Opinião

Peso da proteção de dados nas juntadas documentais em processo eletrônico

Autor

  • João Victor Barcellos Machado Correia

    é pesquisador de direito digital e municipal bacharel em Direito pelo Centro Universitário Vale do Cricaré (UniVC) e autor do capítulo "Dadosfera (datasphere) e o problema do dado: novos espaços e problemas teóricos para o direito" no e-book do Legal Hackers Belo Horizonte "Direito e tecnologia: discussões para o século XXI”.

30 de junho de 2022, 21h26

No constante aos pedidos de gratuidade da justiça, ainda se discute sobre limites às exigências comprobatórias para deferimento. E apesar do CPC ser muito claro no artigo 99, § 2º, que o indeferimento do pedido somente poderá ocorrer se houver elementos processuais que fazem prova em contrário da alegação de insuficiência de recursos, há magistrados e tribunais que optam por traçar outros critérios para uniformização da concessão da gratuidade.

Nesse ínterim, vale conferir a redação que reza o artigo 98, caput, e 99 do CPC sobre gratuidade da justiça:

"Artigo 98 — A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. […] Art. 99 — O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso. § 1º — Se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo, e não suspenderá seu curso. § 2º — O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos. § 3º — Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural."

Assim, o grande dilema é que se em parte a uniformização facilita o trabalho dos servidores e magistrados, doutro lado enrijece a dinâmica processual e impõe-se sobre a redação cristalina do CPC, no que se costuma estabelecer uma prática processual que exige comprovação documental desproporcional para a finalidade a que disciplina a lei.

Nessa corrente da desnecessidade de comprovação adicional à alegação de hipossuficiência, os renomados processualistas Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2020, p. 427-428) afirmam que o pedido de gratuidade não pode ser indeferido sem elementos cabais em contrário no bojo do processo:

"O dever de provar o cabimento do pedido de gratuidade da justiça se impõe caso o juiz entenda que haja elementos nos autos que permitam seja questionável esse pedido. Do contrário, o pedido não pode ser indeferido. […] A prova em contrário, que derruba a presunção iuris tantum de pobreza, que milita em favor do interessado que se declarou necessitado, deve ser cabal no sentido de que pode prover os custos do processo sem comprometer seu sustento e o de sua família."

Com efeito, mais uma vez, é preciso que haja indícios fundamentados e idôneos para não somente sinalizar, mas dar grau de certeza à inveracidade da hipossuficiência.

A mais, a declaração de hipossuficiência para fins de gratuidade não quer dizer necessariamente um estado de miserabilidade, porém abarca estados de mitigação substancial da capacidade financeira:

Servidor público postulante de justiça gratuita – renda mensal expressiva – rendimentos comprometidos – mitigação substancial da capacidade financeira. "[…] 2. Emergindo dos autos que a parte, conquanto detentora de remuneração de substancial expressão pecuniária como servidor público, aufere mensalmente importância consideravelmente mitigada em razão dos descontos compulsórios e voluntários implantados em sua folha de pagamento, que culminaram com o comprometimento do equilíbrio da sua economia doméstica, é passível de ser qualificada como juridicamente pobre e agraciada com a justiça gratuita, porquanto o que sobeja na aferição da sua capacidade financeira é o que lhe resta líquido do que percebe." TJDFT, Acórdão 1352213, 07132306720218070000, Relator: TEÓFILO CAETANO, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 30/6/2021, publicado no DJE: 20/7/2021.

Gratuidade de justiça – pessoa natural – presunção relativa de veracidade da declaração de pobreza. "[…] 4. A condição de necessitado não se confunde com absoluta miserabilidade e não pressupõe estado de mendicância, mas tão somente incapacidade para suportar as custas e demais despesas processuais, conforme dispõe o art. 98, caput, do CPC." (grifamos). TJDFT, Acórdão 1356239, 07081156520218070000, Relator: ROBERTO FREITAS, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 14/7/2021, publicado no DJE: 27/7/2021.”

Dos limites da juntada documental
Como já dito, tentando uniformizar o tema, muitos magistrados estabelecem exigências como de renda mensal máxima para concessão de gratuidade, no que determinam juntada de documentação que, à luz do CPC, somente deveria ser exigível se houvesse elementos processuais que descaracterizassem a hipossuficiência, como renda mensal expressiva.

Nesses casos, sendo silente o CPC, surge a indagação de qual a documentação proporcional a essa finalidade que pode ser exigida de modo a gerar o mínimo constrangimento à parte pessoa natural?

Essa preocupação é extremamente relevante nos processos eletrônicos, ainda mais diante de incontáveis incidentes cibernéticos nas mais altas esferas de poder por todo o país.

Aliás, no quesito do pedido de gratuidade da justiça, ele poderia ser instruído pela parte com a declaração de imposto de renda, que é um dos meios idôneos para aferição da potencial incapacidade financeira.

Lado outro, no constante a pedidos de juntada de documentação pessoal mais delicada dessa incapacidade financeira, pontua-se os extratos bancários e possíveis contas vencidas, mormente de despesas básicas, como água e energia elétrica, porquanto se o cidadão não tem condições nem de arcar com o essencial para sobrevivência, quanto mais arcar com despesas processuais.

Limitando às exigências documentais
No quesito dessa juntada documental, imperioso não olvidar da problemática do direito constitucional à proteção de dados pessoais (artigo 5º, LXXIX, da Constituição Federal) e segurança da informação em processo eletrônico, sendo preciso a garantia de segurança desses dados (artigo 46, caput, e artigo 6º, VII e VII, da LGPD) para que não ocorra nenhum incidente de segurança criminoso, como acesso não autorizado a esses dados.

Esclarecendo, a renomada doutrinadora de proteção de dados Viviane Nóbrega Maldonado (2019, p.295) retoma conceituação da Autoridade de Proteção de Dados do Reino Unido (sob a sigla anglófona ICO — Information Comissioner's Office) sobre incidente de segurança:

"[…] uma violação de segurança que leva à destruição acidental ou ilegal, perda, alteração, divulgação não autorizada ou acesso a dados pessoais. Isso inclui violações que são resultado de causas acidentais e deliberadas. Isso também significa que uma violação é mais do que apenas perder dados pessoais."

No meio pátrio, o incidente de segurança é tratado no artigo 46, caput, da LGPD, como uma exigência de medidas de segurança e boas-práticas por certa organização (como os próprios tribunais de justiça) para proteção dos dados (e do próprio titular deles postulante de gratuidade da justiça) "de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito".

Nos termos da definição de dado pessoal do artigo 5º, I, da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/20), que remonta o artigo 14, I, do Decreto nº 8.771/2016 que regulamenta o Marco Civil, dado pessoal é toda informação relacionada a pessoal natural identificada ou identificável, o que é conceito amplamente difundido na legislação europeia desde a Convenção 108 do Conselho da Europa.

Da desnecessidade de juntada de extratos bancários
Em detida análise, nos extratos bancários há incontáveis dados de consumo e de toda a vida bancária, financeira, de saúde, alimentação por parte do titular de dados postulante da gratuidade da justiça.

Ainda, diante do princípio da necessidade (artigo 6º, III, da LGPD), o tratamento de dados pessoais, isto é, as operações que os envolvam devem observar a mitigação do uso dos dados a somente ao necessário a certa finalidade, no que se traduz que uma vez juntada a declaração de IRPF para fins de gratuidade, não havendo prova cabal em contrário nos autos, faz-se desproporcional a exigência de juntada de extratos bancários.

Para mais, em se tratando da segurança da informação desses dados do extrato bancário, como são mais delicados, ainda mais em processo eletrônico e diante dos incontáveis vazamento de dados ilícitos e criminosos até mesmo de ataques cibernéticos ao Supremo Tribunal Federal e outros tribunais, órgãos públicos e empresas brasileiras, os próprios tribunais e magistrados não podem garantir a segurança desses dados no processo eletrônico, no que o juízo deve sopesar com cuidado, igualmente, o princípio da segurança e prevenção de dados pessoais (artigo 6, VII e VIII, da LGPD).

Dessarte, diante da incerteza das medidas técnicas de segurança dos sistemas eletrônicos dos tribunais, pelo princípio da prevenção é uma medida de contenção de danos evitar exigências de juntada de extratos bancários para todo e qualquer pedido da parte de gratuidade da justiça, mesmo não havendo prova cabal em contrário no processo.

Inclusive, não pode o magistrado presumir, sem provas processuais, a inveracidade da alegação de hipossuficiência da parte (pessoa natural). Isso ocorre tendo em vista que além de ser contra a redação do CPC, uma vez que o magistrado exija, nessas situações, juntada de documentação pessoal delicada, havendo um incidente de segurança, fica o agente de tratamento (o tribunal de justiça) obrigado a reparar eventuais danos, consoante artigo 42, caput, da LGPD, em caso não haja nenhuma hipótese de exclusão de responsabilidade.

Com isso, ainda mais em processo eletrônico, deve sempre o magistrado sopesar a proteção de dados e segurança da informação para evitar exigir documentação desproporcional para concessão da gratuidade de justiça, bem como fica facultado ao magistrado determinar a inclusão dessa documentação sob o sigilo eletrônico como medida de segurança.


Referências
BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 21 jun 2022.

MALDONADO, Viviane Nóbrega. LGPD — Lei Geral de Proteção de Dados pessoais: manual de implementação. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 21 jun 2022.

TJDFT. Gratuidade de justiça — parâmetros legais para concessão. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/direito-constitucional/gratuidade-de-justica-2013-parametros-legais-para-concessao. Acesso em: 21 jun 2022.

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  • é pesquisador de direito digital e municipal, bacharel em Direito pelo Centro Universitário Vale do Cricaré (UniVC) e autor do capítulo "Dadosfera (datasphere) e o problema do dado: novos espaços e problemas teóricos para o direito" no e-book do Legal Hackers Belo Horizonte, "Direito e tecnologia: discussões para o século XXI”.

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