Estúdio Conjur

Direito coletivo à vida e o retorno das servidoras gestantes ao serviço público

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3 de maio de 2022, 8h53

A publicação da Lei nº 14.311/2022 promoveu alterações na Lei nº 14.151/2021, modificando a sistemática do afastamento da empregada gestante das atividades de trabalho presencial. Sua abrangência não se limita à iniciativa privada, atingindo também as servidoras cujo regime jurídico seja o celetista, das quais iremos tratar.

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Em linhas gerais, num primeiro momento, o normativo federal estabelece que a empregada gestante que ainda não tenha completado o ciclo vacinal deverá ser mantida em afastamento enquanto durar o estado de emergência de saúde pública de importância nacional (Espin). O problema é que recentemente foi publicada a Portaria 913 de 22 de abril de 2022, que determinou a revogação da Portaria 183/2020, sendo que esta última havia justamente decretado o Espin. Haverá vacatio legis de 30 dias para a entrada em vigor do referido ato legal, o que significa que teoricamente, a partir de então, as gestantes não vacinadas teriam que retornar ao labor presencial, já que uma das hipóteses para isso, definidas na Lei nº 14.311/2022, é justamente o encerramento do Espin.

No entanto, mesmo que essa possa ser uma primeira leitura da situação, recomenda-se que os entes públicos, agindo como empregadores e cumprindo seu dever de fornecer um meio ambiente de trabalho livre de riscos, continuem a exigir a vacinação das gestantes, se tiverem feito o mesmo em relação aos demais servidores. Em suma: o encerramento do Espin não pode servir como efeito inibidor (chilling effect) para que a Administração cumpra seus deveres constitucionais. A pandemia não acabou, como reconheceu o próprio Ministro da Saúde, e a competência dessa declaração seria exclusiva da OMS. Portanto, mesmo que encerrado o Espin, os demais entes federados deveriam agir de forma cautelosa, exigindo a vacinação de seus servidores, incluindo as gestantes.

Em termos técnicos, conforme orientações do Ministério da Saúde, contidas em sua Nota Técnica 11/2022, considera-se como "esquema vacinal completo" contra o coronavírus a aplicação de: a) duas doses dos imunizantes das fabricantes CoronaVac, AstraZeneca ou Pfizer SOMADAS A UMA DOSE DE REFORÇO; ou b) dose única da fabricante Janssen SOMADA A UMA DOSE DE REFORÇO.

No entanto, é preciso ainda ressaltar que todos os estudos científicos apontam que o corpo humano somente começa a produzir anticorpos numa média de 15 dias após a vacinação. A OMS corrobora tais estudos. Dessa maneira, somente pode ser considerada completa a imunização das gestantes passados 15 dias após aplicada a dose de reforço das vacinas.

Apesar do encerramento do Espin, a grande polêmica causada com a edição da Lei 14.311/2022 continua a ser a discussão sobre a eventual inconstitucionalidade de uma suposta "legítima opção individual" da empregada gestante em não se vacinar, com a possibilidade da assinatura de termo de responsabilidade, vedando-se a restrição de seus direitos em razão de sua escolha, que seria meramente uma "expressão do direito fundamental da liberdade de autodeterminação individual".

Chocam-se com tais previsões: o exercício do poder diretivo da Administração, que está vinculado ao dever de manutenção de um meio ambiente de trabalho hígido, a necessária observância dos princípios dispostos no caput do artigo 37 da Lei Fundamental e demais garantias constitucionais, bem como a decisão do STF, em controle concentrado de constitucionalidade, que manteve a possibilidade de os demais entes legislarem de maneira concorrente à União, estabelecendo medida de vacinação compulsória em âmbito local. Diferente da vedação prevista na lei federal, o ente público, como empregador, dará a última palavra a respeito da exigência de vacinação para todos os servidores, inclusive as grávidas. Nada disso mudou com a Portaria 913/2022.

O Supremo já deixou claro, ademais, em inúmeras oportunidades, que diante de uma pandemia o direito coletivo à vida se sobrepõe ao direito à liberdade individual de não se vacinar.

Nessa linha de raciocínio, o arcabouço constitucional, desde o preâmbulo da Lei Maior até as previsões de seus artigos 1º, II, III e IV, 3º, I e IV, 5º, 6º, 7º, XII, 39, §3º, 196 e 200, I, II, VIII, indica que, sob a égide do Estado democrático de Direito, os entes federados possuem o dever de garantir o direito fundamental à vida a todos, estando este diretamente ligado ao direito social à saúde. Tais obrigações não são mitigadas, mas reforçadas, quando a Administração age em seu papel de empregadora.

O direito à saúde é uma garantia coletiva destinada a todos os cidadãos e também aos servidores públicos, que possuem direito à redução dos riscos no ambiente de trabalho, por meio de normas de saúde, segurança e higiene. Além das garantias constitucionais, também está expressa a obrigação do empregador em respeitar e exigir o cumprimento das determinações previstas em normas sanitárias, nos termos do artigo 154 da CLT.

Por estas razões, prevalece o direito coletivo à vida e à saúde, traduzido na aplicação do caput do artigo 196 da Carta Magna, já que o Estado deve implementar políticas públicas que visem à redução do risco de doenças. O dever de precaução e de proteção é solidário e adequado aos termos da Constituição Cidadã, cabendo aos entes públicos adotarem conduta que preserve as garantias fundamentais dos cidadãos e de seus servidores.

Consequentemente, em regra, não há espaço nem justificativa para que se abra exceção para as gestantes não se vacinarem sem qualquer fundamento técnico. Apenas em caráter excepcional admite-se a justificativa para aquelas servidoras que comprovem documentalmente possuírem expressa contraindicação médica à vacina (nesse caso poderia ser exigida testagem periódica quanto ao vírus). O termo de responsabilidade, por sua vez, faz parte do conjunto de ilegalidades discutido e sua utilização deve ser rechaçada pela Administração.

Assim, na hipótese de eventualmente a gestante, de forma deliberada e injustificada, não se imunizar, poderá a Administração exigir que o faça, sob pena de abertura de PAD, assegurado o devido processo legal, podendo culminar em rescisão contratual. Pela CLT, a recusa é motivo de justa causa. Ainda que fosse possível, apenas com base na Constituição e na CLT, que a Administração exigisse a vacinação de seus servidores, para que não paire qualquer discussão a respeito do tema, é também importante que haja alguma disciplina local prevendo tal exigência.

Embora o pretenso direito de não se vacinar tenha adquirido estatura legal com a edição da Lei 14.311/2022, isso não altera as conclusões que o STF tem tido ao julgar situações similares, podendo a Administração, até mesmo com base em tais precedentes, requerer, de forma incidental, caso a questão seja judicializada, a declaração de inconstitucionalidade, em controle difuso, dos dispositivos legais do citado Diploma.

Aliás, ressalte-se que foi a firme atuação do Poder Judiciário, na figura do Excelso Pretório, guardião da Constituição, que garantiu a preservação da ciência, da vida e da saúde, durante os piores períodos da pandemia. A jurisprudência pátria tem sido praticamente pacífica em relação à importância da vacinação, já que a vida é o bem maior do ser humano e a garantia fundamental suprema de nossa Constituição, não havendo qualquer liberdade sem que antes se preserve a própria existência. Citem-se, nesse sentido, a decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que reestabeleceu, em 28/3/2022, os efeitos do Decreto nº 49.286/2021, que torna obrigatória a vacinação para servidores municipais e prestadores de serviço no Município do Rio de Janeiro, bem como acórdãos dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª e 15ª Regiões, que confirmaram sentenças que mantiveram a justa causa para empregados que se recusaram a tomar a vacina.

Para que se compreenda a autonomia dos demais entes federados é preciso voltar os olhos para o que restou decidido pelo STF nas ADIs 6586 e 6587, em que se pretendia a inconstitucionalidade do artigo 3º, III, d, da Lei Federal 13.979/2020. As ações foram julgadas em conjunto e a Corte Suprema decidiu a questão quase que por unanimidade (10 a 1), entendendo que a vacinação compulsória pode ser implementada tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e municípios.

Importante lembrar que o referido artigo 3º ainda está vigente, em razão da medida cautelar parcialmente concedida pelo ministro Lewandowski na ADI 6625, tendo tal decisão sido referendada pelo Plenário do Supremo. Os argumentos utilizados pelo ministro relator em sua decisão são reveladores:

"Sim, porque a Carta Magna estabelece que, ao lado da União, cabe aos Estados, Distrito Federal e municípios assegurar aos seus administrados os direitos fundamentais à vida e à saúde contemplados nos artigos 5°, 6° e 196 do texto constitucional. O direito à vida, é escusado dizer, corresponde ao direito, universalmente reconhecido à pessoa humana, de viver e permanecer vivo, livre de quaisquer agravos, materiais ou morais, significando, especialmente, sob pena de ficar esvaziado de seu conteúdo essencial, o direito a uma 'existência digna', conceito mencionado no artigo 170 de nossa Lei Maior".

A conclusão que se extrai é que as já mencionadas determinações da Lei 14.311/2022, que estão na contramão da preservação da vida e da saúde das gestantes, dos nascituros e dos demais servidores, não poderão se sobrepor à legislação local que determine a vacinação compulsória para todos os empregados públicos. O encerramento do Espin não prejudica as medidas já adotadas pelos demais entes federados, em especial a exigência de vacinação, já que o pedido contido na ADI 6625 vinculava a duração de vigência do artigo 3º da Lei 13.979/2020 até o término da emergência internacional de saúde decretada pela OMS, o que ainda não ocorreu.

Mormente, além da incompatibilidade sistemática da inovação legislativa com outras leis contemporâneas e decisões judiciais, é preciso lembrar que o Senado Federal havia aprovado a Emenda supressiva para a retirada do inciso III do §3º e dos §§6º e 7º do artigo 1º da Lei 14.151/2021.

Na Justificação da Emenda, assim esclareceu a senadora Nilda Gondim:

"Determinar o retorno ao trabalho em caso de recusa da gestante a se submeter à vacinação pode impor punição àquele que se sequer tem a possibilidade de se manifestar e se opor a tal incúria: o nascituro".

Posteriormente, quando o Projeto de Lei retornou à Câmara dos Deputados, o texto original da emenda foi mantido.

De qualquer forma, a comprovar que a Lei 14.311/2022 também está em descompasso com as próprias recomendações do Ministério da Saúde, observam-se trechos do atual PNO (PLANO NACIONAL DE OPERACIONALIZAÇÃO DA VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19), trazido em seu site:

"(…) gestantes e puérperas registraram, em junho de 2021, o dobro da taxa de letalidade do país no mesmo período (…). Reforçando a tese de que este também é um grupo prioritário (…)
Gestantes e puérperas (…) estão predispostas a um risco maior de desenvolver as formas graves de Covid-19, bem como, complicações obstétricas, tais como: parto prematuro, óbito fetal, abortamento, entre outros. Considerando ainda, o (…) aumento no número de óbitos maternos pela covid-19, entende-se que, neste momento, é provável que o risco vs benefício na vacinação das gestantes, seja favorável. Portanto, o PNI (…) decidiu, à luz de novas evidências, por recomendar novamente a vacinação contra a Covid-19, de todas as gestantes e puérperas com ou sem comorbidades".

Ora, as grávidas fazem parte do grupo de risco da covid-19 e também do grupo prioritário para a vacinação, aí incluídas pela Lei Federal nº 14.190/2021. Conceder à servidora gestante um "direito de escolha" infundado, sem embasamento ou recomendação médica, está em contradição com a proteção das gestantes e do nascituro.

Não há justificativa que explique por qual motivo a gestante teria uma "liberdade de autodeterminação individual" maior do que a de outros servidores, já que o risco para si e para o nascituro são ainda maiores sem a vacina. Nesse aspecto, segundo dados do Observatório Obstétrico Brasileiro, o Brasil registrou um aumento de 217% no número de grávidas e puérperas mortas em decorrência do coronavírus em 2021 em comparação com o ano de 2020.

O que se verificou com a edição da Lei 14.311/2022 não destoa, por exemplo, da tentativa do Ministério do Trabalho e Previdência de, por meio de Portaria, impedir que os empregadores exigissem que seus empregados se vacinassem e aplicassem medidas coercitivas, culminando com a rescisão contratual por justa causa, em caso de recusa. A matéria foi enfrentada pelo ministro Barroso de forma brilhante em cautelar em sede da ADPF 898/DF nos seguintes termos:

"1. A Portaria MTPS nº 620/2021 proíbe o empregador de exigir documentos comprobatórios de vacinação para a contratação ou manutenção da relação de emprego, equiparando a medida a práticas discriminatórias em razão de sexo, origem, raça, entre outros. No entanto, a exigência de vacinação não é equiparável às referidas práticas, uma vez que se volta à proteção da saúde e da vida dos demais empregados e do público em geral.
2. Existe consenso médico-científico quanto à importância da vacinação para reduzir o risco de contágio por Covid-19, bem como para aumentar a capacidade de resistência de pessoas que venham a ser infectadas. Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal considerou legítima a vacinação compulsória, não por sua aplicação forçada, mas pela adoção de medidas de coerção indiretas. (…)
3. É da natureza das relações de trabalho o poder de direção do empregador e a subordinação jurídica do empregado (CF, artigo 7º c/c CLT, artigos 2º e 3º). O descumprimento, por parte do empregado, de determinação legítima do empregador configura justa causa para a rescisão do contrato de trabalho (CLT, artigo 482, h). É importante enfatizar que constitui direito dos empregados e dever do empregador a garantia de um ambiente de trabalho seguro e saudável (CF/1988, artigo 7º, XXII, e artigo 225)
(…)".

O Ministério da Educação também tentou impedir que as universidades federais pudessem exigir comprovante de imunização de seus alunos. Resultado: o STF, na ADPF 756/DF, por 10 votos a 1, confirmou liminar do ministro Lewandowski que determinou a suspensão da eficácia do ato administrativo, garantindo a autonomia das universidades. Em seu voto, o relator destacou que: "Nunca é demais recordar que a saúde, segundo a Constituição, é um direito de todos e um dever irrenunciável do Estado brasileiro, garantido mediante políticas públicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, cujo principal pilar é o SUS".

Igualmente amparado nos mesmos valores, princípios e critérios, por mais de uma vez o STF já possibilitou a vacinação infantil, inclusive a de caráter obrigatório. Na decisão mais recente, em plenário virtual, publicada no dia 21/03/2022, nos autos da ADPF 754/DF, prevaleceu o voto da lavra do ministro Lewandowski, determinando que o Ministério da Saúde e o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos alterassem duas Notas Técnicas em que se combatia frontalmente a vacinação infantil. Em seu voto, o Ministro ressaltou que cabe ao STF garantir os direitos constitucionais das crianças e dos adolescentes, em especial as garantias fundamentais à vida e à saúde, de forma a evitar que contraiam ou transmitam doenças, incluindo a Covid-19. Ainda, afirmou que, havendo consenso científico demonstrando que os riscos inerentes à opção de não se vacinar são significativamente superiores àqueles postos pela vacinação, cumpre privilegiar a defesa da vida e da saúde dos menores. Ademais, lembrou que a saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas. Por fim, arrematou destacando que "as notas técnicas, ao disseminarem informações matizadas pela dubiedade e ambivalência, prestam um desserviço ao esforço de imunização empreendido pelas autoridades, contribuindo para a manutenção do ainda baixo índice de comparecimento de crianças e adolescentes aos locais de vacinação".

Assim, torna-se claro que os aspectos da Lei 14.311/2022, que vedam a aplicação de medidas restritivas de direitos às gestantes e obrigam os empregadores a aceitarem o retorno das mesmas ao trabalho presencial, sem estarem vacinadas, são inconstitucionais por orbitarem no mesmo universo das intenções barradas pelo STF. Mesmo a positivação de suposta defesa da liberdade não impede que a Administração continue a exigir que todos os servidores estejam imunizados, a fim de que possam retornar ao trabalho presencial, não devendo haver exceção às gestantes.

O próprio Ministério Público do Trabalho já dispunha, desde os primórdios da pandemia, de Guia Técnico Interno sobre a Vacinação contra a Covid-19, em que previa que a vontade individual não pode se sobrepor ao interesse coletivo e nenhuma posição particular, convicção religiosa, filosófica ou política ou temor subjetivo do empregado pode prevalecer sobre o direito da coletividade de obter a imunização conferida pela vacina.

Do exposto, não é difícil concluir que a Lei 14.311/2022 reprisou o mesmo tipo de método planejado e distorcido que tantas vezes já foi combatido e vencido no plenário do STF.

Importante salientar, por fim, que o Supremo terá a oportunidade de se manifestar novamente sobre o assunto, devido ao recente ajuizamento das ADIs 7.103 e 7.134, que discutem justamente a inconstitucionalidade dos analisados dispositivos da Lei 14.311/2022. A decisão, imagina-se, deve apenas confirmar a mesma lógica das anteriores.

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