Opinião

Necessária superação da súmula 83 do STJ

Autor

  • Luiz Henrique Volpe Camargo

    é doutor e mestre pela PUC-SP advogado e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Foi membro das comissões de revisão no Senado e na Câmara dos Deputados do projeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

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30 de junho de 2022, 19h22

O enunciado da súmula 83 do Superior Tribunal de Justiça, que diz que "não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida", é cotidianamente empregado em decisões de inadmissibilidade de recursos especiais nos tribunais de segundo grau.

O objetivo deste ensaio é demonstrar que esse enunciado é incompatível com as disposições do CPC/2015 e da própria Constituição, e, por isso, merece ser superado, cancelado ou, pelo menos, revisto.

Sabe-se que, não ocorrendo qualquer das hipóteses dos incisos I, II, III ou IV do artigo 1.030, caberá ao vice-presidente, segundo diz o inciso V do mesmo dispositivo, "realizar o juízo de admissibilidade". Esse juízo compreende o exame dos pressupostos dos recursos especiais. Não compete ao vice-presidente de tribunal de segundo grau (TJ ou TRF) fazer juízo sobre o mérito desse recurso. Tal exame, segundo o artigo 105 da CF, é da competência de ministros do STJ.

A análise dos acórdãos [1] que resultaram na criação da súmula 83 pela Corte Especial do STJ em 18/6/1993 demonstra que o que se pretendeu na época foi obstar o trânsito de recursos especiais que veiculassem alegação de dissídio jurisprudencial superado, não mais existente.

A criação da súmula mirou, então, prestigiar a orientação contemporânea da corte. Mediante a citação de julgados representativos da orientação do STJ, o vice-presidente de tribunal de 2º grau (TJ ou TRF) passou a ter o poder de evitar a subida de recursos especiais com a defesa de interpretação ultrapassada do direito federal.

Essa delegação objetivou assegurar racionalidade ao sistema para dispensar que ministros tivessem, por ato seu, de repetir razões que reiteradamente levaram o Superior Tribunal de Justiça a, em acórdãos contemporâneos, abandonar determinada interpretação do direito federal adotada no passado para, em seu lugar, prestigiar outro sentido mais moderno, extraível do mesmo texto da lei federal.

Essa súmula 83 do STJ foi precedida de outra, aprovada na sessão plenária de 13/12/1963 do Supremo Tribunal Federal, que recebeu o número 286 [2]. Nesse tempo, quando ainda não existia o Superior Tribunal de Justiça, também competia ao Supremo Tribunal Federal decidir dissídios jurisprudenciais na interpretação da lei federal.

A diferença mais notável entre uma (286 do STF) e outra (83 do STJ) súmula é que, enquanto a primeira enunciava que se deveria negar seguimento a recurso extraordinário que veiculasse pretensão contrária à "orientação do plenário" do Supremo Tribunal Federal, a segunda estabelece que se deve negar seguimento a recurso especial que contrarie a "orientação do tribunal".

A súmula 286 do STF era mais precisa do que é a atual súmula 83 do STJ, porque adequadamente especificava que era a "orientação do plenário" — com seus 11 ministros — que deveria dar suporte à inadmissão do recurso extraordinário fundado em divergência jurisprudencial.

Idêntica especificação — ser a "orientação do plenário" — não aconteceu no âmbito do STJ quando editou sua súmula 83 porque, como visto, preferiu empregar a genérica expressão "orientação do tribunal".

O grande desafio, então, do emprego desse enunciado sempre passou pela verificação da adequação ou não da escolha do acórdão — ou do conjunto harmônico de acórdãos com idêntica interpretação do direito federal a formar jurisprudência [3] — que fosse verdadeiramente capaz de representar a "orientação do tribunal", como diz o texto da súmula 83.

O que é, então, a "orientação do tribunal"?

Sempre nos pareceu que só pode ser conceituada como tal a diretriz ditada pela Corte Especial ou, ao menos, por uma de suas três Seções nos casos em que, pela divisão de competências do STJ, tiver a missão de dar a última palavra na interpretação do direito federal.

Não é incomum encontrar a negativa de seguimento a recurso especial fundada na súmula 83 do STJ a partir da transcrição de ementas de acórdãos isolados, de orientação ultrapassada, originário no mais das vezes da atividade das Turmas — órgãos fracionários de composição mais reduzida — pinçados dentre tantos outros com soluções contrárias para a mesma questão de direito, como alegadamente representativos da "orientação do tribunal".

Segundo pensamos, a correta aplicação da súmula 83 sempre pressupôs a demonstração de que a pretensão recursal contraria a "orientação do tribunal", assim compreendida aquela: (1) representada pelo posicionamento contemporâneo da Corte Especial ou de uma das Seções do Superior Tribunal de Justiça ou, em último nível, decorra de um conjunto harmônico de diversos acórdãos aptos a formar jurisprudência; (2) que seja atual e de reprodução recorrente em número significativo de outros casos análogos; (3) envolva a discussão do mesmo texto de lei federal a partir de bases fáticas semelhantes; e (4) com real aderência ao caso concreto.

São diretrizes para identificar "orientação do tribunal" que: (1) julgados da Corte Especial se sobrepõem aos julgados das Seções e das Turmas; (2) na ausência de pronunciamento da Corte Especial, os julgados das Seções se sobrepõem aos das Turmas; (3) na ausência de julgados da Corte Especial e das Seções, como as Turmas não estão submetidas umas às outras por qualquer via recursal, somente a perfeita harmonia interpretativa de vários órgãos fracionários do Tribunal, a ponto de gerar conjunto de acórdãos aptos a formar jurisprudência, é capaz de indicar, legítima e verdadeiramente, a "orientação do tribunal".

Ao contrário do que fez a súmula 83 do STJ, o CPC/2015 contribuiu muito para reduzir o grau de subjetividade na identificação da "orientação do tribunal", prestigiando, em boa medida, a estrutura exposta linhas atrás.

Diferentemente do CPC/1973, que não se valia de indexadores objetivos para qual produto da atuação jurisdicional anterior deveria guiar novos julgamentos, o CPC/2015 estabeleceu, no artigo 927, uma lista de precedentes qualificados e de súmulas que, como já tivemos a oportunidade de defender noutro texto [4], "longe de funcionar como um simples conselho, veicularam ordem [v]; não exercem apenas influência, exercem força; não são mera recomendação, são de observância cogente e por isso exercem tanto impacto, quer na marcha processual, quer no mérito do julgamento em si".

É que, como já defendeu a ministra Nancy Andrighi [6], para a formação do precedente qualificado "há toda uma mobilização que supera em muito a discussão inter partes; há a influência do amicus curiae, do Ministério Público, dos próprios Tribunais de 2º grau e, necessariamente, a participação das Seções ou da Corte Especial. A experiência tem mostrado que o julgamento mobiliza de forma mais impactante até mesmo os próprios Ministros do STJ". Essa especial mobilização legitima que o impacto do precedente qualificado — forte, vinculante — seja mais abrangente do que a mera solução do caso concreto.

Nesse contexto, o artigo 927 do CPC precisa refletir no juízo de admissibilidade dos recursos especiais. Com efeito, aquilo que no passado foi denominado de "orientação do tribunal", sem qualquer diretriz objetivamente verificável, agora foi substituído por bases objetivas, que são os precedentes qualificados e as súmulas listadas no artigo 927 do CPC.

Não por outra razão, o §5º do artigo 927 do CPC diz que os tribunais organizarão seus precedentes por questão jurídica decidida, missão que, de forma elogiável, vem recorrentemente sendo aperfeiçoada pelo STF [7], STJ [8] e CNJ [9]. É questão que está na ordem do dia dessas cortes e do conselho.

Note-se que nesses bancos são relacionados acórdãos específicos — os precedentes qualificados — e não qualquer antecedente judiciário.

E o reflexo disso no juízo de admissibilidade decorre do fato de que, pela redação do artigo 1.030 do CPC, atribuída pela Lei 13.256, de 2016, o recurso especial somente pode ter seu "seguimento" negado por ser a pretensão contrária à orientação do Superior Tribunal de Justiça, quando esta for formada em recurso processado pelo rito dos recursos repetitivos.

São os precedentes qualificados — e somente esses — que na dicção do artigo 121-A [10] do RI/STJ são de "estrita observância pelos Juízes e Tribunais" —, que autorizam a inadmissão do recurso especial por vice-presidente de tribunal local (TJ) ou tribunal regional (TRF), como uma espécie de porta-voz do Superior Tribunal de Justiça.

Nesse ambiente normativo, segundo pensamos, a decisão de inadmissão não pode mais invocar acórdãos (precedentes simples) que não foram formados pelo rito dos recursos repetitivos para justificar negativa de seguimento de recurso especial, como se fossem representativos da "orientação do tribunal". A "orientação do tribunal", para tais fins, agora deve, de regra, ser aferível a partir da lista do artigo 927, conjugada com o artigo 1.030, I, 'b', ambos do CPC/15.

No fundo, o que está em questão são os graus de força que diferenciam precedentes simples, formados no julgamento cotidiano das Turmas, de precedentes qualificados, formados em procedimento diferenciado, que envolve julgamento por colegiado mais amplo (Corte Especial ou Seção), participação de diversos interessados e fundamentação mais aprofundada.

Os precedentes simples, no ambiente de instabilidade jurisprudencial, que outrora já justificaram as decisões de inadmissibilidade a partir da súmula 83 do STJ, não devem ter mais essa força, daí nossa compreensão de que de duas uma: ou o enunciado da súmula 83 está superado pela redação do artigo 1.030, I, 'b', do CPC/15; ou é preciso dar adequada interpretação à súmula 83 para, em prestígio ao que dispõe o inciso V do artigo 927 do CPC, reputar legítima a sua aplicação apenas quando adotar como "orientação do tribunal" o posicionamento contemporâneo da Corte Especial ou de uma das Seções do Superior Tribunal de Justiça.

É questão que, segundo acreditamos, merece ser discutida no procedimento de cancelamento ou revisão de súmula, nos termos artigo 125 do Regimento Interno do STJ.

Fica aqui o convite à reflexão.


[1] AgRg no Ag 6.511-DF, min. Américo Luz, 2ª T, j. em 17/12/1990, DJ 4/3/1991; EREsp 2.868-SP, min. Athos Carneiro, 2ª S, j. em 30/10/1991, DJ 25/11/1991; EREsp 2.873-SP, min. Fontes de Alencar, 2ª S, j. em 25/9/1991, DJ 2/12/1991; EREsp 5.922-RS, min. Demócrito Reinaldo, 1ª S, j. em 16/6/1992, DJ 17/8/1992; REsp 5.880-SP, min. Nilson Naves, 3ª T, j. em 17/10/1991, DJ 04.11.1991; REsp 10.399-SP, min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª T, j. em 18/12/1991, DJ 24.02.1992; REsp 11.349-RN, min. Humberto Gomes de Barros, 1ª T, j. em 14/10/1992, DJ 30.11.1992; REsp 12.474-SP, min. Claudio Santos, 3ª T, j. em 17/12/1991, DJ 09.03.1992; REsp 22.587-RJ, min. Francisco Peçanha Martins, 2ª T, j. em 23/9/1992, DJ 16.11.1992 e REsp 22.728-RS, min. Dias Trindade, 3ª T, j. em 4/8/1992, DJ 14/9/1992.

[2] Súmula 286 do STF. Não se conhece do recurso extraordinário fundado em divergência jurisprudencial, quando a orientação do plenário do Supremo Tribunal Federal já se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.

[3] Jurisprudência é, para os fins deste ensaio, "o conjunto de julgados harmônicos entre si, fruto da reiterada e constante interpretação e aplicação da lei em uma mesma linha" (CAMARGO. Luiz Henrique Volpe. A força dos precedentes no moderno Processo Civil Brasileiro. in ALVIM, Teresa Arruda (coord). Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, p. 556)

[4]. CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. Da Remessa Necessária. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 279, p. 67-113, 2018.

[5] "Nesse quadro e antes da decidida guinada do direito brasileiro no sentido de valorização dos precedentes jurisdicionais, tais precedentes, por mais elevada que fosse a corte judiciária de que proviessem e por mais que se mantivessem estáveis as sucessivas decisões, valiam somente como fator de influência sobre os julgadores de casos futuros, não como elemento de exercício do poder, porque não se impunham a nenhum deles com força imperativa e caráter vinculante". (DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 8ª Ed. São Paulo: Malheiros. 2016, p. 157).

[6] ANDRIGHI, Fátima Nancy. Recursos repetitivos. Revista de Processo, São Paulo: RT, nº 185, 2010, p. 277-278.

[7] No âmbito do STF, durante a gestão do min. Luiz Fux, foi criada a Secretaria de Gestão de Precedentes, que tem como Secretário Marcelo Ornellas Marchiori. Segundo o site do STF, "dentre suas responsabilidades, estão o recebimento, classificação e triagem dos recursos extraordinários (RE) e recursos extraordinários com agravo (ARE); a ampla e específica publicidade dos precedentes vinculantes e da jurisprudência da Corte; e a integração administrativa com gabinetes de ministros, tribunais e juízos diretamente vinculados ao STF e com os agentes responsáveis pelas funções essenciais à Justiça".

[8] A Portaria STJ/GP nº 475, de 11 de novembro de 2016, criou, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Comissão Temporária Gestora de Precedentes. Essa portaria foi revogada e substituída pela Portaria STJ/GP nº 299 de 19 de julho de 2017 que, depois, foi revogada e substituída pela Portaria STJ/GP nº 98, de 22 de março de 2021. Atualmente o colegiado é denominado de Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (Cogepac). Desde sua criação, são membros titulares o ministro Paulo de Tarso Sanseverino (representante da 2ª Seção); a ministra Assusete Magalhães (representante da 1ª Seção); e o ministro Rogerio Schietti Machado Cruz (representante da 3ª Seção), e, ainda, é composto pelo ministro Moura Ribeiro (Suplente) e pelo Juiz instrutor Renato Castro Teixeira Martins (Supervisor). Por meio da Resolução STJ/GP nº 29, de 22 dezembro de 2020, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, min. Humberto Martins, criou o Núcleo de Ações Coletivas (NAC), integrado à estrutura organizacional do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes (Nugep), que, por força dessa fusão, passou a ser denominado Nugepnac. Nos termos do artigo 1º, §1º, Resolução STJ/GP nº 29, de 22 dezembro de 2020, esse órgão é "responsável pela gestão da sistemática dos precedentes qualificados previstos no Código de Processo Civil de 2015 – repercussão geral, recursos repetitivos, incidente de assunção de competência e suspensão em incidente de resolução de demandas repetitivas, bem como pela promoção do fortalecimento do monitoramento e da busca pela eficácia no julgamento das ações coletivas".

[9] O Conselho Nacional de Justiça, por meio de sua Resolução nº 235, recomendou a criação de Núcleos de Gerenciamento de Precedentes (Nugep) em cada um dos tribunais (STJ , TST, TSE, STM, TJs, TRFs e TRTs) com o objetivo de permitir a "ampla consulta às informações da repercussão geral, dos casos repetitivos e dos incidentes de assunção de competência do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho, do Tribunal Superior Eleitoral, do Superior Tribunal Militar, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais do Trabalho e dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal para otimização do sistema de julgamento de casos repetitivos e de formação concentrada de precedentes obrigatórios previsto no novo Código de Processo Civil" (https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2312). Essa resolução foi alterada pela Resolução CNJ n. 286, de 25 de junho de 2019. Mais recentemente, a Resolução nº 235 foi novamente atualizada pela Resolução nº 444, de 25 de fevereiro de 2022, por meio da qual o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sob a relatoria de seu Presidente, min. Luiz Fux, aprovou a criação do Banco Nacional de Precedentes (BNP). O propósito desse banco é reunir e padronizar o conteúdo dos precedentes dos tribunais superiores e as estatísticas sobre o tema para tratamento uniforme das demandas judiciais repetitivas ou de massa.

[10] Art. 121-A. Os acórdãos proferidos em julgamento de incidente de assunção de competência e de recursos especiais repetitivos bem como os enunciados de súmulas do Superior Tribunal de Justiça constituem, segundo o art. 927 do Código de Processo Civil, precedentes qualificados de estrita observância pelos Juízes e Tribunais. […]

Autores

  • é advogado, professor universitário e secretário-adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Processual para o Mato Grosso do Sul. Tem mestrado e doutorado em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

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