Opinião

MP 1.085: uma nova monarquia ou solução via Senado?

Autor

  • Armando Rovai

    é advogado presidente da Comissão Especial de Direito de Empresa da OAB-SP ex-presidente da Junta Comercial-SP e do Ipem-SP ex-secretário nacional do Consumidor (Senacon) e doutor pela PUC-SP.

13 de maio de 2022, 9h13

Rubicão era o nome do pequeno rio, no centro da Gália, que separava a Gália Cisalpina do território administrado diretamente pela própria Roma. A lei romana proibia qualquer pessoa de atravessar esse rio com um Exército, a menos que por ordens do Senado.

Em 10 de janeiro de 49 a.C, Júlio violou as leis romanas, desafiou o Senado e atravessou o pequeno Rubicão com suas legiões.

Pois bem, a MP 1.085 atravessa um importante Rubicão de nossa frágil República. Envolta em uma cortina de fumaça retórica sobre "desburocratização", ela transfere poderes normativos e poderes executivos para o Poder Judiciário, mais precisamente para um único conselheiro, dos 15 que compõem o Conselho Nacional de Justiça.

Um único conselheiro de dentro do CNJ, nas matérias de propriedade, garantias e seus registros, terá mais poderes que todo o Congresso e que o presidente da República.

A Constituição proíbe tudo isso. Separação de poderes significa que o juiz diz o direito no conflito, o Legislativo cria a norma abstrata e o Executivo toma decisões práticas, um modelo de freios e contrapesos.

Separação de poderes e legalidade são cláusulas pétreas.

 O Congresso abriu mão da legalidade e de suas próprias prerrogativas democráticas ao aprovar a MP 1.085 sem sequer examinar o que nela há de mais grave, a destruição da legalidade e da separação entre poderes.

O CNJ tem a nobre e constitucional missão, definida na ADI 3.367, de fazer o controle da legalidade interna da magistratura. Não é constitucional que a Corregedoria do CNJ, 1/15 deste órgão, possua poderes normativos e executivos. Não é normal que essa delegação inconstitucional de poderes ocorra, por medida provisória, sem reação da sociedade ou do Poder Legislativo.

Paradoxalmente, o CNJ foi criado justamente para o controle da legalidade interna do Poder Judiciário. Em tese, se alguma corregedoria estadual passasse a criar normas abstratas, caberia ao CNJ anular essas medidas, recompondo o Estado de Direito. Agora o Conselho Nacional de Justiça, composto de juristas de escol, se vê diante de uma MP que traz em si inconstitucionalidades que qualquer aluno de primeiro semestre de Direito Constitucional sabe identificar como tal.

O Senado, que recebe a MP 1.085 para o derradeiro exame, tem diante de si a mesma escolha que Roma se viu obrigada a fazer, milhares de anos atrás: fazer valer a república ou deixar instalar-se uma novel monarquia.

Há conserto para a MP 1.085.

De maneira geral: é preciso retirar toda delegação de competência legislativa e executiva outorgada aos órgãos do Poder Judiciário.

Para o registro de bens móveis: urge resguardar o direito do credor de uma garantia sobre bem móvel, de obter registro no seu próprio domicílio. Crédito sem risco é crédito com a garantia registrada, de maneira mais conveniente possível, no cartório mais próximo do contrato.

Para o registro de bens imóveis: urge proibir a apresentação de resumos digitais, os extratos, como títulos nos registros de imóveis. O contrato original deve ser examinado no cartório, sob pena de abrirmos a propriedade imobiliária para todo tipo de fraudes e erros.

O direito à proteção de dados pessoais, necessário em uma sociedade digital, precisa ser respeitado. Trata-se de direito fundamental aprovado por unanimidade pelo Congresso. Os dados das pessoas e empresas confiados aos cartórios somente podem ficar nos próprios cartórios, jamais em terceiras entidades.

Cartórios devem ter viabilidade econômica, de um lado, e a sociedade não deve pagar emolumentos exorbitantes, de outro.

 Por fim, a delegação de cartório é uma privatização. Os registradores e notários são responsáveis e independentes na prestação de seus serviços, inclusive eletrônicos. Fazer um projeto nacional de estatística, com o IBGE, e um projeto nacional de interoperabilidade, com o Ministério de Ciências e Tecnologia, seria mais eficiente e constitucional. Não é evidente?

Mais uma vez, cabe ao Senado, experiente, o cuidado de aprimorar a República.

Autores

  • é professor de Direito Comercial do Mackenzie e da PUC-SP, ex-presidente da Junta Comercial-SP e do Ipem-SP, ex-secretário nacional do Consumidor (Senacon) e doutor pela PUC-SP.

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