Opinião

Lições do "caso Lula" no Comitê de Direitos Humanos

Autor

  • André de Carvalho Ramos

    é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (largo São Francisco) professor titular e coordenador de mestrado em Direito stricto sensu da Escola Alfa Educação e procurador regional da República.

9 de maio de 2022, 14h02

Recentemente (27/3/2022), o Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) apreciou petição de Luiz Inácio Lula da Silva, apresentada em 28 de julho de 2016, contra o Brasil por violações dos artigos 9.1 (direito à liberdade),14.1 (acesso à justiça e devido processo legal) e 14.2 (presunção de inocência); 17 (direito à vida privada) e 25 (direito à participação política) do PIDCP em virtude de atos imputados ao Poder Judiciário e ao Ministério Público.

O processo internacional de direitos humanos tem como réu sempre o Estado, representado internacionalmente pelo Poder Executivo Federal, mesmo que as ações ou omissões estatais sejam imputadas a outros Poderes ou ao Ministério Público. Quase seis anos depois do protocolo da demanda, o comitê, por maioria (dois especialistas divergiram), condenou o Brasil, gerando reflexões que resumo — por motivo de espaço — em dez tópicos. 

Spacca
O primeiro tópico é relacionado ao próprio caso e sua inserção na temática do universalismo e dos processos internacionais de direitos humanos. Com a ratificação dos tratados de direitos humanos pelos estados, implantou-se formalmente o universalismo dos direitos humanos a partir da adoção pelos Estados do mesmo texto de princípios e regras de direitos humanos imposto nos tratados ratificados. Porém, é necessário que exista algum tipo de mecanismo internacional que averigue como o Estado aplica e interpreta o texto adotado, para evitar aquilo que denominei "tratado internacional nacional"[1].

O processo internacional de direitos humanos consiste em mecanismo que analisa esse tipo de demanda em um determinado Estado e, eventualmente, detecta a violação bem como fixa reparações cabíveis ou impõe sanções[2].

O segundo tópico diz respeito à localização do "Comitê de Direitos Humanos" como parte do sistema global de direitos humanos. O comitê é órgão do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (não é "órgão da ONU"), integrando o chamado sistema convencional global[3]

O terceiro tópico diz respeito às características básicas do Comitê de Direitos Humanos. O PIDCP foi adotado em 1966 e ratificado e incorporado internamente pelo Brasil em 1992. Além da previsão de direitos, o PIDCP criou órgão próprio, o Comitê de Direitos Humanos, composto por 18 membros (especialistas), os quais deverão ser pessoas de elevada reputação moral e reconhecida competência em direitos humanos. Não são juízes internacionais, mas especialistas independentes. Entre suas funções está a de analisar petições de vítimas por violações de direitos protegidos, sendo tal função é regulada pelo Protocolo Facultativo ao Pacto (adotado em 1966, também denominado "Primeiro Protocolo Facultativo" ao PIDCP).

O quarto tópico aborda a sujeição do Brasil ao poder do Comitê de Direitos Humanos em apreciar demandas de vítimas de violações de direitos do PIDCP. O protocolo facultativo foi aprovado no Congresso (Decreto Legislativo n. 311/2009) e ratificado pelo Brasil em 25/9/2009[4]. É válido internacionalmente desde então e gera obrigações internacionais ao Brasil. Não houve a edição do Decreto de Promulgação. Para o Supremo Tribunal Federal (STF) é necessária, após a ratificação, a edição de um decreto de promulgação pelo presidente da República, o qual é indispensável para que o tratado possa ser recepcionado e aplicado internamente, justificando tal exigência em nome da publicidade e segurança jurídica a todos[5].

Doutrinariamente, entendo desnecessária (e desprovida de fundamento constitucional) a edição do decreto de promulgação para todo e qualquer tratado[6]. Assim, pela visão predominante no STF, o protocolo facultativo ao PIDCP não foi incorporado no ordenamento brasileiro, não produzindo efeitos internos.

O quinto tópico diz respeito à força vinculante das medidas provisórias (medidas cautelares; interim measure) do comitê. Como o comitê não é um órgão permanente, as medidas provisórias — que têm natureza cautelar, visando assegurar resultado útil do procedimento — são analisadas pelos relatores especiais sobre novas comunicações e medidas provisórias, mas que decidem em nome do comitê. No seu Comentário Geral nº 33/2009, o Comitê de Direitos Humanos afirmou que os estados, em nome do princípio da boa-fé, têm que cumprir as deliberações provisórias do comitê no exame das comunicações individuais (parágrafo 19). O próprio conceito de "medida provisória" exige seu cumprimento, uma vez que há risco de dano irreparável ao resultado útil da análise da comunicação pelo Comitê[7]. Ou seja, tais medidas têm força vinculante. Como o Comitê é o intérprete autêntico do PIDCP e uma vez que o Brasil ratificou tanto o pacto quanto o protocolo facultativo, aceitando tal situação, não pode adotar uma interpretação localista divergente.

O sexto tópico aborda o descumprimento da medida provisória de 2018 no caso Lula. Em 2018, os relatores Sarah H. Cleveland e Olivier de Frouville (em nome do comitê) adotaram medida provisória pela qual se exigiu ao Brasil que adotasse todas as medidas necessárias para que o peticionário pudesse gozar e exercer seus direitos políticos como candidato nas eleições presidenciais de 2018. Tal medida foi descumprida em decisões do Tribunal Superior Eleitoral, em julgamento de ação de impugnação de registro de candidatura e, após, em recurso extraordinário no STF. O TSE não acatou a medida provisória com base em diversos argumentos, dos quais destaco: (i) o protocolo facultativo, embora ratificado pelo Brasil, não o obriga internamente, pela inexistência do decreto de promulgação; (ii) o comitê é um órgão administrativo, composto de especialistas. Por não ser um órgão judicial internacional, suas deliberações são meras recomendações (TSE, RCand (11.532) nº 0600903-50.2018.6.00.0000, relator ministro Roberto Barroso, por maioria, j. 31 de agosto de 2018 — voto vencido do ministro Fachin). No STF, o ministro Celso de Mello (citando, inclusive, o meu livro "Processo Internacional de Direitos Humanos") reiterou os argumentos acima expostos, entre outros (julgado prejudicado pela substituição da candidatura no pleito presidencial, RE nº 1.159.797, relatoria do ministro Celso de Mello, decisão monocrática de 1-10-2018).

O sétimo tópico analisa o conteúdo da deliberação final em 2022.  Por maioria (dois votos divergentes), o comitê decidiu superada a tese da falta de esgotamento de recursos internos e ter existido: 1) violação do artigo 9.1 (direito à liberdade); 2) violação do artigo 14.1 (ausência da imparcialidade do juízo); 3) violação do artigo 14.2 (presunção de inocência); 4) violação do artigo 17 (direito à privacidade); 5) violação do artigo 25 (direito de participação política). O comitê ainda atestou a violação do artigo 1 do protocolo[8], aparentemente pelo descumprimento da medida provisória pelo Brasil. Em linhas gerais, houve um "diálogo entre as cortes", tendo sido feitas referências à decisão do STF sobre a parcialidade do então juiz Moro[9] (o que impactou negativamente em todas as suas decisões, concretizando as violações acima expostas) e ainda à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH; Caso Escher vs. Brasil — 2009 —, que trata justamente de interceptações telefônicas ilegais). O comitê decidiu não avaliar a (in)convencionalidade da "Lei da Ficha Limpa" em face do PIDCP. 

O oitavo tópico refere-se às reparações fixadas. Quanto às reparações, o Brasil deve: (i) assegurar que os processos criminais existentes contra o peticionário observem as garantias processuais penais (artigo 14 do Pacto) e (ii) prevenir novas violações e (iii) publicar a decisão em português. Nada sobre a violação do projeto de vida (como se vê na jurisprudência da Corte IDH) ou a "perda de uma chance", bem como a compensação de eventuais danos materiais ou morais ocorridos e os modos de indenizar ou compensar o peticionário.

O nono tópico diz respeito à força vinculante da deliberação final do caso. Tal deliberação final é tida como recomendação, mas há o acompanhamento do seu cumprimento pelo comitê. Defendo que tal recomendação deve ser seguida voluntariamente e em boa-fé pelo Brasil, em linha com o seu comprometimento geral perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos[10]. O Comitê estipulou prazo de 180 dias ao Brasil, que, após, deverá informar as medidas internas adotadas.

O décimo tópico diz respeito ao impacto dessa deliberação. O primeiro impacto diz respeito ao reconhecimento do efeito deletério da omissão na publicação do Decreto de Promulgação do Protocolo Facultativo ao PIDCP, o que — na visão majoritária do STF — impede o cumprimento de uma medida cautelar do Comitê de Direitos Humanos. Tal omissão é inconvencional e inconstitucionais, sendo ainda mais grave por ser relacionada a um tratado de direitos humanos, cuja temática é vinculada à dignidade da pessoa humana, epicentro axiológico do nosso ordenamento. A propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão pode ser uma alternativa de superação da situação, uma vez que se trata de omissão normativa (o decreto é parte do ciclo normativo de incorporação do tratado). Um segundo impacto diz respeito à percepção de determinadas características desse específico processo internacional de direitos humanos, a saber: a) seu processamento foi demorado (quase seis anos); (b) a deliberação final é mais concisa que, por exemplo, uma da Comissão ou ainda uma sentença da Corte Interamericanas de  Direitos Humanos; (c) houve pouco desenvolvimento das reparações; (d) há diferença na força da "medida provisória" (cumprimento obrigatório) e da deliberação final do Comitê (recomendação, mas com acompanhamento do seu cumprimento) e (e) houve "diálogo das Cortes", com robusta menção ao decidido pelo STF no julgamento da suspeição do juiz Moro.   

Finalmente, a existência de (mais) um precedente sobre a interpretação internacionalista dos direitos humanos permite fomentar o respeito ao controle de convencionalidade de matriz internacional e a promoção do universalismo em concreto no Brasil.


[1] CARVALHO RAMOS, André de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 173 e CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 100.

[3] CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 96.

[5] Entre outras, ver STF, CR 8.279-AgR, rel. Min. Presidente Celso de Mello, j. 17-6-1998, Plenário, DJ de 10-8-2000).

[6] CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 311.

[7] CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 99.

[8] Cujo teor é “Os Estados Partes do Pacto que se tornem partes do presente Protocolo reconhecem que o Comitê tem competência para receber e examinar comunicações provenientes de indivíduos sujeitos à sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma violação, por esses Estados Partes, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto. O Comitê não receberá nenhuma comunicação relativa a um Estado Parte no Pacto que não seja no presente Protocolo

[9] STF, HC n. 164.493/PR, 2ª Turma, Rel. para o acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 09-03-2021.

[10] CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 169.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo ), no Largo São Francisco, coordenador do curso de mestrado da Unialfa (Centro Universitário Alves Faria), procurador regional da República e primeiro secretário de Direitos Humanos da PGR (2017-2019).

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