião

Modelos de negócios disruptivos: alguns efeitos colaterais

Autor

  • Tatiana de Almeida Granja

    é mestre em Direito Informático pela Universidade Complutense de Madrid pós-graduada lato sensu em Direito Mercantil pela Universidade de Salamanca especialista em Direito do Estado pelo JusPodivm e assessora de um magistrado na Justiça Federal de Primeiro Grau na Bahia.

15 de maio de 2022, 15h42

De acordo com o pensador alemão Klaus Schwab, desde o final do século 21, estamos vivendo o início da 4ª Revolução Industrial. Em virtude da combinação de internet com inteligência artificial e aprendizagem automática, a revolução digital alcançou todos os setores da vida [1].

De um lado, essa tecnologia digital viabilizou modelos de negócios disruptivos, com vantagens inusitadas e excepcionais. Dentre elas, destacamos as plataformas tecnológicas (tais como Uber e Airbnb) e os marketplaces (tal como Amazon).

Por outro lado, surgem efeitos colaterais. Por atuarem em distintos países do planeta, de forma transfronteiriça, os novos modelos de negócios estão submetidos  simultaneamente  a diversos ordenamentos jurídicos e jurisdições. Todavia, os proprietários das plataformas tecnológicas e marketplaces desconsideram as consequências decorrentes da transnacionalidade e, simplesmente, impõem um tratamento uniforme a todos, com base  exclusivamente  nas próprias autorregulamentações. Desse modo, esses negócios disruptivos geram uma renda exorbitante para si, em detrimento dos agentes envolvidos. Além disso, deixam de oferecer um standard mínimo protetivo aos profissionais e aos consumidores.

Ora, para harmonizar esse complexo de interesses, concretizando a função social desses modelos de negócios disruptivos, é impossível a adoção de uma solução simplista.

Entretanto, curiosamente, esse cenário intrincado  provocado por questões transnacionais  é familiar. Trata-se de um verdadeiro déjà vu, déjà connu.

Na década de 1940, logo após os horrores do holocausto, iniciou-se uma reação mundial, a fim de impedir que tais atrocidades se repetissem. A partir de então, foram celebrados vários tratados internacionais de direitos humanos, que foram ratificados pelo Brasil. Dentre elas, destacam-se as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que foram internalizadas pelo ordenamento jurídico pátrio e têm sido observadas pelas empresas aqui situadas.

Mais adiante, na década de 1990, com a integração dos mercados internacionais, houve um aprofundamento do processo de globalização econômica. Esta transnacionalidade gerou um deslocamento da criminalidade de rua (street crime) para a criminalidade corporativa (corporate crime). Inclusive, algumas empresas internacionais – tais como a Volkswagen, Wall Mart e Parmalat  cresceram muito a ponto de construírem patrimônios superiores ao produto interno bruto (PIB) de vários países. Logo, nenhum Estado  atuando isoladamente  foi capaz de enfrentar o gigantismo da criminalidade corporativa. Diante disso, iniciou-se uma justiça penal colaborativa, em que o Estado passou a contar com a cooperação das organizações internacionais. A partir daí, surgiram, no Brasil, dentre outros, os institutos do gatekeeper (especialmente para coibir a lavagem de dinheiro) e dos programas de compliance (notadamente para combater a corrupção). Estas figuras  embora voltadas, inicialmente, apenas para a persecução penal  têm aptidão para conferir segurança aos novos modelos de negócios.

Ainda na década de 1990, constatou-se que os dados pessoais são "o novo petróleo". Neste espírito, na União Europeia, foram criadas várias diretivas e leis nacionais de proteção aos dados pessoais. Recentemente, em 2016, elas foram revogadas e substituídas pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), que estabeleceu parâmetros mínimos de tutela aplicáveis ao Espaço Econômico Europeu. Do outro lado do Atlântico, no Brasil, em 2018, a norma europeia inspirou a criação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Assim, ao se adequarem à LGPD, as organizações brasileiras também estão se ajustando às balizas do RGPD, o que as habilita a efetuar transações comerciais internacionais com o clube dos países ricos. Além disso, naturalmente, tal adequação promove uma tutela mínima aos agentes envolvidos, que se sujeitam à jurisdição pátria.

Portanto, nessa breve digressão histórica — envolvendo o Direito Internacional Humanitário, o Direito Penal e o Direito Civil , resulta claro que os recursos estatais são insuficientes para lidar com as questões transnacionais, especialmente com os inconvenientes dos modelos de negócios disruptivos. Desta sorte, é imprescindível repensar as estratégias de controle jurídico do comportamento corporativo socialmente danoso.

Do ponto de vista material, não bastam tratados internacionais sobre a matéria. É, de fato, necessária a elaboração de leis nacionais sobre o tema, a fim de assegurar uma proteção mínima a todos os atores econômicos sob a jurisdição pátria. Assim, em um diálogo das fontes, tal como preceitua o jurista alemão Erik Jayme, as cláusulas de compatibilização permitem a aplicação da norma mais adequada ao caso concreto, em atenção ao princípio internacional pro homine.

Para tanto, naturalmente, devem ser consideradas as consequências práticas de cada decisão (artigo 21, caput, da LINDB), inclusive para evitar o bis in idem transversal de penalidades (artigo 22, §3º, da LINDB), ou seja, a superposição de sanções civil, administrativa e criminal.

Tampouco se pode perder de vista a necessidade de criação de um regime transição (artigo 23 da LINDB), em atenção à segurança jurídica e à boa-fé (artigo 30 da LINDB c/c artigo 422 do CC), que são tão caras aos novos modelos de negócios transnacionais.

Por sua vez, do ponto de vista processual, as questões decorrentes dos novos modelos de negócios geram um problema estrutural, que precisa ser  ao menos  contornado. Acerca do tema, vale conferir a definição do professor Fredie Didier Jr [2]:

"O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada  uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação).
Estado de desconformidade, como dito, não é sinônimo necessariamente de estado de ilicitude ou de estado de coisas ilícito. Estado de desconformidade é situação de desorganização estrutural, de rompimento com a normalidade ou com o estado ideal de coisas, que exige uma intervenção (re) estruturante. Essa desorganização pode, ou não, ser consequência de um conjunto de atos ou condutas ilícitas."

Para minimizar os efeitos deletérios de tais problemas estruturais, é possível aplicar as regras de direito internacional privado, levando em conta  como elemento de conexão  a lei do país de constituição da obrigação (artigo 9º da LINDB).

Ademais, é possível invocar precedentes estrangeiros. Nessa linha de intelecção, é importante recordar que a sentença estrangeira e a decisão interlocutória estrangeira são títulos executivos judiciais, desde que haja, respectivamente, homologação e concessão de exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça (artigo 515, VIII e IX, do CPC). Entretanto, tais formalidades serão dispensadas no caso de existência de tratado internacional sobre o assunto (artigos 960 e 961 do CPC). No Brasil, isto ocorre, no âmbito do Mercosul, desde a vigência do Protocolo de Las Leñas, em 2009.

Além disso, no caso de colisão entre normas, deve ser aplicada a técnica de ponderação idealizada pelo jurista alemão Robert Alexy¸ que inspirou a regra positivada no atual Códex (artigo 489, §2º, do CPC).

Enfim, à guisa de conclusão, é importante ressaltar que inexiste uma solução única. As distintas propostas ora apresentadas — em lugar de excludentes entre si  são complementares e passíveis de ajustes, conforme as singularidades do caso concreto. Afinal, desde o século 19, o poeta português Fernando Pessoa já havia constatado que  embora navegar (inclusive na Internet!) seja preciso  viver não é preciso.


[1] SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial; tradução Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016, p. 16.

[2] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Disponível aqui. Acesso em 17 de abril de 2022.

Autores

  • é mestre em Direito Informático pela Universidade Complutense de Madrid, pós-graduada lato sensu em Direito Mercantil pela Universidade de Salamanca, especialista em Direito do Estado pelo JusPodivm e assessora de um magistrado na Justiça Federal de Primeiro Grau na Bahia.

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